Introdução
Em toda sociedade que perde seu vínculo com a verdade, rapidamente se formam castas profissionais dedicadas a manipular, distorcer e prostituir aquilo que deveria ser sagrado. Esta regra se aplica com precisão à República brasileira, cujas deformações institucionais produziram duas figuras típicas: o conservantista, aquele que conserva apenas o que lhe convém; e o quadraturista, o operador do direito que torce a lei até fazê-la confessar aquilo que nunca disse.
Ambos são produtos de um ambiente político e jurídico que substituiu a busca objetiva da justiça por uma lógica de conveniência institucionalizada, que chamarei, seguindo sua formulação, de lógica de Mariane: uma mentalidade de esperteza governamental, fruto do positivismo republicano, que converte a virtù pública em técnica de dominação e manipulação.
Este artigo oferece uma análise conceitual, histórica e moral dessas figuras, demonstrando como elas emergem, florescem e se reproduzem nas brechas da ordem republicana. E argumenta que, ao contrário das meretrizes da Roma antiga — as quadrantárias —, os quadrantários modernos são regiamente pagos para vender algo infinitamente mais valioso do que o próprio corpo: vendem a lei, a hermenêutica, o princípio da legalidade, a confiança pública e a própria possibilidade de justiça.
1. O conservantista: o guardião da conveniência
O conservantista é, antes de tudo, um sobrevivente do sistema. Diferentemente do verdadeiro conservador, que se compromete com os fundamentos da civilização, o conservantista seleciona apenas aquilo que lhe é útil, conveniente ou lucrativo para “conservar”.
Ele conserva:
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privilégios,
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estruturas caducas,
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vícios institucionais,
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tradições artificiais,
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e, sobretudo, a ordem vigente, por pior que seja.
É o político ou intelectual que defende a manutenção do “status quo” não por convicção moral, mas por cálculo. Trata-se de uma espécie de estelionatário moral: aquele que vende a aparência de virtude enquanto mantém, secretamente, compromisso apenas com o próprio benefício.
Para o conservantista, a verdade é um obstáculo; a moral, um enfeite; e a lei, um instrumento oportunístico.
2. O quadraturista: o estelionatário da hermenêutica
Se o conservantista é o político do conveniente, o quadraturista é o jurista do conveniente.
Sua função é simples: torturar a lei até que ela confesse aquilo que o cliente deseja.
A República brasileira inventou um mecanismo perfeito para isto: a consulta fiscal, instituto praticamente inexistente em outros sistemas jurídicos, mas que aqui se tornou a principal fonte de “jurisprudência privatizada”.
O processo funciona assim:
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O quadraturista elabora uma “consulta” à administração tributária, já orientada para produzir a resposta desejada.
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A administração, movida por pressões políticas, técnicas ou econômicas, emite uma resposta que, ainda que tortuosa, cria uma aparência de legalidade.
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O cliente obtém uma vantagem fiscal indevida.
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O quadraturista recebe honorários elevados por sua habilidade de distorcer o sentido da lei.
É a institucionalização da fraude hermenêutica — uma forma de corrupção intelectual protegida por formalidades procedimentais.
De forma emblemática, o quadraturista não interpreta a lei; interpreta a oportunidade.
Enquanto a lei diz uma coisa, ele “descobre” que ela significa outra. Enquanto a Constituição limita, ele “localiza” uma brecha. Enquanto o sistema tributário exige isonomia, ele cria um privilégio. E tudo isso sob a máscara da técnica jurídica.
3. A prostituição da hermenêutica: quadrantárias e quadrantários
A analogia com a Roma antiga é inevitável. Na Roma do período clássico, as quadrantárias eram as meretrizes baratas das tabernas, assim chamadas por cobrarem um quadrans, a menor fração do asse.
Elas vendiam o corpo por moedas pequenas. E não enganavam ninguém: eram o que eram.
O quadrantário moderno, ao contrário:
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veste toga,
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exibe títulos,
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fala em nome da ciência jurídica,
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propõe consultas sofisticadas,
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e prostitui a interpretação da lei a preços altíssimos.
A quadrantária romana corrompia apenas a própria carne. O quadrantário brasileiro corrompe a ordem jurídica inteira.
