1. Introdução
Vivemos uma época em que a palavra ciência foi divorciada de sua natureza originária. Ciência passou a significar estatística, modelo matemático, relatório técnico, opinião de especialista — tudo frequentemente dissociado da experiência humana real, da vida concreta e, sobretudo, da verdade.
Mas se existe uma filosofia concreta, fundada na experiência direta e na prudência prática, também deve existir aquilo que podemos chamar de ciência concreta: um modo de conhecer que não é refém de abstrações úteis, mas que se ancora no real, na verdade e na integridade do espírito humano.
A distinção entre ciência concreta e ciência abstrata não é um detalhe técnico: é a diferença entre o conhecimento que conduz ao Caminho, à Verdade e à Vida, e o conhecimento que degenera no animal que mente — o homem que sacrifica a verdade em nome da conveniência imediata, e cuja mente se torna serva da ideologia.
2. A experiência direta como fundamento do conhecimento
Olavo de Carvalho expressou isso com clareza:
“A experiência humana direta sempre será o juiz da ciência, e nunca o contrário.”
Antes de qualquer teoria científica, havia a vida humana: milhões de pessoas vivendo, trabalhando, sofrendo, amando, educando filhos, enterrando seus mortos, buscando sentido.
Essa experiência direta — concreta, encarnada, irrepetível — é o verdadeiro solo sobre o qual qualquer saber legítimo deve crescer.
Sem ela, não existe ciência. Com ela, a ciência encontra seus limites naturais.
A ciência concreta nasce quando:
-
o conhecimento toca a vida real;
-
o que se afirma pode ser provado pelo sabor das coisas;
-
o critério de verdade é o contato com a realidade, e não o prestígio social do discurso.
3. O sabor das coisas: o teste último da realidade
Nenhuma teoria substitui a prova mais simples:
-
o pão é bom?
-
o vinho é autêntico?
-
este caminho é seguro?
-
este homem é confiável?
-
esta ação conduz ao bem?
-
esta experiência faz sentido?
O sabor das coisas — metáfora e realidade — é o tribunal incorruptível do conhecimento.
Ele nos impede de cair na arrogância de acreditar que um modelo estatístico sabe mais do que a experiência vivida por uma geração inteira.
É por isso que a ciência concreta é prudente, humana e verdadeira: ela se submete ao real, não o contrário.
4. O confronto entre o conveniente e sensato, e o conveniente e dissociado da verdade
Aqui está o ponto decisivo. Há duas formas de conveniência:
(1) o conveniente e sensato
— aquilo que é útil porque é verdadeiro
— aquilo que promove o bem
— aquilo que se alinha ao real
— aquilo que é prudente
— aquilo que se conforma ao Logos
(2) o conveniente e dissociado da verdade
— aquilo que é útil porque engana
— aquilo que é politicamente conveniente
— aquilo que serve ao poder, não à realidade
— aquilo que se afunda na ideologia
— aquilo que transforma o homem no “animal que mente”
A ciência concreta pertence ao primeiro tipo. A ciência abstrata-ideológica pertence ao segundo.
A primeira eleva o homem. A segunda o degrada.
5. A ciência concreta aponta para o Logos — e o Logos é Cristo
Toda verdade parcial aponta para a Verdade plena.
Toda ciência verdadeira — porque é humilde e fiel ao real — conduz o homem:
-
ao reconhecimento da ordem do universo,
-
ao respeito aos limites da consciência,
-
à reverência diante do mistério,
-
à percepção de que o real não é invenção humana,
-
ao encontro com o Logos.
E o Logos não é uma abstração filosófica. É uma Pessoa.
A ciência concreta, purificada pelo juízo da experiência, aponta para Cristo — o Caminho, a Verdade e a Vida.
A ciência ideológica aponta para o animal que mente — o homem que acredita poder reinventar a realidade.
6. A ciência abstrata e o nascimento da ideologia
Quando a ciência se afasta da realidade:
-
torna-se instrumento de poder;
-
serve interesses momentâneos;
-
troca a prudência pela utilidade;
-
produz certezas artificiais;
-
fabrica estatísticas que justificam políticas desumanas;
-
transforma-se em dogma sem Deus;
-
sufoca a liberdade em nome da técnica;
-
impõe modelos irreais para moldar pessoas reais.
Essa ciência não é conhecimento — é ideologia com verniz acadêmico.
É a ciência do animal que mente: aquele que prefere o útil ao verdadeiro.
7. A ciência concreta como reconciliação entre vida e conhecimento
A ciência concreta é a única capaz de reconciliar:
-
experiência e teoria;
-
prática e contemplação;
-
prudência e técnica;
-
verdade e utilidade;
-
liberdade e ordem;
-
razão e fé.
Ela nasce da vida, retorna à vida e se verifica na vida.
É o conhecimento que se deixa moldar pelo real — e não o contrário.
É a ciência que o homem vive, antes de medir.
8. Conclusão: a ciência que salva e a ciência que perde
A ciência concreta nos salva da ilusão moderna porque:
-
é honesta,
-
é humana,
-
é enraizada,
-
é humilde,
-
é responsável,
-
é verdadeira.
A ciência abstrata nos perde porque:
-
é mentirosa,
-
é descolada do real,
-
é seduzida pelo poder,
-
é útil demais para ser moral,
-
é perfeita demais para ser verdadeira.
Entre uma e outra, há um abismo.
Um lado nos conduz ao Logos. O outro nos conduz ao animal que mente.
A escolha é epistemológica — mas também espiritual.
Bibliografia
1. Filosofia da Experiência Direta
-
Olavo de Carvalho — A Consciência da Imortalidade
-
Olavo de Carvalho — O Jardim das Aflições
-
Eric Voegelin — Science, Politics and Gnosticism
-
Michael Polanyi — Personal Knowledge
-
Gabriel Marcel — Homo Viator
-
Josef Pieper — Leisure: The Basis of Culture
-
Karol Wojtyła (João Paulo II) — A Pessoa e o Ato
-
Edith Stein — Ser Finito e Ser Eterno
2. Filosofia da Verdade e do Real
-
Aristóteles — Ética a Nicômaco
-
Aristóteles — Metafísica
-
Santo Tomás de Aquino — Suma Teológica
-
Romano Guardini — The End of the Modern World
-
Étienne Gilson — O Realismo Metafísico
-
Joseph Ratzinger — Introdução ao Cristianismo
3. Crítica ao Cientificismo e à Ciência Abstrata
-
Mary Midgley — Science as Salvation
-
Paul Feyerabend — Against Method
-
Thomas Kuhn — A Estrutura das Revoluções Científicas
-
Hans-Georg Gadamer — Verdade e Método
-
Marshall McLuhan — Understanding Media (sobre como tecnologia distorce percepções de verdade)
4. Ideologia, Mentira e Dissociação da Realidade
-
Hannah Arendt — Origens do Totalitarismo
-
Karl Popper — The Open Society and Its Enemies
-
Richard Weaver — Ideas Have Consequences
-
Aleksandr Solzhenitsyn — O Arquipélago Gulag
-
Feliks Koneczny — O Sistema de Civilizações (em várias traduções e edições)
5. Filosofia Cristã da Ciência e do Conhecimento
-
Stanley Jaki — The Savior of Science
-
Pierre Duhem — The Aim and Structure of Physical Theory
-
John Polkinghorne — Science and Providence
-
C. S. Lewis — Milagres
-
Blaise Pascal — Pensées
Nenhum comentário:
Postar um comentário