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segunda-feira, 24 de novembro de 2025

A enfiteuse, a gênese de Petrópolis e a transformação da empresa em micrópolis - da revogação do instituto da enfiteuse como erro do Código Civil de 2002

Resumo

Este artigo demonstra que a extinção da enfiteuse pelo Código Civil de 2002 representou não apenas a supressão de um instituto histórico, mas a destruição de um mecanismo civilizacional que permitia organizar territorialidades privadas complexas, fomentar cidades e estruturar ecossistemas econômicos de longo prazo. Utilizando o exemplo histórico da formação de Petrópolis, argumenta-se que o aforamento foi — e ainda poderia ser — o instrumento jurídico ideal para o surgimento de micrópolis dentro da realidade empresarial contemporânea. A eliminação desse instituto foi equivalente à derrubada da monarquia no campo civilístico, substituindo uma estrutura hierárquica e funcional por um racionalismo igualitarista empobrecedor. Conclui-se que a ausência da enfiteuse limita juridicamente a evolução natural das empresas em ecossistemas produtivos e cidades-servas.

1. Introdução

A transformação das empresas contemporâneas em ecossistemas complexos tem provocado uma reconfiguração profunda dos conceitos clássicos de organização econômica. Empresas que antes eram tratadas como entidades monolíticas tornaram-se centros de vida econômica, social e cultural — verdadeiras micrópolis que orbitam ao redor de uma municipalidade maior, a metápolis estatal.

Essa evolução não está acompanhada pelo direito civil brasileiro, que permanece preso a uma concepção simplificada de propriedade e organização produtiva. Em grande parte, essa defasagem decorre da extinção da enfiteuse pelo Código Civil de 2002, decisão que eliminou um instituto milenar capaz de estruturar territórios privados de maneira semelhante ao modelo urbano.

Este artigo defende que a extinção da enfiteuse foi um erro grave, comparável — metaforicamente e institucionalmente — à derrubada da monarquia na transição para a república, pois destruiu toda uma arquitetura intermediária de organização civil. Para isso, utiliza-se o caso paradigmático de Petrópolis, cidade construída a partir de aforamento concedido pela Família Imperial, como exemplo concreto de que a enfiteuse era capaz de gerar cidades inteiras.

2. A enfiteuse como arquitetura civilizacional

2.1. Origem e função histórica

A enfiteuse, cuja origem remonta ao direito romano e ao direito canônico medieval, desenvolveu-se como instrumento jurídico para permitir:

  • a ocupação produtiva de grandes extensões de terra,

  • a criação de vilas, povoados e comunidades produtivas,

  • a distribuição ordenada da propriedade,

  • a perpetuidade do domínio direto em mãos de um senhor.

Era um mecanismo de governança territorial privada, fundado em uma hierarquia funcional:

  • o senhorio direto,

  • o foreiro (proprietário útil),

  • e, em muitos casos, subforeiros e ocupantes.

Sua lógica era profundamente distinta do arrendamento ou da locação: a enfiteuse transformava o foreiro em quase-proprietário, com incentivos à construção, ao desmatamento produtivo, à urbanização e ao investimento de longo prazo.

2.2. A função hierárquica e o paralelo com a monarquia

A estrutura da enfiteuse é essencialmente monárquica: há um centro de autoridade (o senhorio direto), que exerce poder permanente sobre o território, mas delega amplos poderes aos foreiros, os quais, por sua vez, desenvolvem a vida econômica e social do solo.

Quando o Código Civil de 2002 extingue a enfiteuse, ele extingue junto:

  • a hierarquia civilística,

  • a figura do domínio direto,

  • a possibilidade de propriedade útil perpétua,

  • e a arquitetura tradicional de formação de cidades privadas.

Isso corresponde, no plano dos institutos, ao que a república fez com a monarquia: eliminou a estrutura hierárquica que sustentava a arquitetura do território.

3. Petrópolis como caso paradigmático da capacidade urbanística da enfiteuse

Petrópolis não apenas ilustra a tese — ela a prova.

A gênese da cidade ocorreu porque:

  1. A Família Imperial detinha a propriedade plena da Fazenda do Córrego Seco.

  2. O imperador, mediante aforamento, permitiu a terceiros a ocupação produtiva da terra.

  3. Esses foreiros tornaram-se responsáveis pela construção, investimento, produção agrícola, comércio e urbanização.

  4. A cidade emergiu de maneira orgânica, governada por normas privadas de direito real, sem depender de loteamentos modernos.

Assim, Petrópolis foi uma cidade gerada dentro de uma propriedade privada, por um instituto de direito real, antes da existência do direito urbanístico contemporâneo.

