1. Introdução: o Brasil como civilização marítima
Apesar de ser comum tratar o Brasil como um país terrestre, continental e “rodoviário”, a verdade histórica é outra: o Brasil nasceu pelas águas e se formou pelas águas. Desde os tempos coloniais até o Segundo Reinado, o mar e os rios foram a infraestrutura natural que integrou o território, transportou pessoas, circulou mercadorias, disseminou ideias e consolidou a unidade nacional.
Capistrano de Abreu dizia que “o Brasil fez-se pela costa”; Varnhagen via no litoral o eixo propulsor da expansão; Jaime Cortesão enxergava na vocação atlântica uma continuidade do espírito português projetado na América.
Se aceitarmos esse diagnóstico histórico, fica evidente que o Brasil do século XXI sofre de uma mutilação estrutural: abandonou o mar.
2. O colapso da vocação marítima no século XX
Durante o Império, a cabotagem era:
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eficiente,
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barata,
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regular,
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integrada aos portos nacionais,
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e essencial ao abastecimento das províncias.
Com a República, ocorre uma lenta deterioração:
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Rodoviarização forçada desde Vargas
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Perda de investimentos portuários
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Enfraquecimento da Marinha Mercante
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Dependência quase total de caminhões
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Logística vulnerável a greves e gargalos
Hoje, mais de 60% da carga interna circula por rodovias — um contrassenso para um país com 7.367 km de costa navegável.
3. O diagnóstico logístico contemporâneo
O custo logístico brasileiro chega a 12% do PIB, quase o dobro de países integrados por modais equilibrados (EUA, Holanda, Japão).
Essa dependência excessiva do modal rodoviário gera:
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frete caro, repassado ao consumidor;
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congestionamento nas estradas;
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desgaste acelerado de rodovias;
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vulnerabilidade a paralisações;
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dificuldades no escoamento de produção interna;
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assimetria competitiva entre regiões;
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lentidão no desenvolvimento de portos menores.
É nesse contexto que o governo Bolsonaro formula o projeto BR do Mar.
4. A política de cabotagem no governo Bolsonaro: o BR do Mar
Promulgada como Lei 14.301/2022, a política tinha como objetivo central revitalizar a cabotagem como pilar da economia nacional. Tratava-se de uma tentativa explícita de recolocar o Brasil na sua vocação natural: a de civilização marítima.
4.1 Objetivos principais
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Baratear o transporte interno (navio custa 30–50% menos que caminhão)
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Aumentar a concorrência logística, reduzindo monopólios rodoviários
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Expandir a frota de cabotagem por flexibilização do afretamento
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Facilitar a entrada de novas empresas
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Desafogar rodovias, reduzindo custos de manutenção
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Integrar regiões costeiras e nortear o comércio interno
4.2 Medidas-chave
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Simplificação de processos para afretar navios estrangeiros
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Incentivos regulatórios para aumento da frota nacional
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Estímulos para cabotagem de contêineres
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Fortalecimento de portos médios e pequenos
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Ampliação de rotas internas com regularidade comercial
A ideia era transformar o mar em uma BR natural — a estrada mais barata do país.
5. Cabotagem como estratégia de soberania
A reativação da cabotagem é também uma política de soberania nacional, por motivos evidentes:
5.1 Resiliência logística
Em caso de:
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crises de combustíveis,
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greves de caminhoneiros,
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instabilidade geopolítica,
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bloqueios rodoviários,
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perturbações de abastecimento,
a cabotagem cria um sistema paralelo, autônomo e estável de circulação de bens.
5.2 Projeção marítima
Fortalece a presença brasileira no Atlântico Sul — zona estratégica para:
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comércio,
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defesa,
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rotas energéticas,
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mineração submarina,
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vigilância naval.
5.3 Redução do Custo Brasil
Menor frete = produtos mais baratos = aumento de competitividade.
6. A leitura Ouriqueana e civilizacional
Para um olhar espiritual e histórico, como o seu, a cabotagem não é apenas economia: é reencontro com a vocação do Brasil enquanto prolongamento da civilização luso-cristã no Atlântico.
6.1 O mar como herança de Portugal
Portugal estruturou sua missão histórica navegando, e essa missão foi transplantada ao Brasil. Jaime Cortesão, Sérgio Buarque e Gilberto Freyre convergem: o mar moldou não só o território, mas a mentalidade, a política e a cultura.
6.2 O Brasil de Ourique
Se a tradição Ouriqueana vê o Brasil como parte do “milagre continuado” da expansão da fé e da inteligência, então recuperar a cabotagem significa:
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Retomar a expansão do conhecimento e da economia pelo eixo atlântico
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Valorizar a ligação espiritual entre litoral, rios e sertões
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Reintegrar o país por suas vias naturais
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Reavivar a memória marítima da nação
6.3 Sem o mar, o Brasil não cumpre sua vocação
Uma nação atlântica que abandona o mar abandona a si mesma. A cabotagem, nesse sentido, é um meio de ação no sentido olaviano — um instrumento que permite reorganizar a ordem econômica e espiritual do país.
7. Conclusão: cabotagem como futuro e como retorno às origens
O governo Bolsonaro tentou recolocar o Brasil no caminho de sua vocação natural. Seja por limitações políticas, seja por interesses contrários, a política não avançou como poderia — mas o diagnóstico está correto, e a direção, inevitável.
O Brasil:
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é atlântico,
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nasceu pelo litoral,
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expandiu-se pelos rios,
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e só será grande quando voltar a pensar maritimamente.
Recuperar a cabotagem é mais do que uma política: é uma restauração civilizacional.
Bibliografia Essencial
História do Brasil e integração territorial
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Capistrano de Abreu — Capítulos de História Colonial
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Francisco Adolfo Varnhagen — História Geral do Brasil
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Jaime Cortesão — A Carta de Pero Vaz de Caminha; Os Descobrimentos Portugueses
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Sérgio Buarque de Holanda — Monções; Caminhos e Fronteiras
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Gilberto Freyre — Casa-Grande & Senzala; Brasis, Brasil, Brasília
Geopolítica e maritimidade
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Alfred Thayer Mahan — The Influence of Sea Power upon History
-
Élcio Nacur Rezende — Geopolítica do Atlântico Sul
-
Raul Prebisch — textos sobre logística e integração econômica
Políticas contemporâneas e logística
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Lei 14.301/2022 (BR do Mar)
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IPEA — estudos sobre custo logístico brasileiro
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CNI — relatórios sobre infraestrutura e transporte
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Ministério da Infraestrutura — Documentos oficiais sobre cabotagem
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