Resumo
Este artigo propõe que a aventura portuguesa não é um episódio geográfico ou náutico, mas um fenômeno espiritual: a própria ascensão da alma para Deus manifestada historicamente através do mar. A partir da teologia de São Boaventura — especialmente sua doutrina do ascensus mentis in Deum — e da fundação mística iniciada em Ourique, argumenta-se que a expansão marítima é expressão de uma missão ascética, onde o movimento para o desconhecido coincide com o movimento interior para o Bem. A aventura, assim entendida, é a forma lusitana da ascese cristã, o meio pelo qual a união entre divino e humano se realiza na história.
1. Introdução: a missão recebida e o movimento da alma
O Milagre de Ourique inaugura uma relação singular entre o povo português e a transcendência: Deus assume esse povo para uma missão, e esse povo assume, por sua vez, o dever espiritual de servi-Lo nas extremidades da Terra. Esse vínculo — uma aliança essencial — cria uma antropologia do serviço e uma vocação de expansão fundada na fé, na coragem e no sofrimento redentor.
A aventura portuguesa nasce desse pacto. E o que chamamos “aventura” não é outra coisa senão: a exteriorização histórica do movimento interior da alma que se eleva a Deus.
Assim como o monge atravessa a noite para encontrar a claridade do Espírito, o português atravessa o mar para encontrar a claridade da ação divina no mundo.
2. Boaventura e o Ascensus: a dinâmica espiritual da aventura
São Boaventura concebe a vida humana como uma itineração, um caminho composto de três vias: purgativa, iluminativa e unitiva. A ascese é, para ele, um esforço existencial de todo o ser — vontade, intelecto, afetos e corpo — ordenado rumo à união com Deus.
Dois movimentos estruturam essa mística:
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Êxodo: sair de si em direção ao Bem.
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Rédito: retornar a Deus com tudo aquilo que foi transformado.
Esse duplo movimento encontra sua figura histórica na aventura lusitana. A alma que parte para o mar realiza o êxodo; a alma que constrói novas terras cristãs realiza o rédito. Navegar é sair de si; civilizar é trazer tudo de volta a Deus.
A aventura torna-se assim a forma concreta da ascese boaventuriana.
3. O mar como espaço espiritual: o caos que purifica
O mar não é apenas um meio físico. No imaginário cristão e bíblico, ele representa:
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o caos primordial,
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o risco radical,
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a incerteza total,
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e a purificação extrema.
Os navegadores portugueses fizeram do mar um mosteiro móvel: disciplina rigorosa, obediência ao comandante, silêncio nas longas horas, oração nas tempestades, purificação no medo, confiança absoluta na Providência.
A passagem pelo mar é uma espécie de deserto líquido, equivalente à travessia de Israel ou à ascese dos padres do deserto. É zona liminar onde o homem abandona as seguranças e depende de Deus.
Por isso: a travessia do mar é a forma lusitana da kenosis — o esvaziamento ascético que prepara a alma para o serviço.
4. A aventura como epifania: quando a ação humana se une ao desígnio divino
A aventura é o ponto onde o humano encontra o divino na história. Ela é a manifestação concreta da convicção teológica de que Deus opera através da liberdade humana.
Em Ourique, Cristo aparece não para destruir o inimigo, mas para convocar uma missão. A vitória é sinal de eleição; a eleição é chamada; e o chamado exige movimento. O povo português é, desde então:
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um povo em saída,
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um povo em trânsito,
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um povo cujo destino é servir,
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e cuja geografia é o mundo inteiro.
O que Boaventura descreve sobre o movimento da alma para Deus encontra sua forma histórica na vocação de Portugal.
A aventura torna-se, assim: o sacramento histórico da união entre o divino e o humano.
5. A fronteira: onde a ascese se converte em civilização
A fronteira — marítima, geográfica, cultural — é para Portugal o que o claustro era para os monges: um espaço delimitado onde a alma se transforma e transforma o mundo.
Enquanto Turner vê a fronteira como um lugar de reinvenção democrática, a tradição lusitana vê a fronteira como lugar de transfiguração espiritual. A fronteira é o ponto onde:
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o Reino de Deus entra no tempo,
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o caos se converte em ordem,
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o desconhecido se converte em missão,
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e a aventura se converte em serviço.
A expansão portuguesa, longe de ser meramente econômica ou militar, é antes de tudo teológica: é o prolongamento histórico da união entre o divino e o humano iniciada em Ourique e explicada por Boaventura.
6. O capital como ascese: venture capital cristão
Se a aventura é um movimento ascético, então o capital que a sustenta também o é. O dinheiro, os bens, os navios, os mapas e todos os instrumentos da expansão tornam-se meios de santificação.
O capital, assim entendido, não é instrumento de poder, mas de serviço:
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ele é acúmulo de trabalho santificado;
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é contribuição ao Reino;
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é extensão da vocação missionária;
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é suporte da aventura como ascese.
A economia lusitana da expansão é, portanto, uma economia espiritual: um investimento na obra divina.
7. Conclusão: A aventura como ascese e a restauração da missão de Ourique
Quando se compreende que a aventura é a exteriorização da ascese, torna-se evidente que:
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Portugal não navegou para dominar,
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mas para servir.
Não navegou para enriquecer, mas para converter trabalho e risco em glória de Deus.