Essa experiência histórica demonstra que:

  • A enfiteuse era capaz de produzir uma cidade-serva.

  • Essa cidade tinha uma governança privada vinculada ao senhorio direto.

  • A estrutura funcionava como micrópolis — exatamente o modelo que as empresas modernas começam a reproduzir de forma fática, ainda que sem enquadramento jurídico adequado.

4. A empresa contemporânea como micrópolis

As empresas da era pós-industrial deixaram de ser simples unidades produtivas e tornaram-se ecossistemas:

  • políticas internas que equivalem a leis locais,

  • regras de convivência,

  • sistemas educacionais internos,

  • sistemas próprios de saúde, mobilidade e até urbanismo corporativo,

  • cadeias de fornecedores e parceiros integrados em comunidades funcionais,

  • redes de stakeholders que orbitam a organização.

Esse conjunto se organiza como: um pequeno Estado funcional, dotado de geografia, demografia, costumes, economia interna e instituições.

Ou seja: uma micrópolis.

4.1. Propriedade e afiliação

Dentro da lógica civilística clássica:

  • o fundador ou o acionista controlador exerce uma forma de domínio direto,

  • enquanto colaboradores, fornecedores, franqueados, startups afiliadas e parceiros estruturados exercem funções semelhantes às de proprietários úteis.

A enfiteuse teria sido o instrumento perfeito para dar forma jurídica a essa realidade.

5. O erro civilístico do Código Civil de 2002

Ao extinguir a enfiteuse, o CC/2002:

  1. eliminou um modelo de propriedade escalonada,

  2. destruiu um mecanismo de desenvolvimento territorial privado,

  3. interrompeu uma tradição lusitana que estruturava núcleos urbanos,

  4. restringiu o imaginário jurídico para formas monolíticas de propriedade,

  5. impediu juridicamente a emergência de cidades privadas e micrópolis empresariais.

Assim, a tese central se confirma:a extinção da enfiteuse representou a derrubada de uma arquitetura civilística monárquica e o empobrecimento das possibilidades estruturais do direito privado.

Ao remover esse instituto, o direito brasileiro proibiu de fato:

  • a criação de distritos privados,

  • cidades corporativas com governança real,

  • sistemas complexos de propriedade útil,

  • micrópolis estruturadas dentro de propriedades maiores.

Reduziu-se tudo à lógica privatística simples, atomizada e individualista — exatamente o contrário da complexidade que o mundo econômico exige.

6. Conclusão

O Brasil extinguiu um instituto milenar que, longe de estar obsoleto, seria hoje ainda mais necessário. A enfiteuse era um mecanismo de organização territorial capaz de transformar propriedades em cidades e empreendimentos em micrópolis.

Sua eliminação foi:

  • teoricamente imprudente,

  • históricamente regressiva,

  • civilisticamente empobrecedora,

  • e economicamente irracional.

A tese se confirma: derrubar a enfiteuse foi, no plano civilístico, como derrubar a monarquia — e isso custou ao país a capacidade de dar forma jurídica à complexidade das novas cidades-econômicas.

Bibliografia Comentada

1. Direito Civil e Institutos Reais (Brasil e tradição lusitana)

– Caio Mário da Silva Pereira – Instituições de Direito Civil, vol. IV (Direitos Reais)

Obra essencial para compreender a estrutura clássica da enfiteuse no direito brasileiro. Caio Mário explica com rigor a distinção entre domínio direto e domínio útil, o papel dos foros e laudêmios, e a vocação urbanística da enfiteuse. Útil para demonstrar que o instituto tinha função econômica e territorial concreta.

– Silvio Rodrigues – Direito Civil, vol. 5: Direitos Reais

Rodrigues expõe a evolução histórica da enfiteuse e sua função como mecanismo de exploração territorial e estímulo ao investimento de longo prazo. Fundamental para explorar a ideia de que sua extinção foi empobrecedora.

– Orlando Gomes – Direitos Reais

Clássico que analisa a enfiteuse como resquício de uma estrutura hierárquica de propriedade. A obra é útil para fundamentar o paralelo entre a lógica monárquica e a arquitetura civilística que a enfiteuse preservava.

– Francisco dos Santos Amaral – A Enfiteuse no Direito Brasileiro

Trabalho monográfico específico, raríssimo, que aprofunda o caráter histórico e econômico da enfiteuse. Essencial para compreender por que o instituto poderia ter sido modernizado — e não extinto.

– Washington de Barros Monteiro – Curso de Direito Civil – Direitos Reais

Monteiro mostra com clareza que a enfiteuse nunca foi um instituto morto no Brasil, e que a legislação urbanística posterior poderia conviver perfeitamente com ela.

