1. Introdução
A noção de quadrantaria, tomada como um modelo de loja que adota a moeda de 25 centavos — o “quadrante de real” — como unidade-base de precificação, abre espaço para reinterpretar práticas correntes na economia popular brasileira. Assim como as antigas lojas de R$ 1,99 foram estruturadas em torno do princípio da acessibilidade, rapidez de circulação e previsibilidade de preços, as quadrantarias formam um sistema comercial compatível com um público habituado ao consumo fracionado, ao pagamento em numerário e à busca por clareza na formação dos preços.
Dentro desse sistema, emerge a figura do quadrantário: o colaborador que atua nas dependências da quadrantaria, desempenhando funções de atendimento, reposição, logística simples e apoio comercial. O termo carrega natural paralelismo com o dependiente do espanhol — funcionário de comércio que trabalha dentro das “dependências” do estabelecimento — e amplia-se para abarcar modelos contemporâneos de trabalho, especialmente os próprios do microempreendedorismo brasileiro.
O quadrantário pode ser um celetista clássico, mas também pode assumir formas híbridas: MEI prestador de serviço, vendedor-empreendedor, autônomo alocado no CNPJ do proprietário ou colaborador por produção. Sua posição ilustra a complexidade do sistema econômico atual, onde a informalidade, a flexibilidade contratual e o empreendedorismo por necessidade coexistem numa mesma estrutura.
2. A genealogia do conceito: do quadrante romano ao quadrante contemporâneo
Na Roma Antiga, o quadrante era uma moeda de bronze equivalente a um quarto de asse — de baixo valor e ampla circulação popular. Era a moeda do pequeno consumo, do pagamento imediato e da economia cotidiana. A organização de atividades econômicas em torno do quadrante criava uma cultura de previsibilidade e simplicidade.
Ao tomar essa referência para o Brasil contemporâneo, a quadrantaria representa:
-
uma economia baseada em micropagamentos,
-
um comércio de itens de baixo custo e alta rotatividade,
-
um sistema de preços facilmente compreensível,
-
e uma operação enxuta, ideal para pequenos empreendedores.
Assim como o quadrante romano permitiu formas populares de atividade econômica nas tabernas, oficinas e bancas, o quadrante de real estrutura a economia emergente da informalidade organizada e do varejo acessível.
3. A quadrantaria como modelo de negócio
A quadrantaria caracteriza-se por:
-
Base de precificação fixa ou modular — tudo custa múltiplos de R$ 0,25.
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Baixa complexidade gerencial — o cálculo do preço é intuitivo.
-
Alta rotatividade mercantil — produtos de giro rápido, estoques simples.
-
Baixo custo de entrada — ideal para empreendedores iniciantes.
-
Economia popular integrada — forte apelo a bairros, periferias, feiras e centros comerciais densos.
Ela pode assumir várias formas:
-
loja física pequena,
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quiosque,
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barraca de feira,
-
operação itinerante,
-
loja digital com interface simplificada.
No centro desse sistema, encontra-se o quadrantário.
4. Quem é o quadrantário?
O quadrantário é o agente que torna viável a operação cotidiana da quadrantaria. Seu papel ultrapassa a mera execução operacional: ele incorpora a lógica do estabelecimento, sua cultura de preços, sua relação com os clientes e a filosofia de acessibilidade econômica.
Características estruturantes:
4.1. Quadrantário enquanto celetista
Operando segundo a CLT, cumpre funções típicas: caixa, repositor, vendedor, estoquista. É a versão mais tradicional do dependiente.
4.2. Quadrantário enquanto pessoa jurídica (MEI)
Aqui aparece o fenômeno moderno:
-
vendedor-empreendedor,
-
prestador de serviços por contrato,
-
microfranqueado operacional,
-
terceirizado por demanda.
O quadrantário-MEI presta serviços ao CNPJ da quadrantaria, aproveitando benefícios de carga tributária reduzida e flexibilidade contratual.
4.3. Quadrantário autônomo
Quando atua informalmente, o quadrantário se aproxima da economia popular:
-
trabalha por comissão,
-
auxilia parentes,
-
compartilha espaço com outros vendedores,
-
administra vitrines próprias dentro de lojas alheias.
