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sexta-feira, 21 de novembro de 2025

A lei pessoal do de cujus e a dualidade normativa da sucessão: entre a ordem natural da nacionalidade e a ordem subjetiva da confiança

1. Introdução

A expressão “lei pessoal do de cujus”, encontrada na Constituição da República (art. 5º, XXXI) e na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (art. 10), costuma ser tratada pela dogmática apenas em seu sentido estrito: trata-se da lei da nacionalidade do falecido, que rege determinados aspectos fundamentais da sucessão, especialmente a sucessão legítima.

Contudo, uma análise mais profunda — que não se limita à técnica positiva, mas alcança a antropologia jurídica e o fundamento normativo da sucessão — revela que a experiência sucessória é regida por duas ordens jurídicas simultâneas. Uma é estatal, natural e objetiva; a outra é íntima, subjetiva e construída pelo próprio indivíduo. Essa segunda ordem se manifesta no testamento, que é, por excelência, a “norma privada” do falecido.

Dessa dualidade emerge uma distinção essencial:

  1. A lei pessoal natural, fundada na nacionalidade — que regula a sucessão ab intestato e as estruturas objetivas da sucessão.

  2. A lei pessoal volitiva, expressa nas disposições de última vontade — que revela o universo de confiança do falecido.

Este artigo examina essa distinção e demonstra como a sucessão, longe de ser mero ato mecânico de transmissão patrimonial, constitui simultaneamente um fenômeno jurídico, moral e civilizacional.

2. A “lei pessoal” em sentido estrito: a nacionalidade do de cujus

A tradição do Direito Internacional Privado identifica a lei pessoal com a lex patriae. No caso sucessório, isso aparece:

  • na Constituição (art. 5º, XXXI),

  • na LINDB (art. 10),

  • na doutrina clássica (Haroldo Valladão, Jacob Dolinger, A. B. D. de Albuquerque).

Em termos estritamente jurídicos, a lei pessoal do de cujus é:

A lei da nacionalidade do falecido, que regula sua capacidade para testar, direitos sucessórios e a sucessão legítima no que não contrariar a ordem pública brasileira.

Esse é o fundamento objetivo da sucessão. É o que chamamos de lei natural, não no sentido metafísico, mas no sentido institucional: é a ordem estatal à qual o falecido pertence enquanto membro de uma comunidade nacional.

A sucessão ab intestato, portanto, é um fenômeno normativo que não depende da vontade do indivíduo; decorre de sua pertença a uma ordem jurídica.

3. A ordem subjetiva da sucessão: o testamento como “constituição íntima” do individuo

Se a sucessão legítima retrata a estrutura objetiva da ordem jurídica, o testamento revela o exato oposto: a ordem íntima, subjetiva e volitiva da pessoa.

O testamento é:

  • uma norma construída pelo próprio indivíduo;

  • uma projeção post mortem de sua autonomia;

  • e, sobretudo, a institucionalização jurídica da confiança.

Se, na sucessão legítima, a ordem é imposta; no testamento, ela é eleita. O falecido distribui seus bens de acordo com os laços que reconhece como valiosos, com as pessoas que considera fiéis ao seu código moral, com aqueles a quem deseja proteger ou recompensar.

Por isso, a doutrina antiga chamava o testamento de:

  • iudicium animi (um julgamento da alma),

  • sermo testatoris (a última palavra do testador),

  • continuatio personae (a continuação da pessoa).

Assim, ao lado da lei estatal, existe sempre uma lei privada do de cujus, que não é lei no sentido estrito, mas que opera como ordenamento jurídico subjetivo. É, de fato, a expressão mais íntima e mais moral do falecido.

4. A dualidade normativa: natural e volitiva, objetiva e subjetiva

É possível, então, sintetizar:

A) Ordem Natural (Nacionalidade)

  • decorre da condição de membro de uma comunidade política;

  • regula a sucessão legítima;

  • é objetiva, institucional e impessoal;

  • é estruturada pela lei positiva do Estado.

B) Ordem Volitiva (Testamento)

  • decorre da confiança e da autonomia privada;

  • regula a sucessão testamentária;

  • é subjetiva, íntima e pessoal;

  • é estruturada pela deliberação moral do falecido.

As duas ordens coexistem, e a sucessão é, portanto, um espaço de tensão e harmonia entre:

  • o Estado, que impõe uma moldura objetiva;

  • e o indivíduo, que organiza sua própria microconstituição patrimonial.

Essa tensão é parte essencial da antropologia jurídica da morte: morrer não é apenas deixar bens; é também deixar ordem.

5. A confiança como fundamento da ordem sucessória

O testamento não nasce do poder arbitrário, mas da confiança. O de cujus distribui seus bens:

  • a quem lhe foi fiel,

  • a quem compartilhou valores,

  • a quem representou o melhor de sua vida moral.

Por isso, o testamento é um testemunho — não apenas patrimonial, mas espiritual. Como diz a tradição jurídica medieval:

Testamentum est ultimum fidei opus
“O testamento é a última obra da fé e da lealdade.”

