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segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Dos quadrantários, enquanto colaboradores das quadrantarias e a organização econômica fundada na moeda de base fracionária

1. Introdução

A noção de quadrantaria, tomada como um modelo de loja que adota a moeda de 25 centavos — o “quadrante de real” — como unidade-base de precificação, abre espaço para reinterpretar práticas correntes na economia popular brasileira. Assim como as antigas lojas de R$ 1,99 foram estruturadas em torno do princípio da acessibilidade, rapidez de circulação e previsibilidade de preços, as quadrantarias formam um sistema comercial compatível com um público habituado ao consumo fracionado, ao pagamento em numerário e à busca por clareza na formação dos preços.

Dentro desse sistema, emerge a figura do quadrantário: o colaborador que atua nas dependências da quadrantaria, desempenhando funções de atendimento, reposição, logística simples e apoio comercial. O termo carrega natural paralelismo com o dependiente do espanhol — funcionário de comércio que trabalha dentro das “dependências” do estabelecimento — e amplia-se para abarcar modelos contemporâneos de trabalho, especialmente os próprios do microempreendedorismo brasileiro.

O quadrantário pode ser um celetista clássico, mas também pode assumir formas híbridas: MEI prestador de serviço, vendedor-empreendedor, autônomo alocado no CNPJ do proprietário ou colaborador por produção. Sua posição ilustra a complexidade do sistema econômico atual, onde a informalidade, a flexibilidade contratual e o empreendedorismo por necessidade coexistem numa mesma estrutura.

2. A genealogia do conceito: do quadrante romano ao quadrante contemporâneo

Na Roma Antiga, o quadrante era uma moeda de bronze equivalente a um quarto de asse — de baixo valor e ampla circulação popular. Era a moeda do pequeno consumo, do pagamento imediato e da economia cotidiana. A organização de atividades econômicas em torno do quadrante criava uma cultura de previsibilidade e simplicidade.

Ao tomar essa referência para o Brasil contemporâneo, a quadrantaria representa:

  • uma economia baseada em micropagamentos,

  • um comércio de itens de baixo custo e alta rotatividade,

  • um sistema de preços facilmente compreensível,

  • e uma operação enxuta, ideal para pequenos empreendedores.

Assim como o quadrante romano permitiu formas populares de atividade econômica nas tabernas, oficinas e bancas, o quadrante de real estrutura a economia emergente da informalidade organizada e do varejo acessível. 

3. A quadrantaria como modelo de negócio

A quadrantaria caracteriza-se por:

  1. Base de precificação fixa ou modular — tudo custa múltiplos de R$ 0,25.

  2. Baixa complexidade gerencial — o cálculo do preço é intuitivo.

  3. Alta rotatividade mercantil — produtos de giro rápido, estoques simples.

  4. Baixo custo de entrada — ideal para empreendedores iniciantes.

  5. Economia popular integrada — forte apelo a bairros, periferias, feiras e centros comerciais densos.

Ela pode assumir várias formas:

  • loja física pequena,

  • quiosque,

  • barraca de feira,

  • operação itinerante,

  • loja digital com interface simplificada.

No centro desse sistema, encontra-se o quadrantário.

4. Quem é o quadrantário?

O quadrantário é o agente que torna viável a operação cotidiana da quadrantaria. Seu papel ultrapassa a mera execução operacional: ele incorpora a lógica do estabelecimento, sua cultura de preços, sua relação com os clientes e a filosofia de acessibilidade econômica.

Características estruturantes:

4.1. Quadrantário enquanto celetista

Operando segundo a CLT, cumpre funções típicas: caixa, repositor, vendedor, estoquista. É a versão mais tradicional do dependiente.

4.2. Quadrantário enquanto pessoa jurídica (MEI)

Aqui aparece o fenômeno moderno:

  • vendedor-empreendedor,

  • prestador de serviços por contrato,

  • microfranqueado operacional,

  • terceirizado por demanda.

O quadrantário-MEI presta serviços ao CNPJ da quadrantaria, aproveitando benefícios de carga tributária reduzida e flexibilidade contratual.

4.3. Quadrantário autônomo

Quando atua informalmente, o quadrantário se aproxima da economia popular:

  • trabalha por comissão,

  • auxilia parentes,

  • compartilha espaço com outros vendedores,

  • administra vitrines próprias dentro de lojas alheias.

