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quinta-feira, 13 de novembro de 2025

A virtude da estudiosidade e a ética do interlocutor: notas sobre a filosofia de São Boaventura, aplicada à vida digital

Nas redes sociais, a maior parte das interações se perde no ruído da curiosidade desordenada. Perguntas precipitadas, comentários sem estudo prévio, opiniões não fundamentadas — tudo isso cria um ambiente onde a palavra perde densidade e onde o espírito humano se dispersa. Contra essa tendência, há uma filosofia que permanece atual, viva, rigorosa: a distinção medieval entre curiositas e studiositas, expressa com maestria por São Boaventura, o Doutor Seráfico.

Este artigo tem por objetivo mostrar como essa distinção pode — e deve — ser aplicada à prática cotidiana da vida intelectual, inclusive no contexto digital contemporâneo.

1. Curiositas: o vício da dispersão

Para São Boaventura, assim como para Santo Agostinho e São Tomás, a curiositas não é simplesmente a curiosidade no sentido comum, mas um desvio do intelecto, um movimento desordenado da alma em busca de conhecimento sem finalidade reta. Sua marca é a dispersão:

  • buscar saber por vaidade;

  • perguntar sem antes estudar;

  • colecionar informações sem hierarquia;

  • ocupar-se com irrelevâncias;

  • falar sem compreender.

No ambiente das redes sociais, esse vício se manifesta com clareza: perfis visitados sem leitura cuidadosa, perguntas mal formuladas, exigências apressadas de explicação, uma sede por novidades que não corresponde a nenhum propósito moral ou intelectual.

A curiositas é, portanto, um ruído espiritual.

2. Studiositas: a virtude que ordena o intelecto à verdade

A studiositas, ao contrário, é a virtude que dirige o desejo natural de saber para o bem. Não se trata apenas de ler muito, mas de ler com finalidade, ordem, hierarquia e retidão de espírito.

São Boaventura, no De Reductione Artium ad Theologiam, explica que todo conhecimento deve ser reduzido — isto é, reconduzido — ao seu princípio último, que é Deus, a Verdade em si. Logo:

“O estudo, quando orientado para o bem, é um ato de caridade intelectual.”

Praticar a studiositas significa:

  • ler antes de perguntar;

  • compreender o que já foi dito antes de acrescentar algo;

  • submeter-se à ordem da verdade;

  • aperfeiçoar o intelecto para servir ao próximo.

É a virtude do apetite racional que se submete à realidade e à hierarquia dos bens.

3. A ética do interlocutor: estudo antes da fala

Quando alguém se aproxima de um autor, um pesquisador ou um pensador sem ter estudado nada do que ele escreve, algo essencial é violado: a ética do interlocutor.

Perguntar é uma forma de falar; e falar, sem fundamento, é sempre imprudente. Como dizia Olavo de Carvalho — ecoando a tradição medieval:

“Estudar antes de falar.”

Aplicado à vida digital, isso significa:

  • ler o perfil antes de interagir;

  • compreender o contexto antes de formular perguntas;

  • evitar perguntas “imbecis” por falta de estudo prévio;

  • respeitar o tempo do outro ao fazer perguntas pertinentes.

Quem não cumpre esse mínimo gesto de ordem intelectual demonstra que não veio para dialogar; veio para dispersar.

Por isso, bloquear tais pessoas não é intolerância, mas higiene do espírito.

4. A seleção natural das inteligências: da importância de privilegiar os estudiosos

Em uma época marcada por superficialidade, exige-se do interlocutor um mínimo de ascese intelectual. Por isso, é natural privilegiar aqueles que:

  • leem com atenção;

  • estudam sem pressa;

  • se aproximam com seriedade;

  • fazem perguntas densas;

  • mostram interesse verdadeiro na continuidade do pensamento.

Esse tipo de pessoa é bem-vinda porque pratica a estudiosidade — e a estudiosidade é o único terreno fértil para qualquer diálogo elevado.

Já aqueles movidos pela curiosidade dispersa — que aparecem, perguntam sem ler nada, querem respostas prontas e não demonstram esforço — simplesmente não têm lugar em um espaço ordenado pela busca da verdade.

5. A presença digital como extensão do espírito

O perfil digital é uma extensão da pessoa. Logo, manter esse espaço ordenado é uma forma de conservar a própria integridade intelectual. E se a tradição cristã ensina que a alma se forma pelo que contempla, então também no ambiente digital é preciso filtrar:

  • o que se lê;

  • o que se responde;

  • com quem se fala;

  • de quem se recebe perguntas.

A vida intelectual é um ato de responsabilidade espiritual — ainda mais quando se escreve para um público formado ou em formação.

Conclusão: A vida intelectual exige ordem, e a ordem exige studiositas

Aplicar São Boaventura à prática das redes sociais é mais fácil do que parece. Basta seguir sua regra fundamental:

  • fugir da curiositas, que dispersa, distrai e turva;

  • cultivar a studiositas, que ordena, purifica e eleva.

A comunicação, para ser verdadeira, exige estudo. O diálogo, para ser frutífero, exige preparação. O questionamento, para ser legítimo, exige compreensão prévia.

Quem se aproxima com estudiosidade encontrará portas abertas. Quem chega com curiosidade desordenada encontrará apenas silêncio — ou o bloqueio que preserva a ordem do espírito.

Bibliografia

Fontes Primárias

São Boaventura

  • Itinerarium Mentis in Deum (Itinerário da Mente para Deus).

  • De Reductione Artium ad Theologiam (A Redução das Artes à Teologia).

  • Breviloquium.

  • Legenda Maior S. Francisci.

Santo Agostinho

  • De Trinitate.

  • Confessiones.

  • De Doctrina Christiana.
    (Especialmente passagens sobre curiositas como vício da vontade).

São Tomás de Aquino

  • Suma Teológica, II-II, q. 167 (tratado específico sobre curiositas e studiositas).

  • Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo.

Fontes Secundárias

  • GILSON, Étienne. A Filosofia de São Boaventura.

  • COUSINS, Ewert. Bonaventure and the Coincidence of Opposites.

  • DELIO, Ilia. Simply Bonaventure: An Introduction to His Life, Thought, and Writings.

  • HAYES, Zachary. Bonaventure: Mystical Writings.

  • PIEPER, Josef. As Virtudes Fundamentais (especialmente o capítulo sobre studiositas).

  • OLAVO DE CARVALHO. O Jardim das Aflições; O Imbecil Coletivo; aulas e conferências sobre ética intelectual.

  • LECLERCQ, Jean. O Amor das Letras e o Desejo de Deus. (Clássico sobre a espiritualidade do estudo).

  • CHENU, M.-D. Introdução ao estudo de São Tomás de Aquino.

  • VERGEZ, André. A Filosofia Medieval.

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