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sábado, 15 de novembro de 2025

Cabotagem, soberania e a vocação atlântica do Brasil - da integração imperial à agenda logística contemporânea

1. Introdução: o Brasil como civilização marítima

Apesar de ser comum tratar o Brasil como um país terrestre, continental e “rodoviário”, a verdade histórica é outra: o Brasil nasceu pelas águas e se formou pelas águas. Desde os tempos coloniais até o Segundo Reinado, o mar e os rios foram a infraestrutura natural que integrou o território, transportou pessoas, circulou mercadorias, disseminou ideias e consolidou a unidade nacional.

Capistrano de Abreu dizia que “o Brasil fez-se pela costa”; Varnhagen via no litoral o eixo propulsor da expansão; Jaime Cortesão enxergava na vocação atlântica uma continuidade do espírito português projetado na América.

Se aceitarmos esse diagnóstico histórico, fica evidente que o Brasil do século XXI sofre de uma mutilação estrutural: abandonou o mar.

2. O colapso da vocação marítima no século XX

Durante o Império, a cabotagem era:

  • eficiente,

  • barata,

  • regular,

  • integrada aos portos nacionais,

  • e essencial ao abastecimento das províncias.

Com a República, ocorre uma lenta deterioração:

  1. Rodoviarização forçada desde Vargas

  2. Perda de investimentos portuários

  3. Enfraquecimento da Marinha Mercante

  4. Dependência quase total de caminhões

  5. Logística vulnerável a greves e gargalos

Hoje, mais de 60% da carga interna circula por rodovias — um contrassenso para um país com 7.367 km de costa navegável.

3. O diagnóstico logístico contemporâneo

O custo logístico brasileiro chega a 12% do PIB, quase o dobro de países integrados por modais equilibrados (EUA, Holanda, Japão).

Essa dependência excessiva do modal rodoviário gera:

  • frete caro, repassado ao consumidor;

  • congestionamento nas estradas;

  • desgaste acelerado de rodovias;

  • vulnerabilidade a paralisações;

  • dificuldades no escoamento de produção interna;

  • assimetria competitiva entre regiões;

  • lentidão no desenvolvimento de portos menores.

É nesse contexto que o governo Bolsonaro formula o projeto BR do Mar.

4. A política de cabotagem no governo Bolsonaro: o BR do Mar

Promulgada como Lei 14.301/2022, a política tinha como objetivo central revitalizar a cabotagem como pilar da economia nacional. Tratava-se de uma tentativa explícita de recolocar o Brasil na sua vocação natural: a de civilização marítima.

4.1 Objetivos principais

  • Baratear o transporte interno (navio custa 30–50% menos que caminhão)

  • Aumentar a concorrência logística, reduzindo monopólios rodoviários

  • Expandir a frota de cabotagem por flexibilização do afretamento

  • Facilitar a entrada de novas empresas

  • Desafogar rodovias, reduzindo custos de manutenção

  • Integrar regiões costeiras e nortear o comércio interno

4.2 Medidas-chave

  • Simplificação de processos para afretar navios estrangeiros

  • Incentivos regulatórios para aumento da frota nacional

  • Estímulos para cabotagem de contêineres

  • Fortalecimento de portos médios e pequenos

  • Ampliação de rotas internas com regularidade comercial

A ideia era transformar o mar em uma BR natural — a estrada mais barata do país.

5. Cabotagem como estratégia de soberania

A reativação da cabotagem é também uma política de soberania nacional, por motivos evidentes:

5.1 Resiliência logística

Em caso de:

  • crises de combustíveis,

  • greves de caminhoneiros,

  • instabilidade geopolítica,

  • bloqueios rodoviários,

  • perturbações de abastecimento,

a cabotagem cria um sistema paralelo, autônomo e estável de circulação de bens.

5.2 Projeção marítima

Fortalece a presença brasileira no Atlântico Sul — zona estratégica para:

  • comércio,

  • defesa,

  • rotas energéticas,

  • mineração submarina,

  • vigilância naval.

5.3 Redução do Custo Brasil

Menor frete = produtos mais baratos = aumento de competitividade.

6. A leitura Ouriqueana e civilizacional

Para um olhar espiritual e histórico, como o seu, a cabotagem não é apenas economia: é reencontro com a vocação do Brasil enquanto prolongamento da civilização luso-cristã no Atlântico.

6.1 O mar como herança de Portugal

Portugal estruturou sua missão histórica navegando, e essa missão foi transplantada ao Brasil. Jaime Cortesão, Sérgio Buarque e Gilberto Freyre convergem: o mar moldou não só o território, mas a mentalidade, a política e a cultura.

6.2 O Brasil de Ourique

Se a tradição Ouriqueana vê o Brasil como parte do “milagre continuado” da expansão da fé e da inteligência, então recuperar a cabotagem significa:

  • Retomar a expansão do conhecimento e da economia pelo eixo atlântico

  • Valorizar a ligação espiritual entre litoral, rios e sertões

  • Reintegrar o país por suas vias naturais

  • Reavivar a memória marítima da nação

6.3 Sem o mar, o Brasil não cumpre sua vocação

Uma nação atlântica que abandona o mar abandona a si mesma. A cabotagem, nesse sentido, é um meio de ação no sentido olaviano — um instrumento que permite reorganizar a ordem econômica e espiritual do país.

7. Conclusão: cabotagem como futuro e como retorno às origens

O governo Bolsonaro tentou recolocar o Brasil no caminho de sua vocação natural. Seja por limitações políticas, seja por interesses contrários, a política não avançou como poderia — mas o diagnóstico está correto, e a direção, inevitável.

O Brasil:

  • é atlântico,

  • nasceu pelo litoral,

  • expandiu-se pelos rios,

  • e só será grande quando voltar a pensar maritimamente.

Recuperar a cabotagem é mais do que uma política: é uma restauração civilizacional.

Bibliografia Essencial

História do Brasil e integração territorial

  • Capistrano de Abreu — Capítulos de História Colonial

  • Francisco Adolfo Varnhagen — História Geral do Brasil

  • Jaime Cortesão — A Carta de Pero Vaz de Caminha; Os Descobrimentos Portugueses

  • Sérgio Buarque de Holanda — Monções; Caminhos e Fronteiras

  • Gilberto Freyre — Casa-Grande & Senzala; Brasis, Brasil, Brasília

Geopolítica e maritimidade

  • Alfred Thayer Mahan — The Influence of Sea Power upon History

  • Élcio Nacur Rezende — Geopolítica do Atlântico Sul

  • Raul Prebisch — textos sobre logística e integração econômica

Políticas contemporâneas e logística

  • Lei 14.301/2022 (BR do Mar)

  • IPEA — estudos sobre custo logístico brasileiro

  • CNI — relatórios sobre infraestrutura e transporte

  • Ministério da Infraestrutura — Documentos oficiais sobre cabotagem

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