Introdução
Entre as grandes genealogias da inteligência moderna, poucas são tão negligenciadas quanto a que une, num arco coerente, Thorstein Veblen, R. H. Tawney e a Doutrina Social da Igreja. Embora pertençam a tradições aparentemente distintas — Veblen, economista institucionalista e crítico ácido do capitalismo; Tawney, historiador cristão de profunda sensibilidade moral; e a Igreja, guardiã da ordem natural —, existe entre eles uma linha contínua de pensamento que explica a formação do conceito moderno de função social da propriedade e a crítica à sociedade aquisitiva.
Este artigo tem por objetivo demonstrar que R. H. Tawney foi o tradutor moral da crítica vebleniana, convertendo diagnósticos sociológicos em princípios éticos, e oferecendo à Doutrina Social da Igreja a linguagem que faltava para sistematizar a crítica cristã ao capitalismo predatório.
1. Veblen: o diagnóstico sociológico da sociedade predatória
Em The Theory of the Leisure Class (1899), Thorstein Veblen inocula na cultura ocidental uma crítica inédita ao capitalismo moderno. Seu conceito de classe ociosa, que produz rituais de consumo conspícuo e sinais de status improdutivos, revela que grande parte da economia moderna se converteu em espetáculo, e não em criação.
Veblen denuncia:
-
a separação entre “indústria” (produção) e “negócios” (renda extrativa);
-
o parasitismo de proprietários que nada criam;
-
a lógica predatória de acumulação;
-
o individualismo competitivo que dissolve a comunidade.
É uma crítica profundamente verdadeira, mas não teleológica: falta-lhe uma norma moral superior, um fim, um sentido último. Veblen enxerga o “pecado”, mas não dispõe da linguagem para explicar a natureza desse pecado.
2. Entra em cena R. H. Tawney: o moralista que devolveu a teleologia à economia
Em 1920, Tawney publica The Acquisitive Society, um dos livros mais importantes do século XX e o mais subestimado. Ele pega o diagnóstico vebleniano e lhe fornece uma estrutura moral, inserindo-o na longa tradição cristã, medieval e comunitária.
Tawney afirma que a modernidade deslocou a ordem das coisas:
Passamos de uma sociedade funcional para uma sociedade aquisitiva.
Esse é o ponto onde ele supera Veblen.
2.1. A propriedade funcional
Para Tawney, a legitimidade da propriedade repousa na sua função social, conceito que ele tira diretamente do Cristianismo medieval e das corporações de ofício:
-
a propriedade é instrumento, não fim;
-
a propriedade obriga;
-
deve servir à comunidade;
-
seu valor moral depende de sua fecundidade.
Em termos Ouriqueanos, é a propriedade que serve Cristo, pois produz ordem, fecundidade e unidade social.
2.2. O trabalho como vocação
Aqui está o núcleo do pensamento tawneyano: o trabalho não é troca, mas vocação. Essa ideia é a ponte direta para Laborem Exercens (1981), de João Paulo II.
2.3. A crítica moral à sociedade aquisitiva
Tawney denuncia o capitalismo que separa propriedade e responsabilidade, renda e função, lucro e serviço — exatamente o que Veblen havia percebido, mas sem moralizar.
Tawney dá nome ao vício: é pecado social.
Assim, ele se torna o elo perdido entre diagnóstico sociológico e reconstrução ética da ordem econômica.
3. A Doutrina Social da Igreja acolhe Tawney e o eleva ao plano teológico
A partir de Quadragesimo Anno (1931), encontramos uma formulação clara daquilo que Tawney havia sistematizado:
a propriedade tem função social;
a ordem econômica deve servir ao bem comum;
a acumulação improdutiva é intrinsecamente desordenada;
o trabalho é vocação;
o capital sem responsabilidade é moralmente ilegítimo.
Pio XI ecoa The Acquisitive Society quase ponto a ponto — indicando uma influência direta do clima intelectual europeu da época, no qual Tawney era um dos pensadores centrais da reforma social cristã.
A partir daí, a DSI consolida o conceito:
-
Mater et Magistra (1961) reforça a crítica à especulação improdutiva.
-
Laborem Exercens (1981) eleva o trabalho à categoria teológica de participação no ato criador de Deus.
