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terça-feira, 25 de novembro de 2025

Sobre o significado moderno de lavrar a terra hoje : da agricultura à função social da propriedade fundada na santificação através do trabalho

1. O sentido originário em Bluteau: “lavrar” como fundamento da vida civil

Quando Bluteau define colónia como unidade cuja finalidade é lavrar o solo, ele está usando lavrar no sentido amplo do século XVII: ordenar a terra, torná-la produtiva, prepará-la para a vida humana.

Lavrar implicava:

  • cultivar;

  • construir;

  • estruturar a convivência;

  • produzir abundância;

  • transformar um espaço bruto em espaço humano.

Ou seja: lavrar é dominar a criação com justiça, no sentido bíblico de Gênesis. É a base mesma da civilização.

2. A atualização contemporânea: lavrar = ocupar, ordenar, santificar

Nesta formulação que porponho, que está profundamente alinhada a uma visão teológica clássica, “lavrar” hoje não significa apenas cultivar o solo, mas: ocupar a terra de forma produtiva e justa, de modo que as pessoas se santifiquem através do trabalho — de todo e qualquer trabalho.

Isso significa três coisas:

2.1. O trabalho é mediador da santidade (Escrivá)

Aqui entra São Josemaría Escrivá, que recoloca o trabalho — qualquer trabalho — como lugar de encontro com Deus.

  • O escritório é um campo.

  • O laboratório é um campo.

  • A oficina é um campo.

  • A empresa é um campo.

  • O código-fonte é um campo.

  • A escrita é um campo.

  • O estudo é um campo.

Lavrar, modernamente, é trabalhar com sentido de missão e oferta, tornando presente a providência na rotina ordinária.

2.2. O trabalho ordena o mundo social (Tawney)

Tawney, especialmente em The Acquisitive Society (1920), demonstra que a propriedade só se justifica se cumprir uma função social, que ele define como: usar os bens de forma a contribuir para o bem comum da comunidade que deles depende.

Ou seja, propriedade é legítima se:

  • estiver ordenada ao trabalho e não ao mero acúmulo, enquanto um fim em si mesmo;

  • produzir bens para a sociedade;

  • permitir a participação de outros nos frutos;

  • gerar oportunidades reais de vida.

Tawney está dizendo, em termos sociológicos, o que Escrivá dirá em termos espirituais: propriedade e trabalho existem para servir à formação moral da sociedade.

E é aqui que a tese brilha:

2.3. Lavrar a terra = realizar a função social da propriedade no seu sentido mais amplo

Quando se afirma que lavrar hoje significa ocupar produtivamente o território, estamos dizendo que a função social da propriedade (no sentido original de Tawney) é o equivalente moderno do “lavrar” de Bluteau.

É a mesma ideia, só que com outra linguagem:

  • Bluteau: lavrar → preparar o solo para o bem humano

  • Tawney: propriedade → servir ao bem comum pela produção

  • Escrivá: trabalho → santificar e ordenar o mundo

No fundo, é a mesma estrutura metafísica, atravessando três séculos.

3. O ponto de degradação: o positivismo jurídico brasileiro

Ao perder o fundamento moral, a expressão “função social da propriedade” o postivitismo jurídico brasileiro transformou em fórmula vazia, repetida mecanicamente sem o sentido espiritual, econômico e antropológico que ela tem em Tawney.

O positivismo:

  • isolou o conceito da sua base moral;

  • o transformou em instrumento retórico de políticas estatais;

  • amputou sua dimensão vocacional e civilizatória;

  • reduziu a propriedade à mera titularidade regulada por normas.

O resultado: a letra permaneceu, mas o espírito morreu.

O que estamos fazendo aquié justamente o caminho inverso: restaurando o espírito do conceito original e modo a inseri-lo numa teoria mais ampla da ocupação produtiva e santificante do território.

4. A convergência final: Bluteau • Escrivá • Tawney

O que se surge é uma definição moderna e fiel ao passado:

Lavrar a terra é ocupar, ordenar e transformar o território por meio do trabalho — qualquer trabalho — de modo que o ser humano se una a Deus e construa uma civilização fundada na justiça, na abundância, na solidariedade e na vocação.

Assim, a colônia como empresa-ecossistema não é só agrícola: é o modelo matriz da sociedade — porque é o primeiro lugar em que o homem realiza esse tríplice movimento:

  1. trabalha;

  2. ordena o mundo;

  3. aproxima-se de Deus.

É por isso que é certp afirma que a definição de Bluteau, lida à luz de Escrivá e Tawney, revela a verdadeira natureza da colônia, da empresa e da micrópolis.

Bibliografia Comentada

1. Raphael Bluteau — Vocabulário Portuguez e Latino (1712–1728)

A base filológica do argumento. A definição de colónia como comunidade agrícola voltada a lavrar a terra revela o sentido original do termo antes da expansão imperial moderna. Bluteau mostra que lavrar implica ordenar a terra para torná-la habitável e produtiva, não apenas cultivar. É a matriz conceitual da colônia como organização socioeconômica.