O que está em jogo não é apenas a distorção de um artigo legal, mas a erosão da confiança pública, a fragilidade do princípio da legalidade, o enfraquecimento do Estado de Direito. No fim das contas, esses quadraturistas criam uma espécie de mercado oculto de exceções legais, em que privilégios fiscais e interpretações artificiais são distribuídos como bens de luxo.
4. A Lógica de Mariane: O Estado como máquina de esperteza
A lógica que sustenta essas figuras é a mesma que sustenta o oportunismo republicano: a lógica de Mariane, onde o Estado não é o garantidor da justiça, mas o balcão de negócios onde interpretações, favores e pareceres são negociáveis.
Sob essa lógica, as virtudes republicanas se deformam:
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a prudência vira cálculo político,
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a justiça vira convenção,
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a lei vira plasticina,
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e o jurista vira comerciante de brechas.
A República brasileira é pródiga em produzir tais operadores porque sua estrutura, fundada no positivismo e na tecnocracia, permite que a forma prevaleça sobre a substância. Em outras palavras: o sistema incentiva quem sabe manipular o sistema. Onde falta transcendência, sobra esperteza. Onde falta verdade, sobe o preço da mentira. Onde falta moral, floresce o quadraturismo.
5. Por que isso não existiria em uma ordem fundada na verdade
A ordem cristã tradicional, fundada na moral objetiva, na lei natural e na noção de justiça como reflexo da razão divina, não comporta a figura do quadraturista. Ali, a hermenêutica jurídica é um ato de serviço à verdade, não um artifício de conveniência.
Na República, ao contrário:
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a lei já não reflete a moral,
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a moral já não reflete o transcendente,
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e o transcendente foi expulso da vida pública.
Nesse vazio moral, surgem os intermediários da esperteza: conservantistas e quadraturistas, profissionais que transformam a decadência em meio de vida.
Conclusão
Os quadraturistas e conservantistas são sintomas de um sistema doente, mas também agentes ativos da doença. Eles alimentam a corrupção intelectual, enfraquecem a moral pública e transformam a justiça em mercadoria.
São subprodutos da República, frutos naturais de uma ordem que perdeu o senso de verdade e de transcendência. E, ironicamente, são muito bem pagos para isso.
Enquanto a quadrantária romana cobrava um quadrante, o quadrantário brasileiro cobra valores de rei. E entrega, a seus clientes, não o prazer do corpo, mas o gozo ilegal de privilégios. A prostituição mudou de forma, mas não de essência.
Bibliografia Comentada
1. Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes.
Obra fundamental para compreender o positivismo jurídico que moldou a República brasileira. Kelsen separa direito e moral, tornando a norma independente da ordem natural. Essa separação — embora elegante abstratamente — abriu espaço, no Brasil, para a manipulação hermenêutica: se a lei é apenas “forma”, ela se torna plastificável. Os quadraturistas prosperam exatamente nesse vácuo moral criado pelo kelsenianismo burocrático.
2. Bobbio, Norberto. O Positivismo Jurídico. São Paulo: Ícone.
Bobbio expõe o positivismo moderado, mas reconhece sua vulnerabilidade: quando o direito se reduz a técnica, perde seu caráter moral e sua força de justiça. Isso explica como consultas fiscais podem ser distorcidas para justificar benefícios indevidos — um caso típico de tecnicismo sem substância, terreno fértil para quadraturistas.
3. Ferrajoli, Luigi. Direito e Razão: Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais.
Embora voltado ao penal, Ferrajoli demonstra como sistemas hiperformalistas criam brechas interpretativas exploradas por “operadores do sistema”. Sua crítica ao formalismo estatal ajuda a entender a lógica de Mariane: um Estado que cria regras complexas demais acaba refém de especialistas capazes de contorcê-las.
4. Bandeira de Mello, Celso Antônio. Conteúdo Jurídico do Princípio da Igualdade. São Paulo: Malheiros.
Um dos textos mais importantes para compreender como a criação de privilégios interpretativos viola a isonomia. Demonstra por que consultas fiscais orientadas por quadraturistas constituem uma forma de corrupção hermenêutica: criam exceções artificiais que violam a igualdade tributária — e que, paradoxalmente, se travestem de interpretação legítima.