4.4. Quadrantário como agente de microempreendedorismo comunitário
Em zonas de grande densidade populacional, o quadrantário pode ser:
-
vizinho,
-
parente,
-
morador da mesma rua,
-
alguém que entra numa rede econômica local baseada em confiança.
Ele participa da cadeia curta de comércio, onde crédito, reputação e proximidade são decisivos.
5. As conotações sociológicas do termo
Assim como o dependiente no mundo hispânico carrega uma conotação de proximidade, familiaridade e atuação sob a esfera do dono, o quadrantário incorpora elementos como:
-
subordinação funcional, mas nem sempre contratual;
-
participação direta na economia real local;
-
interpenetração entre trabalho e comunidade;
-
cooperação com a microempresa, não apenas execução mecânica.
Há também uma dimensão de empreendedorismo incremental: muitos quadrantários, ao longo do tempo, abrem suas próprias quadrantarias ou passam a comprar e revender produtos por conta própria.
6. Quadrantários e o espírito econômico brasileiro
O modelo descreve com precisão uma faceta da economia brasileira pós-Real:
-
microempreendedores,
-
comerciantes de bairro,
-
mercados populares,
-
operadores informais que se regularizam via MEI,
-
parcerias flexíveis entre comerciantes e colaboradores.
O Brasil vive uma fase de hibridismo econômico, onde o indivíduo é simultaneamente:
-
trabalhador,
-
empreendedor,
-
vendedor,
-
prestador de serviços,
-
autogestor de sua microeconomia.
O conceito de quadrantário sintetiza essa transição.
7. Conclusão
A figura do quadrantário oferece uma categoria útil para pensar:
-
a economia popular,
-
o microempreendedorismo,
-
a organização produtiva baseada no baixo custo,
-
e as relações híbridas entre trabalho e empreendedorismo.
Ao trazermos o termo a partir da tradição romana e adaptá-lo ao comércio urbano brasileiro, cria-se um conceito sólido para analisar práticas reais e contemporâneas — ao mesmo tempo sociológicas, jurídicas e econômicas.
Bibliografia Comentada
1. Hernando de Soto – O Mistério do Capital
Indispensável para compreender como pequenos comerciantes criam riqueza a partir de estruturas informais, muitas vezes sem proteção jurídica plena. Conecta-se diretamente ao quadrantário informal que opera na fronteira entre economia popular e microempresa legalizada.
2. Milton Santos – O Espaço Dividido e Por Uma Outra Globalização
Santos mostra como o comércio popular e os microempreendedores formam uma economia organizadíssima, ainda que invisível às elites. Sua visão geográfica da economia urbana ajuda a entender o ecossistema onde as quadrantarias florescem.
3. Pierre Bourdieu – As Estruturas Sociais da Economia
Bourdieu analisa como práticas econômicas se enraízam em hábitos locais, capitais simbólicos e relações comunitárias. A noção de quadrantário como colaborador enraizado na vizinhança ganha rigor com sua teoria.
4. Richard Sennett – A Corrosão do Caráter
Explora as transformações do trabalho flexibilizado. Ajuda a entender os quadrantários-MEI e a oscilação entre autonomia e precarização.
5. Alessandro Portelli – Estudos de história oral
Útil para compreender narrativas de pequenos comerciantes e vendedores ambulantes; as histórias de vida de quadrantários seriam perfeitamente estudadas com essa metodologia.
6. Maria Sylvia de Carvalho Franco – Homens Livres na Ordem Escravocrata
Embora trate do século XIX, ilumina a figura do trabalhador-cidadão híbrido, autônomo e pluriativo — exatamente como muitos quadrantários contemporâneos.
7. Max Weber – Economia e Sociedade
Especialmente os capítulos sobre ação econômica, dominação e racionalidade. Weber ajuda a enquadrar a quadrantaria como instituição econômica e o quadrantário como tipo social.
8. Roberto Senise Lisboa – Manual de Direito Comercial e de Empresa
Para compreender a figura jurídica do MEI e as formas contratuais simples que organizam as relações entre quadrantários e quadrantarias.
9. T.H. Marshall – Cidadania e Classe Social
Dialoga com a importância das microestruturas de trabalho para a inclusão econômica e o acesso progressivo a direitos — algo essencial para quadrantários que transitam da informalidade para o MEI.
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