-
Centesimus Annus (1991) condena o consumismo e o lucro dissociado da função – ambos conceitos veblenianos, mas moralmente reformulados por Tawney.
A genealogia é nítida:
Veblen → crítica sociológica
Tawney → crítica moral
Igreja → crítica teológica
4. O conceito moderno de função social da propriedade nasce desse arco intelectual
A expressão constitucional “função social da propriedade” — presente na CF/88 e em diversas constituições europeias — deriva desse triângulo:
-
Veblen denunciou a propriedade ociosa;
-
Tawney deu fundamento moral e comunitário;
-
A DSI a transformou em princípio normativo.
Quando a Constituição brasileira afirma:
“A propriedade atenderá à sua função social”,
ela está repetindo, ainda que inconscientemente, a tese tawneyana-cristã, ela mesma herdeira da crítica vebleniana à improdutividade e ao parasitismo.
Contudo, a versão brasileira é uma casca sem alma: o que era vocação tornou-se técnica jurídica; o que era teleologia tornou-se instrumento de política pública. O espírito medieval-cristão que inspirou Tawney — e que o levou a servir como ponte — se perdeu no juridiquês positivista.
5. Tawney como síntese e como “engenheiro de pontes”
R. H. Tawney fez o que somente grandes intelectuais conseguem:
-
tomou o que havia de verdadeiro em Veblen,
-
eliminou o que havia de mecanicista,
-
elevou ao plano moral cristão,
-
devolveu à cultura intelectual europeia uma noção medieval renovada.
Ele é, portanto, a ponte entre Veblen e a Doutrina Social da Igreja; o restaurador da teleologia da propriedade; o reconstrutor moral da economia; o pai intelectual da função social moderna.
Conclusão
O século XX produziu muitos economistas, sociólogos, teólogos e juristas. Mas poucos produziram a capacidade de unir todos esses campos em um só eixo moral, metafísico e social. Tawney pertence a essa raríssima estirpe.
A genealogia que une Veblen → Tawney → Doutrina Social da Igreja não é apenas uma linha acadêmica; é um caminho de restauração da ordem moral em meio ao caos da modernidade. Tawney mostra que uma civilização só é grande quando sua propriedade é funcional, seu trabalho é vocação e sua riqueza é serviço.
Essa é a lição esquecida — e é precisamente por isso que ela precisa ser recuperada, estudada e aplicada na reconstrução cultural do nosso tempo.
Bibliografia Comentada
1. Thorstein Veblen
VEBLEN, Thorstein. The Theory of the Leisure Class. 1899.
Obra seminal na crítica ao capitalismo moderno. Veblen introduz a noção de consumo conspícuo, mostrando como grande parte da economia contemporânea é movida por símbolos de status e não por necessidades reais. A distinção entre classe ociosa e classe produtiva está no centro de sua crítica à propriedade improdutiva — a mesma que Tawney, vinte anos depois, traduziria em termos morais.
É leitura obrigatória para compreender a raiz sociológica do que depois se tornaria a ideia de função social da propriedade.
VEBLEN, Thorstein. The Theory of Business Enterprise. 1904.
Aqui Veblen distingue indústria (atividade produtiva) de negócios (atividade predatória). Para ele, grande parte da economia moderna é governada por “businessmen” que não produzem nada, mas lucram com controle, especulação e manipulação institucional. Essa crítica penetra diretamente em Tawney, que reinterpretará a improdutividade como pecado social e não apenas como ineficiência.
2. R. H. Tawney
TAWNEY, R. H. The Acquisitive Society. London: G. Bell and Sons, 1920.
A obra central da nossa discussão. Tawney mostra que a sociedade moderna se tornou “aquisitiva”: orientada pela posse, não pela função. Aqui nasce a formulação moderna do princípio que depois será convertido em norma jurídica:
Toda propriedade deve justificar sua função social.
Tawney atualiza a ética medieval da função, fundindo a crítica econômica de Veblen com os princípios morais cristãos. É literalmente o elo perdido entre sociologia e Doutrina Social da Igreja.
TAWNEY, R. H. Religion and the Rise of Capitalism. 1926.
