A história econômica brasileira pode ser lida — e reinterpretada — por meio de um esquema simbólico poderoso: a transformação do cru no cozido, tal como Claude Lévi-Strauss analisa em O Cru e o Cozido (1964). Na chave estruturalista, o “cru” representa o que está fora da cultura, fora da estrutura; o “cozido” é aquilo que foi incorporado, organizado, domesticado pela ação humana. Ao aplicar esse esquema à evolução institucional do Brasil, especialmente na comparação entre a Caixa Econômica Federal da Monarquia e as indústrias de base criadas por Getúlio Vargas, obtém-se uma interpretação profunda: o Estado brasileiro passou de um modelo tutelar e restrito para um modelo absorvente, onde quase nada permanece fora da sua órbita.
Esse processo lembra, emblematicamente, a máxima corporativista: “Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado.” Sem que Vargas tivesse de proclamá-la, a estrutura que produziu aproxima-se funcionalmente dela.
1. A Caixa Econômica Federal criada pela Monarquia: o Estado cru
Criada em 1861, a Caixa surge como um instrumento de:
-
poupança popular, voltado à moralização do pequeno aforro;
-
crédito limitado, disciplinado e de caráter conservador;
-
proteção social embrionária, ainda sem intenção de industrializar ou planificar a economia.
A Caixa da Monarquia é, portanto:
-
instituição financeira;
-
ligada ao Estado, mas com função modesta;
-
sem articulação com um projeto nacional de modernização.
Na leitura estruturalista, trata-se de um elemento cru: não é instrumento de transformação estrutural, mas apenas de preservação. Ela corresponde ao “estado natural” da interlocução entre Estado e economia — o mínimo necessário para manter a ordem social.
2. Vargas: o Cozinheiro da Nação
A ascensão de Getúlio Vargas e o projeto nacional-desenvolvimentista marcam a ruptura. O Estado deixa de ser simples tutor e passa a ser agente produtor.
Sob Vargas emergem as indústrias de base:
-
CSN (siderurgia),
-
Vale (mineração),
-
Petrobras (energia),
-
FNM (indústria automotiva),
-
Eletrobras (setor elétrico), entre outras.
Essas entidades não são meros órgãos públicos: são empresas estatais corporativas, equivalentes funcionais às kaisha japonesas, mas invertendo o sinal cultural:
-
No Japão, a kaisha é privada sob proteção estatal.
-
No Brasil, a “kaisha” varguista é estatal sob lógica empresarial.
Aqui ocorre o salto simbólico:
O Estado brasileiro assume a função de cozinheiro: transforma a matéria-prima social (trabalho, poupança, recursos naturais) em cultura industrial.
Onde antes havia apenas poupança dispersa, agora há aço, combustível, logística, energia e monopólios produtivos.
O “cru” — a economia brasileira agrária e fragmentada — é “cozido” pela maquinaria estatal.
3. O cozido como forma de incorporação total
No esquema de Lévi-Strauss, o cozimento não é apenas cozinhar: é internalizar, absorver, ordenar o mundo.
É exatamente isso que o Estado varguista faz:
-
Sindicatos: incorporados e regulados.
-
Energia e petróleo: monopólio estatal.
-
Siderurgia: estatal.
-
Mineração: estatal.
-
Planejamento econômico: centralizado.
-
Relações trabalhistas: mediadas pelo Estado-juiz.
-
Previdência: organizada em caixas corporativas sob direção pública.
-
Territórios produtivos inteiros: internalizados.
A “Kaisha Econômica Federal” — metáfora para as empresas industriais do Estado — é uma extensão dos instrumentos financeiros monárquicos para dentro da própria estrutura produtiva.
A mensagem simbólica é clara: o Estado transforma tudo o que toca. Nada lhe escapa.
4. A unificação simbólica: Da Caixa às Kaishas
A Caixa da Monarquia representava:
-
o Estado como guardião da poupança.
As Kaishas varguistas representam:
-
o Estado como produtor, empresário, planejador e ordenador simbólico.
