1. O sentido originário em Bluteau: “lavrar” como fundamento da vida civil
Quando Bluteau define colónia como unidade cuja finalidade é lavrar o solo, ele está usando lavrar no sentido amplo do século XVII: ordenar a terra, torná-la produtiva, prepará-la para a vida humana.
Lavrar implicava:
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cultivar;
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construir;
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estruturar a convivência;
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produzir abundância;
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transformar um espaço bruto em espaço humano.
Ou seja: lavrar é dominar a criação com justiça, no sentido bíblico de Gênesis. É a base mesma da civilização.
2. A atualização contemporânea: lavrar = ocupar, ordenar, santificar
Nesta formulação que porponho, que está profundamente alinhada a uma visão teológica clássica, “lavrar” hoje não significa apenas cultivar o solo, mas: ocupar a terra de forma produtiva e justa, de modo que as pessoas se santifiquem através do trabalho — de todo e qualquer trabalho.
Isso significa três coisas:
2.1. O trabalho é mediador da santidade (Escrivá)
Aqui entra São Josemaría Escrivá, que recoloca o trabalho — qualquer trabalho — como lugar de encontro com Deus.
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O escritório é um campo.
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O laboratório é um campo.
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A oficina é um campo.
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A empresa é um campo.
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O código-fonte é um campo.
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A escrita é um campo.
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O estudo é um campo.
Lavrar, modernamente, é trabalhar com sentido de missão e oferta, tornando presente a providência na rotina ordinária.
2.2. O trabalho ordena o mundo social (Tawney)
Tawney, especialmente em The Acquisitive Society (1920), demonstra que a propriedade só se justifica se cumprir uma função social, que ele define como: usar os bens de forma a contribuir para o bem comum da comunidade que deles depende.
Ou seja, propriedade é legítima se:
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estiver ordenada ao trabalho e não ao mero acúmulo, enquanto um fim em si mesmo;
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produzir bens para a sociedade;
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permitir a participação de outros nos frutos;
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gerar oportunidades reais de vida.
Tawney está dizendo, em termos sociológicos, o que Escrivá dirá em termos espirituais: propriedade e trabalho existem para servir à formação moral da sociedade.
E é aqui que a tese brilha:
2.3. Lavrar a terra = realizar a função social da propriedade no seu sentido mais amplo
Quando se afirma que lavrar hoje significa ocupar produtivamente o território, estamos dizendo que a função social da propriedade (no sentido original de Tawney) é o equivalente moderno do “lavrar” de Bluteau.
É a mesma ideia, só que com outra linguagem:
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Bluteau: lavrar → preparar o solo para o bem humano
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Tawney: propriedade → servir ao bem comum pela produção
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Escrivá: trabalho → santificar e ordenar o mundo
No fundo, é a mesma estrutura metafísica, atravessando três séculos.
3. O ponto de degradação: o positivismo jurídico brasileiro
Ao perder o fundamento moral, a expressão “função social da propriedade” o postivitismo jurídico brasileiro transformou em fórmula vazia, repetida mecanicamente sem o sentido espiritual, econômico e antropológico que ela tem em Tawney.
O positivismo:
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isolou o conceito da sua base moral;
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o transformou em instrumento retórico de políticas estatais;
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amputou sua dimensão vocacional e civilizatória;
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reduziu a propriedade à mera titularidade regulada por normas.
O resultado: a letra permaneceu, mas o espírito morreu.
O que estamos fazendo aquié justamente o caminho inverso: restaurando o espírito do conceito original e modo a inseri-lo numa teoria mais ampla da ocupação produtiva e santificante do território.
4. A convergência final: Bluteau • Escrivá • Tawney
O que se surge é uma definição moderna e fiel ao passado:
Lavrar a terra é ocupar, ordenar e transformar o território por meio do trabalho — qualquer trabalho — de modo que o ser humano se una a Deus e construa uma civilização fundada na justiça, na abundância, na solidariedade e na vocação.
Assim, a colônia como empresa-ecossistema não é só agrícola: é o modelo matriz da sociedade — porque é o primeiro lugar em que o homem realiza esse tríplice movimento:
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trabalha;
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ordena o mundo;
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aproxima-se de Deus.
É por isso que é certp afirma que a definição de Bluteau, lida à luz de Escrivá e Tawney, revela a verdadeira natureza da colônia, da empresa e da micrópolis.
Bibliografia Comentada
1. Raphael Bluteau — Vocabulário Portuguez e Latino (1712–1728)
A base filológica do argumento. A definição de colónia como comunidade agrícola voltada a lavrar a terra revela o sentido original do termo antes da expansão imperial moderna. Bluteau mostra que lavrar implica ordenar a terra para torná-la habitável e produtiva, não apenas cultivar. É a matriz conceitual da colônia como organização socioeconômica.
