Nas redes sociais, a maior parte das interações se perde no ruído da curiosidade desordenada. Perguntas precipitadas, comentários sem estudo prévio, opiniões não fundamentadas — tudo isso cria um ambiente onde a palavra perde densidade e onde o espírito humano se dispersa. Contra essa tendência, há uma filosofia que permanece atual, viva, rigorosa: a distinção medieval entre curiositas e studiositas, expressa com maestria por São Boaventura, o Doutor Seráfico.
Este artigo tem por objetivo mostrar como essa distinção pode — e deve — ser aplicada à prática cotidiana da vida intelectual, inclusive no contexto digital contemporâneo.
1. Curiositas: o vício da dispersão
Para São Boaventura, assim como para Santo Agostinho e São Tomás, a curiositas não é simplesmente a curiosidade no sentido comum, mas um desvio do intelecto, um movimento desordenado da alma em busca de conhecimento sem finalidade reta. Sua marca é a dispersão:
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buscar saber por vaidade;
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perguntar sem antes estudar;
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colecionar informações sem hierarquia;
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ocupar-se com irrelevâncias;
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falar sem compreender.
No ambiente das redes sociais, esse vício se manifesta com clareza: perfis visitados sem leitura cuidadosa, perguntas mal formuladas, exigências apressadas de explicação, uma sede por novidades que não corresponde a nenhum propósito moral ou intelectual.
A curiositas é, portanto, um ruído espiritual.
2. Studiositas: a virtude que ordena o intelecto à verdade
A studiositas, ao contrário, é a virtude que dirige o desejo natural de saber para o bem. Não se trata apenas de ler muito, mas de ler com finalidade, ordem, hierarquia e retidão de espírito.
São Boaventura, no De Reductione Artium ad Theologiam, explica que todo conhecimento deve ser reduzido — isto é, reconduzido — ao seu princípio último, que é Deus, a Verdade em si. Logo:
“O estudo, quando orientado para o bem, é um ato de caridade intelectual.”
Praticar a studiositas significa:
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ler antes de perguntar;
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compreender o que já foi dito antes de acrescentar algo;
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submeter-se à ordem da verdade;
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aperfeiçoar o intelecto para servir ao próximo.
É a virtude do apetite racional que se submete à realidade e à hierarquia dos bens.
3. A ética do interlocutor: estudo antes da fala
Quando alguém se aproxima de um autor, um pesquisador ou um pensador sem ter estudado nada do que ele escreve, algo essencial é violado: a ética do interlocutor.
Perguntar é uma forma de falar; e falar, sem fundamento, é sempre imprudente. Como dizia Olavo de Carvalho — ecoando a tradição medieval:
“Estudar antes de falar.”
Aplicado à vida digital, isso significa:
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ler o perfil antes de interagir;
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compreender o contexto antes de formular perguntas;
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evitar perguntas “imbecis” por falta de estudo prévio;
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respeitar o tempo do outro ao fazer perguntas pertinentes.
Quem não cumpre esse mínimo gesto de ordem intelectual demonstra que não veio para dialogar; veio para dispersar.
Por isso, bloquear tais pessoas não é intolerância, mas higiene do espírito.
4. A seleção natural das inteligências: da importância de privilegiar os estudiosos
Em uma época marcada por superficialidade, exige-se do interlocutor um mínimo de ascese intelectual. Por isso, é natural privilegiar aqueles que:
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leem com atenção;
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estudam sem pressa;
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se aproximam com seriedade;
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fazem perguntas densas;
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mostram interesse verdadeiro na continuidade do pensamento.
Esse tipo de pessoa é bem-vinda porque pratica a estudiosidade — e a estudiosidade é o único terreno fértil para qualquer diálogo elevado.
Já aqueles movidos pela curiosidade dispersa — que aparecem, perguntam sem ler nada, querem respostas prontas e não demonstram esforço — simplesmente não têm lugar em um espaço ordenado pela busca da verdade.
5. A presença digital como extensão do espírito
O perfil digital é uma extensão da pessoa. Logo, manter esse espaço ordenado é uma forma de conservar a própria integridade intelectual. E se a tradição cristã ensina que a alma se forma pelo que contempla, então também no ambiente digital é preciso filtrar:
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o que se lê;
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o que se responde;
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com quem se fala;
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de quem se recebe perguntas.
A vida intelectual é um ato de responsabilidade espiritual — ainda mais quando se escreve para um público formado ou em formação.
Conclusão: A vida intelectual exige ordem, e a ordem exige studiositas
Aplicar São Boaventura à prática das redes sociais é mais fácil do que parece. Basta seguir sua regra fundamental:
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fugir da curiositas, que dispersa, distrai e turva;
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cultivar a studiositas, que ordena, purifica e eleva.
A comunicação, para ser verdadeira, exige estudo. O diálogo, para ser frutífero, exige preparação. O questionamento, para ser legítimo, exige compreensão prévia.
Quem se aproxima com estudiosidade encontrará portas abertas. Quem chega com curiosidade desordenada encontrará apenas silêncio — ou o bloqueio que preserva a ordem do espírito.
Bibliografia
Fontes Primárias
São Boaventura
-
Itinerarium Mentis in Deum (Itinerário da Mente para Deus).
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De Reductione Artium ad Theologiam (A Redução das Artes à Teologia).
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Breviloquium.
-
Legenda Maior S. Francisci.
Santo Agostinho
-
De Trinitate.
-
Confessiones.
-
De Doctrina Christiana.
(Especialmente passagens sobre curiositas como vício da vontade).
São Tomás de Aquino
-
Suma Teológica, II-II, q. 167 (tratado específico sobre curiositas e studiositas).
-
Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo.
Fontes Secundárias
-
GILSON, Étienne. A Filosofia de São Boaventura.
-
COUSINS, Ewert. Bonaventure and the Coincidence of Opposites.
-
DELIO, Ilia. Simply Bonaventure: An Introduction to His Life, Thought, and Writings.
-
HAYES, Zachary. Bonaventure: Mystical Writings.
-
PIEPER, Josef. As Virtudes Fundamentais (especialmente o capítulo sobre studiositas).
-
OLAVO DE CARVALHO. O Jardim das Aflições; O Imbecil Coletivo; aulas e conferências sobre ética intelectual.
-
LECLERCQ, Jean. O Amor das Letras e o Desejo de Deus. (Clássico sobre a espiritualidade do estudo).
-
CHENU, M.-D. Introdução ao estudo de São Tomás de Aquino.
-
VERGEZ, André. A Filosofia Medieval.
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