A união desses elementos forma um modelo que pode ser assim resumido:
-
Caixa (monárquica) → guarda o capital;
-
Kaisha (varguista) → mobiliza o capital;
-
Estado (estrutural) → transforma o capital em poder social.
A transmutação é completa quando percebemos que: a Caixa Monárquica representa o “cru”: o Estado mínimo e reativo. as Kaishas Varguistas representam o “cozido”: o Estado máximo e transformador.
5. A consequência: nada fora do Estado
Mesmo sem adotar explicitamente o lema corporativista italiano, o Brasil de Vargas efetivamente realizou seu espírito:
-
Toda produção estratégica estava no Estado.
-
Toda mediação social era feita pelo Estado.
-
Toda industrialização dependia do Estado.
-
Todo capital de base era público.
-
Toda técnica nacional passava pelo Estado.
Se Lévi-Strauss tivesse analisado o caso brasileiro, poderia dizer:
“Onde a Monarquia deixou o cru, Vargas construiu o cozido.”
E assim, o Estado brasileiro deixou de ser apenas guardião de poupanças e tornou-se o grande cozinheiro da modernização nacional.
Conclusão
A metáfora que conecta a Caixa Econômica Federal da Monarquia às “Kaishas Econômicas Federais” da Era Vargas revela um processo de transformação profunda: o Estado brasileiro deixou de tutelar para absorver, deixou de preservar para produzir, deixou de garantir para planificar.
Lévi-Strauss oferece a linguagem para compreender este salto: a passagem do cru ao cozido.
O resultado é um Estado que organiza, estrutura e internaliza a sociedade — um Estado que, ao final do processo, se torna ele próprio o centro da cultura econômica.
Bibliografia Comentada
1. Claude Lévi-Strauss e a Estrutura Simbólica do “Cru” e do “Cozido”
LÉVI-STRAUSS, Claude. O Cru e o Cozido. São Paulo: Cosac Naify, várias edições.
Obra fundamental da tetralogia Mitológicas. O autor descreve a transformação culinária (cru → cozido) como um modelo universal de passagem da natureza para a cultura. Aqui está a chave conceitual usada para interpretar a transmutação institucional brasileira: a transformação de estruturas “cruas” (instituições financeiras modestas, poupança popular, Estado tutelar) em estruturas “cozidas” (indústrias de base, Estado planificador, monopólios produtivos). A leitura deste livro é indispensável para compreender o mecanismo simbólico que orienta o argumento.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, diversas edições.
Introduz o método estruturalista que permite ler fenômenos culturais como sistemas simbólicos. Fornece o arcabouço analítico que legitima a aplicação do par “cru/cozido” à política e à economia, mostrando que estruturas nacionais podem ser compreendidas como mitologias políticas.
2. Estado, Corporativismo e Industrialização no Brasil
FAUSTO, Boris. História do Brasil. São Paulo: Edusp.
Clássico da historiografia brasileira. O capítulo sobre a Era Vargas oferece um panorama claro sobre o projeto de industrialização, o papel das indústrias estatais e a centralidade do Estado. Excelente para leitores que desejam entender o contexto geral que torna possível o “cozimento” da economia.
DULLES, John W. Foster. Vargas of Brazil: A Political Biography. Austin: University of Texas Press.
Biografia detalhada, com vasta documentação, que ajuda a compreender a intencionalidade política de Vargas: seu corporativismo, sua visão de Estado e seu projeto de industrialização. É uma fonte sólida para interpretar Vargas como o “cozinheiro” que transforma as estruturas do país.
CAPELATO, Maria Helena. Multidões em Cena: Propaganda Política no Varguismo. São Paulo: Companhia das Letras.
Mostra como o Estado Novo construiu uma narrativa simbólica e mítica sobre si mesmo. Isso reforça a leitura lévi-straussiana: o Estado não apenas industrializa, mas cria mitologias políticas para justificar sua centralidade, moldando o imaginário social.
BIELSCHOWSKY, Ricardo. Desenvolvimento e Crise no Brasil (1930–1980). Rio de Janeiro: IPEA.