2. São Josemaría Escrivá — Caminho, Sulco, Forja, Homilia “Trabalho de Deus” (1930–1975)
A doutrina espiritual do Opus Dei sobre o trabalho como via de santificação e ordenação cristã do mundo. Escrivá amplia o conceito tradicional de “campo” para tudo o que é trabalho humano. Ele fornece o complemento teológico perfeito à definição de Bluteau: lavrar hoje é trabalhar santificando e ordenando todas as coisas a Cristo. Essa visão fundamenta a ideia de empresa como lugar de santificação e da ocupação produtiva como vocação.
3. R. H. Tawney — The Acquisitive Society (1920)
Obra-prima da crítica social cristã da economia moderna. Tawney define claramente a função social da propriedade, entendendo propriedade como responsabilidade pública e vocacional, não como mero direito subjetivo. Ele argumenta que toda forma de propriedade deve ser justificada pelo serviço produtivo que presta à comunidade. É aqui que a tese se fortalece: o lavrar de Bluteau e o trabalhar santamente de Escrivá encontram seu equivalente econômico e sociológico em Tawney.
4. R. H. Tawney — Religion and the Rise of Capitalism (1926)
Complementa The Acquisitive Society ao explicar como conceitos cristãos moldaram a economia europeia. Tawney mostra que sem a ética religiosa não há compreensão de trabalho, propriedade, justiça e dever — crítica direta à visão positivista. Relevante para sustentar a tese sobre a perda do sentido moral da propriedade no direito brasileiro contemporâneo.
5. Max Weber — A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905)
Embora se critique, justificadamente, o imaginário protestante como base revolucionária, a obra é fundamental para se entender como diferentes visões teológicas moldam o conceito de trabalho. Auxilia na comparação entre o ethos protestante (ascese intramundana) e o ethos católico ibérico (vocação orgânica e comunitária), útil para reforçar a especificidade da colônia luso-católica.
6. Charles R. Boxer — The Portuguese Seaborne Empire (1969)
Clássico absoluto sobre o funcionamento social do império português. Boxer mostra que as primeiras colônias eram unidades econômicas orgânicas, muito próximas do que hoje chamamos de empresa-ecossistema. Confirma historicamente a leitura de que lavrar implicava construir sociedade, não só cultura agrícola.
7. Sérgio Buarque de Holanda — Raízes do Brasil (1936)
Não apenas um clássico da sociologia brasileira, mas um estudo profundo da formação da colônia como estrutura social e econômica. Releva especialmente o capítulo sobre a “moldagem da terra” e o papel da família e da casa-grande como células organizacionais — tudo muito próximo à ideia de micrópole embrionária.
8. Capistrano de Abreu — Capítulos de História Colonial (1907)
A obra mais precisa sobre o nascimento das colônias brasileiras enquanto unidades de trabalho, parentesco e mando. Essencial para fundamentar empiricamente a noção da colônia como empresa organizada para “lavrar”. É uma das fontes históricas mais sólidas do período.
9. Alasdair MacIntyre — Após a Virtude (1981)
MacIntyre define “práticas” como atividades humanas que têm bens internos, exigem virtude e formam comunidades. A colônia, a empresa, a micrópolis — tudo isso é, na sua formulação, uma prática que exige virtudes e que ordena a vida moral. Ajuda a articular o fio ético que une Bluteau, Tawney e Escrivá.
10. Charles Taylor — Sources of the Self (1989)
Taylor mostra como a identidade moral moderna é formada a partir de horizontes de sentido herdados de tradições religiosas e filosóficas. Útil para situar a tese da santificação através do trabalho dentro de uma teoria da modernidade que não reduz o humano ao econômico - o que fortalece a crítica ao positivismo.
11. Luís Filipe Alencastro — O Trato dos Viventes (2000)
Analisa a colônia brasileira como sistema econômico interatlântico, mostrando as redes de trabalho e produção que configuram a vida colonial como protótipo de ecossistema socioeconômico. Demonstra como a colônia era um organismo vivo que integrava produção, cultura e ordem política.
12. Gilberto Freyre — Casa-Grande & Senzala (1933)
Apesar das limitações, é essencial para entender a colônia como sistema social e moral. A casa-grande aparece como núcleo de poder, trabalho, religião e cultura — uma empresa ecossistêmica pré-moderna, compatível com o conceito de micrópolis rural.
13. John Finnis — Natural Law and Natural Rights (1980)
Importante para a crítica ao positivismo jurídico brasileiro: Finnis recoloca o direito dentro da moral prática, mostrando que toda norma jurídica tem fim teleológico no bem comum. Dá base filosófica sólida à crítica que é feita ao esvaziamento da função social da propriedade feita pelo positivismo, durante o processo de elaboração da Constituição em 1988.
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