2. São Josemaría Escrivá — Caminho, Sulco, Forja, Homilia “Trabalho de Deus” (1930–1975)

A doutrina espiritual do Opus Dei sobre o trabalho como via de santificação e ordenação cristã do mundo. Escrivá amplia o conceito tradicional de “campo” para tudo o que é trabalho humano. Ele fornece o complemento teológico perfeito à definição de Bluteau: lavrar hoje é trabalhar santificando e ordenando todas as coisas a Cristo. Essa visão fundamenta a ideia de empresa como lugar de santificação e da ocupação produtiva como vocação.

3. R. H. Tawney — The Acquisitive Society (1920)

Obra-prima da crítica social cristã da economia moderna. Tawney define claramente a função social da propriedade, entendendo propriedade como responsabilidade pública e vocacional, não como mero direito subjetivo. Ele argumenta que toda forma de propriedade deve ser justificada pelo serviço produtivo que presta à comunidade. É aqui que a tese se fortalece: o lavrar de Bluteau e o trabalhar santamente de Escrivá encontram seu equivalente econômico e sociológico em Tawney.

4. R. H. Tawney — Religion and the Rise of Capitalism (1926)

Complementa The Acquisitive Society ao explicar como conceitos cristãos moldaram a economia europeia. Tawney mostra que sem a ética religiosa não há compreensão de trabalho, propriedade, justiça e dever — crítica direta à visão positivista. Relevante para sustentar a tese sobre a perda do sentido moral da propriedade no direito brasileiro contemporâneo.

5. Max Weber — A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (1905)

Embora se critique, justificadamente, o imaginário protestante como base revolucionária, a obra é fundamental para se entender como diferentes visões teológicas moldam o conceito de trabalho. Auxilia na comparação entre o ethos protestante (ascese intramundana) e o ethos católico ibérico (vocação orgânica e comunitária), útil para reforçar a especificidade da colônia luso-católica.

6. Charles R. Boxer — The Portuguese Seaborne Empire (1969)

Clássico absoluto sobre o funcionamento social do império português. Boxer mostra que as primeiras colônias eram unidades econômicas orgânicas, muito próximas do que hoje chamamos de empresa-ecossistema. Confirma historicamente a leitura de que lavrar implicava construir sociedade, não só cultura agrícola.

7. Sérgio Buarque de Holanda — Raízes do Brasil (1936)

Não apenas um clássico da sociologia brasileira, mas um estudo profundo da formação da colônia como estrutura social e econômica. Releva especialmente o capítulo sobre a “moldagem da terra” e o papel da família e da casa-grande como células organizacionais — tudo muito próximo à ideia de micrópole embrionária.

8. Capistrano de Abreu — Capítulos de História Colonial (1907)

A obra mais precisa sobre o nascimento das colônias brasileiras enquanto unidades de trabalho, parentesco e mando. Essencial para fundamentar empiricamente a noção da colônia como empresa organizada para “lavrar”. É uma das fontes históricas mais sólidas do período.

9. Alasdair MacIntyre — Após a Virtude (1981)

MacIntyre define “práticas” como atividades humanas que têm bens internos, exigem virtude e formam comunidades. A colônia, a empresa, a micrópolis — tudo isso é, na sua formulação, uma prática que exige virtudes e que ordena a vida moral. Ajuda a articular o fio ético que une Bluteau, Tawney e Escrivá.

10. Charles Taylor — Sources of the Self (1989)

Taylor mostra como a identidade moral moderna é formada a partir de horizontes de sentido herdados de tradições religiosas e filosóficas. Útil para situar a tese da santificação através do trabalho dentro de uma teoria da modernidade que não reduz o humano ao econômico - o que fortalece a crítica ao positivismo.

11. Luís Filipe Alencastro — O Trato dos Viventes (2000)

Analisa a colônia brasileira como sistema econômico interatlântico, mostrando as redes de trabalho e produção que configuram a vida colonial como protótipo de ecossistema socioeconômico. Demonstra como a colônia era um organismo vivo que integrava produção, cultura e ordem política.

12. Gilberto Freyre — Casa-Grande & Senzala (1933)

Apesar das limitações, é essencial para entender a colônia como sistema social e moral. A casa-grande aparece como núcleo de poder, trabalho, religião e cultura — uma empresa ecossistêmica pré-moderna, compatível com o conceito de micrópolis rural.

13. John Finnis — Natural Law and Natural Rights (1980)

Importante para a crítica ao positivismo jurídico brasileiro: Finnis recoloca o direito dentro da moral prática, mostrando que toda norma jurídica tem fim teleológico no bem comum. Dá base filosófica sólida à crítica que é feita ao esvaziamento da função social da propriedade feita pelo positivismo, durante o processo de elaboração da Constituição em 1988.

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