2. História de Petrópolis e formação de cidades a partir de aforamento

– Alcindo Sodré – História de Petrópolis

Obra primária para entender a formação da cidade. Sodré demonstra o papel direto do Imperador e o uso efetivo do aforamento como instrumento de povoamento e desenvolvimento urbano.

– Maria de Nazareth Leal – A Fundação de Petrópolis: Território, Poder e Cidade

Análise moderna e acadêmica sobre como o aforamento estruturou a organização inicial da cidade. Excelente para conectar o caso de Petrópolis com a tese de micrópolis.

– Jeffrey Needell – The Party of Order: The Conservatives, the State, and Slavery in the Brazilian Monarchy

Embora o foco seja político, Needell apresenta o funcionamento da monarquia como estrutura de governança hierárquica que se reflete também nos institutos jurídicos — um paralelo muito adequado ao argumento do artigo.

3. História da Enfiteuse e Direito Comparado

– John P. Dawson – A History of Lay Judges

Discute o papel de institutos híbridos (civis e canônicos) na formação da Europa medieval. Útil para contextualizar a enfiteuse como mecanismo de governança territorial.

– Frederick Maitland – Equity and the Forms of Action

Referência clássica inglesa. Embora não trate diretamente de enfiteuse, é indispensável para comparar o leasehold inglês — que sobreviveu, prosperou e hoje estrutura bairros inteiros, em contraste com o Brasil.

– Otto von Gierke – Das deutsche Genossenschaftsrecht

Gierke apresenta uma das melhores análises do direito real alemão, especialmente da Erbbaurecht (superfície herdável). Excelente para mostrar como outros países preservaram institutos que cumprem função semelhante à enfiteuse.

4. Economia Institucional, Organizações e Complexidade

– Douglass North – Institutions, Institutional Change and Economic Performance

North demonstra como institutos jurídicos moldam trajetórias de desenvolvimento econômico. Sua teoria das “trajetórias dependentes” embasa a tese de que a extinção da enfiteuse quebrou um caminho institucional virtuoso.

– Ronald Coase – The Firm, the Market and the Law

Coase explica por que as empresas existem como estruturas de governança alternativa ao mercado — e como elas se tornam ecossistemas complexos. Fundamental para a ideia da empresa como micrópolis.

– Oliver Williamson – The Economic Institutions of Capitalism

Willliamson aprofunda a teoria da firma como sistema de governança. Sua análise da hierarquia e dos contratos híbridos é um apoio direto à analogia entre empresa-ecossistema e unidades territoriais complexas.

– Henry Mintzberg – Structures in Fives

Para fundamentar o conceito de empresa como organização multifacetada, com topologia própria. Reforça a tese de que empresas complexas assumem forma urbana.

5. Filosofia Política, Hierarquia e Ordem Social

– José Ortega y Gasset – A Rebelião das Massas

Importante para fundamentar a tese da destruição de instituições hierárquicas — como a monarquia e, por analogia, a enfiteuse — em nome de uma igualdade abstrata que empobrece a ordem real.

– Edmund Burke – Reflections on the Revolution in France

Burke é essencial para reforçar a crítica à ruptura institucional abrupta. Suas ideias oferecem um paralelo claro com a derrubada da monarquia jurídica representada pela extinção da enfiteuse.

– Russell Kirk – The Roots of the American Order

Kirk analisa como instituições tradicionais moldam o desenvolvimento social. Ajuda a justificar que a extinção da enfiteuse não foi apenas jurídica, mas civilizacional.

– Josiah Royce – The Philosophy of Loyalty

Você já trabalha com esse livro, e ele se encaixa perfeitamente: ele fundamenta filosoficamente o vínculo orgânico entre membros de uma comunidade — o tipo de vínculo que a enfiteuse criava na propriedade e que a micrópolis corporativa recria.

6. Urbanismo, território e governança privada

– Jane Jacobs – The Death and Life of Great American Cities

Jacobs mostra como cidades vivas emergem de dinâmicas locais e descentralizadas. Auxilia a demonstrar que a enfiteuse podia fomentar justamente esse tipo de dinamismo urbano.

– Saskia Sassen – The Global City

Importante para mostrar como espaços econômicos se tornam espaços políticos — base fundamental para sua tese de cidades-servas e ecossistemas corporativos.

– Paul Rabinow – French Modern: Norms and Forms of the Social Environment

Ajuda a compreender como sistemas normativos podem ser produzidos por grupos sociais, e não apenas pelo Estado — reforçando a ideia de micrópolis corporativa como unidade normativa.

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