4.4. Quadrantário como agente de microempreendedorismo comunitário

Em zonas de grande densidade populacional, o quadrantário pode ser:

  • vizinho,

  • parente,

  • morador da mesma rua,

  • alguém que entra numa rede econômica local baseada em confiança.

Ele participa da cadeia curta de comércio, onde crédito, reputação e proximidade são decisivos.

5. As conotações sociológicas do termo

Assim como o dependiente no mundo hispânico carrega uma conotação de proximidade, familiaridade e atuação sob a esfera do dono, o quadrantário incorpora elementos como:

  • subordinação funcional, mas nem sempre contratual;

  • participação direta na economia real local;

  • interpenetração entre trabalho e comunidade;

  • cooperação com a microempresa, não apenas execução mecânica.

Há também uma dimensão de empreendedorismo incremental: muitos quadrantários, ao longo do tempo, abrem suas próprias quadrantarias ou passam a comprar e revender produtos por conta própria.

6. Quadrantários e o espírito econômico brasileiro

O modelo descreve com precisão uma faceta da economia brasileira pós-Real:

  • microempreendedores,

  • comerciantes de bairro,

  • mercados populares,

  • operadores informais que se regularizam via MEI,

  • parcerias flexíveis entre comerciantes e colaboradores.

O Brasil vive uma fase de hibridismo econômico, onde o indivíduo é simultaneamente:

  • trabalhador,

  • empreendedor,

  • vendedor,

  • prestador de serviços,

  • autogestor de sua microeconomia.

O conceito de quadrantário sintetiza essa transição.

7. Conclusão

A figura do quadrantário oferece uma categoria útil para pensar:

  • a economia popular,

  • o microempreendedorismo,

  • a organização produtiva baseada no baixo custo,

  • e as relações híbridas entre trabalho e empreendedorismo.

Ao trazermos o termo a partir da tradição romana e adaptá-lo ao comércio urbano brasileiro, cria-se um conceito sólido para analisar práticas reais e contemporâneas — ao mesmo tempo sociológicas, jurídicas e econômicas.

Bibliografia Comentada

1. Hernando de Soto – O Mistério do Capital

Indispensável para compreender como pequenos comerciantes criam riqueza a partir de estruturas informais, muitas vezes sem proteção jurídica plena. Conecta-se diretamente ao quadrantário informal que opera na fronteira entre economia popular e microempresa legalizada.

2. Milton Santos – O Espaço Dividido e Por Uma Outra Globalização

Santos mostra como o comércio popular e os microempreendedores formam uma economia organizadíssima, ainda que invisível às elites. Sua visão geográfica da economia urbana ajuda a entender o ecossistema onde as quadrantarias florescem.

3. Pierre Bourdieu – As Estruturas Sociais da Economia

Bourdieu analisa como práticas econômicas se enraízam em hábitos locais, capitais simbólicos e relações comunitárias. A noção de quadrantário como colaborador enraizado na vizinhança ganha rigor com sua teoria.

4. Richard Sennett – A Corrosão do Caráter

Explora as transformações do trabalho flexibilizado. Ajuda a entender os quadrantários-MEI e a oscilação entre autonomia e precarização.

5. Alessandro Portelli – Estudos de história oral

Útil para compreender narrativas de pequenos comerciantes e vendedores ambulantes; as histórias de vida de quadrantários seriam perfeitamente estudadas com essa metodologia.

6. Maria Sylvia de Carvalho Franco – Homens Livres na Ordem Escravocrata

Embora trate do século XIX, ilumina a figura do trabalhador-cidadão híbrido, autônomo e pluriativo — exatamente como muitos quadrantários contemporâneos.

7. Max Weber – Economia e Sociedade

Especialmente os capítulos sobre ação econômica, dominação e racionalidade. Weber ajuda a enquadrar a quadrantaria como instituição econômica e o quadrantário como tipo social.

8. Roberto Senise Lisboa – Manual de Direito Comercial e de Empresa

Para compreender a figura jurídica do MEI e as formas contratuais simples que organizam as relações entre quadrantários e quadrantarias.

9. T.H. Marshall – Cidadania e Classe Social

Dialoga com a importância das microestruturas de trabalho para a inclusão econômica e o acesso progressivo a direitos — algo essencial para quadrantários que transitam da informalidade para o MEI.

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