Clássico da economia política do desenvolvimento. Explica o papel das indústrias de base e do planejamento estatal. Mostra como a estrutura produtiva brasileira é explicitamente montada pelo Estado, reforçando a interpretação de que o “cozido” é produzido em larga escala no período varguista.
IANNI, Octavio. O Colapso do Populismo no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Analisa o Estado como organizador e absorvedor de estruturas sociais. Ajuda a entender como o modelo varguista deixa como herança um Estado corporativo que internaliza sindicatos, empresas e relações de trabalho.
3. Empresas Estatais e Indústrias de Base
BAER, Werner. A Economia Brasileira. Rio de Janeiro: Nobel.
Analisa o desenvolvimento das estatais, seus monopólios estratégicos e o papel da CSN, Petrobras e Vale. Fundamental para compreender a extensão da “Kaisha Econômica Federal” brasileira, isto é, o conjunto de empresas estatais que assumem o lugar do capital privado.
LAFER, Celso. O Planejamento no Brasil. São Paulo: Perspectiva.
Estudo crucial sobre o planejamento estatal. Mostra como o Estado brasileiro passa a guiar a economia diretamente, reforçando a ideia de que ele incorpora funções produtivas — exatamente o movimento de transformar o cru em cozido.
4. A Caixa Econômica Federal e as Instituições Financeiras da Monarquia
MATTOS, Ilmar Rohloff de. O Tempo Saquarema. São Paulo: Hucitec.
Obra essencial para entender a lógica política da Monarquia e o contexto em que a Caixa foi criada. Mostra que o Estado imperial prezava pela ordem e pela estabilidade, mas não pela transformação produtiva — oferecendo o pano de fundo do “Estado cru”.
CAIXA ECONÔMICA FEDERAL. História da Caixa: 1861–2011. Publicação institucional.
Apresenta o desenvolvimento histórico da Caixa, suas funções sociais e sua origem como instituição de poupança. Mostra claramente o contraste entre seu papel original e aquilo que o Estado viria a realizar sob Vargas.
5. Japão, Kaishas e Modernização Comparada
JOHNSON, Chalmers. MITI and the Japanese Miracle. Stanford University Press.
Mostra como o Japão organizou o capitalismo por meio de empresas privadas (kaisha) guiadas pelo MITI (Ministério do Comércio e Indústria). É excelente para comparar: no Japão, as empresas são privadas; no Brasil, as “Kaishas” varguistas são estatais. A comparação ilumina o caráter singular do estatismo brasileiro.
HALL, John W. Japan: From Prehistory to Modern Times. University of Michigan Press.
Fornece contexto para entender como o Estado japonês estruturou sua modernização sem absorver diretamente os meios de produção — ao contrário do que ocorre no Brasil varguista.
6. Corporativismo e Filosofia Política do Estado Forte
GENTILE, Emilio. As Origens da Ideologia Fascista. São Paulo: Martins Fontes.
Embora o Brasil não tenha sido fascista, o conceito de corporativismo de Estado (“tudo no Estado, nada fora do Estado”) ajuda a entender a lógica funcional — não ideológica — que o projeto varguista adquire. A referência serve para compreender o paralelismo estrutural, não para afirmar identidade ideológica.
SCHMITT, Carl. Teoria da Constituição. São Paulo: Martins Fontes.
Material útil para entender o conceito de Estado total em sentido jurídico-organizacional. Reforça a leitura de que a Era Vargas opera uma internalização quase completa das estruturas sociais.
Conclusão da Bibliografia
A bibliografia selecionada — e comentada — permite ao leitor reconstruir integralmente o argumento:
-
Lévi-Strauss fornece o modelo simbólico.
-
A historiografia brasileira mostra a formação real das instituições.
-
A comparação com o Japão ilumina a especificidade brasileira.
-
A teoria política do corporativismo explica o movimento de absorção estatal.
-
Os estudos sobre a Caixa e as estatais evidenciam o contraste entre o “Estado cru” da Monarquia e o “Estado cozido” da Era Vargas.
Nenhum comentário:
Postar um comentário