5. Carrazza, Roque Antônio. ICMS. São Paulo: Malheiros.
Carrazza é referência na crítica ao arbítrio fiscal e ao abuso hermenêutico. Sua obra evidencia como o sistema tributário brasileiro — confuso, instável e prolixo — permite a proliferação dos “juristas da quadratura”. A leitura fornece o pano de fundo técnico para compreender como o quadraturismo opera no cotidiano profissional.
6. Holmes, Oliver Wendell Jr. The Path of the Law. Harvard Law Review, 1897.
Um texto clássico que denuncia a distância entre o ideal moral do direito e sua prática pragmática. Holmes chama de “bad man” o sujeito que usa a lei apenas como cálculo de custo-benefício — o que se ajusta perfeitamente ao quadraturista, que enxerga a lei como instrumento de conveniência, não como expressão de justiça.
7. Pellegrino, Giusto. La Prostituzione nell'Antica Roma. Roma: L'Erma di Bretschneider.
Estudo profundo sobre as categorias de meretrizes romanas, incluindo as quadrantariae, prostitutas de baixo custo nas tabernas. A obra ilumina a analogia central: enquanto a quadrantária romana vendia o próprio corpo por um quadrante, o quadrantário moderno vende a hermenêutica — e, portanto, prostitui um bem muito mais elevado: a justiça.
8. Duncan-Jones, Richard. The Economy of the Roman Empire. Cambridge University Press.
Além de análise econômica, traz dados úteis sobre preços, moedas e o “valor de um quadrans”. Permite contextualizar historicamente o termo quadrantaria, reforçando a metáfora da prostituição barata e visível — em contraste com a prostituição institucional dos quadrantários modernos.
9. Plínio, o Velho. História Natural. Trad. B. W. Henderson. Loeb Classical Library.
Citações de Plínio sobre tabernas, prostituição e moral pública em Roma ajudam a entender a simbologia da quadrantária como figura marginal, porém socialmente reconhecida. Diferente do quadrantário moderno, cuja corrupção é elegante, invisível e revestida de formalidade jurídica.
10. Olavo de Carvalho. O Jardim das Aflições. Rio de Janeiro: Record.
Obra essencial para compreender como a República brasileira nasce de uma ruptura metafísica com a tradição. Olavo demonstra que, quando o transcendente é eliminado, a lei se politiza e a verdade se torna manipulável. A crítica é diretamente aplicável aos conservantistas e quadraturistas, que são produtos desse esvaziamento filosófico.
11. Josiah Royce. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan.
A filosofia da lealdade de Royce contrasta frontalmente com os conservantistas e quadraturistas. Para Royce, uma comunidade só é legítima quando se funda na lealdade à verdade e ao bem comum. Essa obra fornece o fundamento ético do artigo: a verdade é o único critério capaz de impedir a prostituição institucional.
12. Victor Klemperer. LTI – A Linguagem do Terceiro Reich. São Paulo: Companhia das Letras.
Klemperer mostra como a manipulação consciente da linguagem destrói a moral pública. O paralelo com o quadraturista é evidente: torcer a linguagem jurídica é um ato de engenharia do pensamento, cujo efeito final é desmoralizar a própria ideia de lei.
13. Leo Strauss. What Is Political Philosophy? Chicago: University of Chicago Press.
Strauss desmonta o mito moderno de que a técnica jurídica pode substituir a filosofia moral. Mostra que, sem uma noção de bem, o direito se torna mera ferramenta de poder. É a chave teórica para entender por que a República cria conservantistas e quadraturistas: porque se funda na técnica, não na verdade.
14. Maquiavel, Nicolau. O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Abril Cultural.
A lógica de Mariane — a esperteza republicana — é antecipada por Maquiavel. Aqui encontramos a raiz teórica do comportamento conservantista e quadraturista: a política e o direito divorciados da moral, guiados por cálculo e conveniência.
15. Rerum Novarum (Leão XIII).
A visão católica da justiça, do trabalho e da ordem social. Leão XIII mostra que a lei não é mera convenção, mas reflexo da ordem moral. Esta encíclica é o contraponto direto à prostituição hermenêutica da República: onde a lei perde seu fundamento moral, o direito perde sua alma — e o quadraturista prospera.
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