Nesta obra monumental, Tawney descreve como a ética religiosa e comunitária da Idade Média deu lugar ao individualismo econômico moderno. Ele demonstra que a ruptura entre economia e moral é um fenômeno histórico, não natural, abrindo caminho para a reconstrução moral da economia — trabalho que a DSI continuaria. É um complemento fundamental de The Acquisitive Society.
TAWNEY, R. H. Equality. 1931.
Obra em que Tawney articula o conceito de “igualdade funcional”, não niveladora, mas vocacional.
Aqui ele reforça a ideia cristã de que cada pessoa ocupa um lugar próprio na ordem social, não por competição, mas por serviço. É um texto muito próximo de Quadragesimo Anno no espírito e no conteúdo.
3. Doutrina Social da Igreja
LEÃO XIII. Rerum Novarum. 1891.
O ponto de partida da DSI.
Leão XIII não usa ainda a expressão “função social da propriedade”, mas estabelece a base moral:
-
a propriedade é legítima;
-
mas deve servir ao bem comum;
-
o trabalho possui dignidade;
-
a sociedade deve ser orgânica.
Tawney, lendo esta encíclica, moderniza e seculariza esses conceitos para o contexto econômico inglês.
PIO XI. Quadragesimo Anno. 1931.
Documento-chave que incorpora de maneira clara os elementos introduzidos por Tawney:
-
a propriedade tem função social;
-
o lucro não é fim, mas meio;
-
corporações e ordens profissionais são essenciais;
-
condenação da acumulação improdutiva.
É quase impossível ler Quadragesimo Anno sem perceber a influência tawneyana no espírito e na formulação.
JOÃO XXIII. Mater et Magistra. 1961.
Reforça a crítica à especulação financeira e à improdutividade — diretamente ligada às críticas de Veblen, mas agora integradas moralmente pela tradição cristã.
Unifica economia, técnica e moral numa visão orgânica e teleológica da sociedade.
JOÃO PAULO II. Laborem Exercens. 1981.
A obra-prima da teologia do trabalho.
Eleva o conceito de “trabalho como vocação” — formulado de modo filosófico por Tawney — à categoria teológica de participação na obra criadora de Deus.
É aqui que o arco Veblen→Tawney→DSI alcança seu ápice espiritual.
JOÃO PAULO II. Centesimus Annus. 1991.
Atualiza e aprofunda a crítica ao consumismo conspícuo (Veblen) e ao capitalismo aquisitivo (Tawney).
Define o lucro como subordinado à verdade sobre o homem — tese perfeitamente alinhada com a visão tawneyana da propriedade funcional.
4. Estudos complementares
MACPHERSON, C. B. The Political Theory of Possessive Individualism. 1962.
Texto essencial para compreender como o liberalismo transformou propriedade em identidade — o que Tawney combate ao propor a ordem funcional. Ajuda a visualizar o ambiente intelectual que Tawney enfrentava.
POLANYI, Karl. The Great Transformation. 1944.
Embora posterior, Polanyi reforça a tese central tawneyana: a economia moderna se autonomizou da moral. É um estudo de como a sociedade de mercado destrói suas próprias bases humanas se não for moralizada.
BRENNAN, Patrick. Subsidiarity in the Tradition of Catholic Social Doctrine. 2014.
Excelente para entender como a DSI incorpora elementos comunitários, corporativos e funcionais — fundamentos também presentes em Tawney.
O’BRIEN, J. R. H. Tawney and His Times. 1974.
Biografia intelectual que mostra a influência de Tawney sobre movimentos sociais cristãos, trabalhistas e na própria formulação da economia moral europeia do pós-guerra.
5. Bibliografia primária para estudo do conceito de função social da propriedade
CARLOS, José Afonso da. O Princípio da Função Social da Propriedade.
Clássico brasileiro que explica a positivação constitucional da tese, embora sem perceber a genealogia vebleniano-tawneyana. Útil para entender o desdobramento jurídico.
COMPARATO, Fábio Konder. A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos.
Comparato reconhece, embora parcialmente, a matriz cristã da ideia de função social, mas não reconstrói a influência de Tawney. Vale como ponte para o meio jurídico brasileiro.
Nenhum comentário:
Postar um comentário