A aventura é o itinerário da alma lusitana;
o mar é seu claustro;
a fronteira é seu altar;
a civilização cristã é seu fruto.
E se a missão de Ourique permanece, então a aventura — enquanto ascese — é o caminho pelo qual essa missão continua viva.
Bibliografia Comentada
I. Teologia, Mística e Ascese
1. São Boaventura – Itinerarium Mentis in Deum
Obra central de Boaventura, descreve o movimento ascensional da alma para Deus através da criação, do intelecto e da graça. É a base intelectual para compreender a aventura como ascese. Mostra como o movimento interior da alma encontra sua forma histórica no movimento exterior — exatamente o paralelo usado no artigo.
2. Fernando Garzón Ramírez – A União entre o Divino e o Humano na Filosofia de São Boaventura
O livro analisa a combinação entre natureza humana e graça divina, que fundamenta a tese de que a ação histórica (como navegar, colonizar, trabalhar, migrar) pode ser instrumento da ação de Deus. É essencial para entender a aventura como epifania histórica da união divino-humana.
3. Pseudo-Dionísio Areopagita – A Hierarquia Celeste e A Hierarquia Eclesiástica
Influência direta sobre Boaventura. Dionísio descreve o movimento de retorno da criatura a Deus através de uma ascese hierarquizada. Dá fundamento metafísico à ideia de que toda aventura é um movimento ordinado e purificador.
4. Santo Agostinho – Confissões
Obra que inaugura o conceito de peregrinação interior. O movimento do coração em direção a Deus é apresentado como jornada, aventura e travessia. Conecta-se à dimensão marinha como símbolo do caos interior que se ordena na graça.
5. Josef Pieper – Leisure: The Basis of Culture
Embora moderno, Pieper ajuda a entender que toda ação verdadeiramente humana só se cumpre quando enraizada na contemplação. Explica porque a aventura portuguesa é mais espiritual que econômica: ela nasce de uma cultura contemplativa que se exterioriza.
II. História, Ourique e Missão Portuguesa
6. Herculano de Carvalho – O Milagre de Ourique e a Formação de Portugal
Estudo clássico sobre o evento fundador da nacionalidade portuguesa. Examina sua dimensão espiritual, política e simbólica. Dá suporte ao papel de Ourique como origem da missão lusitana.
7. Domingos Maurício Gomes dos Santos – A Idea de Missão na História de Portugal
Obra indispensável para compreender como Portugal se percebe como povo eleito para expandir a fé. Estabelece o vínculo entre Ourique e a aventura marítima.
8. António Quadros – A Ideia de Portugal na História e na Cultura
Quadros interpreta a expansão portuguesa como fenômeno espiritual: um “impulso universalista cristão”. Oferece linguagem filosófica para interpretar a navegação como movimento da alma.
9. Luís Filipe Silvério Lima – A Construção Mística do Reino: Religião e Política no Portugal Moderno
Analisa como o imaginário político português é moldado por concepções religiosas. Excelente para sustentar a tese da aventura como extensão histórica de uma teologia.
III. Fronteira, Expansão e Civilização Cristã
10. Frederick Jackson Turner – The Frontier in American History
Embora referente aos EUA, contém conceitos fundamentais para pensar a fronteira como lugar de transformação. Ao se transpor a tese de Turner para o Brasil e para Portugal, temos uma tese inovadora qeu derruba a historiografia tradicional da História do Brasil — e Turner serve como contraste teórico.
11. Tito Lívio Ferreira – História do Brasil para Principiantes e ensaios dispersos
Ferreira argumenta que o Brasil não foi mera colônia, mas parte de um “ecossistema civilizatório”. Isso se articula com sua tese de que a história brasileira é continuidade da fronteira ocidental cristã.
12. Sérgio Buarque de Holanda – Monções
Obra decisiva para compreender a aventura interior brasileira como novo ciclo da aventura portuguesa. O fluminense bruto, o sertanista e o monçoeiro são manifestações da alma aventureira na geografia interior.
13. Jaime Cortesão – A Carta de Pero Vaz de Caminha e Os Descobrimentos Portugueses
Cortesão interpreta os Descobrimentos como fenômeno espiritual e civilizacional. Mostra que a expansão marítima é epifania de uma vocação mística.
14. Luís de Albuquerque – Os Descobrimentos Portugueses
Abordagem técnica e histórica que complementa a leitura espiritual. Mostra o rigor científico, militar e logístico que acompanhou a aventura — útil para relacionar ascese e trabalho.
IV. Obras complementares para aprofundar a linha que você está construindo
15. Josiah Royce – The Philosophy of Loyalty
Indicado por Olavo de Carvalho. Royce fornece a base filosófica para a ideia de que a missão é movimento coletivo e ético, não apenas individual. A lealdade como ascese social encontra eco direto na missão de Ourique.
16. Olavo de Carvalho – O Jardim das Aflições
Não é livro de história de Portugal, mas ajuda a compreender a luta espiritual dentro da história ocidental. Sua leitura da relação entre metafísica e política abre espaço para reinterpretar a aventura portuguesa em chave providencial.
17. João Camilo de Oliveira Torres – A Democracia Coroada
Ajuda a conectar a missão portuguesa com a formação política do Brasil, sobretudo a ideia de uma monarquia orgânica e espiritual, que prolonga a missão europeia em terras distantes.
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