A sucessão testamentária, portanto, é a mais elevada expressão jurídica da amizade, lealdade e serviço recíproco.

6. Dimensão Civilizacional e Cristã da Dualidade Sucessória

A sucessão, em civilizações cristãs, nunca foi vista como ato puramente econômico. Foi sempre um ato de:

  • transmissão cultural,

  • memória dos antepassados,

  • continuidade do serviço a Deus,

  • renovação da família,

  • proteção dos vulneráveis.

A lei natural da nacionalidade estabelece a moldura civilizacional; a lei privada do testamento exprime o coração moral do indivíduo.

Essa distinção demonstra que:

  • A nacionalidade situa o de cujus dentro da história de um povo.

  • O testamento situa o de cujus dentro da história de sua alma.

No fundo, a dualidade sucessória é a expressão jurídica da dualidade humana: criatura social e criatura espiritual; membro do Estado e servo de Cristo. 

7. Conclusão

A expressão constitucional “lei pessoal do de cujus” remete diretamente à lei da nacionalidade, e isso basta para resolver o problema dogmático. Mas, se olharmos para além da técnica, percebemos que a sucessão é regida por duas ordens normativas:

  • a ordem natural da nacionalidade, objetiva e estatal;

  • a ordem subjetiva da confiança, expressa no testamento.

A primeira integra o indivíduo à história do povo; a segunda integra sua memória àqueles que ele amou. Ambas são necessárias para compreender plenamente o fenômeno sucessório — não apenas como transferência de bens, mas como transmissão de uma vida inteira, com suas virtudes, vícios, afetos, esperanças e compromissos.

O testamento, assim, deixa de ser mero instrumento para se tornar aquilo que realmente é:
a última expressão moral de uma alma que deseja ordenar o mundo segundo a verdade que serviu em vida — e que continua servindo, agora, na eternidade.

Bibliografia Comentada

1. Haroldo Valladão — Direito Internacional Privado (vários volumes)

Valladão é a maior referência brasileira na matéria e um dos principais articuladores do conceito de lei pessoal no DIP brasileiro. Sua doutrina, profundamente influenciada pela escola francesa e pela tradição romanística, defende que a lex patriae é o parâmetro natural da personalidade jurídica no plano internacional. Ele delimita com clareza os efeitos sucessórios da nacionalidade, especialmente no que diz respeito à sucessão ab intestato. Seu pensamento fundamenta tecnicamente a distinção entre sucessão legítima e testamentária no contexto internacional.

2. Jacob Dolinger — Direito Internacional Privado: Parte Geral e Sucessões

A obra de Dolinger é indispensável para compreender a prática contemporânea do DIP. Ele descreve com rigor a função da lei pessoal do de cujus, analisando conflitos de leis, sucessão legítima, testamento e ordem pública. Dolinger também examina situações complexas de sucessões internacionais, fornecendo exemplos que ilustram perfeitamente a dualidade normativa entre lei objetiva (nacionalidade) e autonomia privada (testamento).

3. Pontes de Miranda — Tratado de Direito Privado, volumes referentes a Sucessões

Pontes analisa o testamento como ato jurídico singular, dotado de uma lógica normativa própria. Sua visão do testamento como “força ordenadora da vontade” ajuda a fundamentar a tese apresentada no artigo de que o testamento funciona como uma espécie de microconstituição íntima do indivíduo, expressão de confiança e continuidade moral.

4. Silvio Rodrigues — Direito Civil: Direito das Sucessões

Rodrigues oferece uma leitura clara da estrutura da sucessão legítima e testamentária. Seu trabalho é útil para firmar a distinção institucional entre a ordem natural da sucessão ab intestato e a ordem volitiva da sucessão testamentária. Também destaca a importância do testamento como instrumento de autonomia, algo que ressoa diretamente com a tese desenvolvida aqui.

5. Washington de Barros Monteiro — Curso de Direito Civil: Sucessões

Monteiro destaca o aspecto humano e moral da sucessão. Sua leitura conserva resquícios importantes da tradição cristã na interpretação dos atos de última vontade. Ele reforça que o testamento é expressão de confiança e responsabilidade moral, uma ideia central para a fundamentação antropológica do artigo.

6. Francisco Amaral — Direito Civil: Introdução

Amaral fornece a base conceitual necessária para compreender a autonomia privada, a função normativa da vontade e o papel da confiança nas relações jurídicas. Sua leitura do Direito como “ordem da convivência” ajuda a situar o testamento como manifestação suprema dessa convivência no plano pós-morte.

7. Josiah Royce — The Philosophy of Loyalty

Este livro, fundamental na sua trajetória intelectual, amplia a compreensão da confiança como fundamento civilizatório. Royce entende a lealdade como princípio ordenante das relações humanas e da comunidade. Essa estrutura filosófica dá sustentação à tese de que o testamento é o último gesto de lealdade — não apenas entre indivíduos, mas para com a própria ordem social que o de cujus deseja perpetuar.

8. Edmund Burke — Reflexões sobre a Revolução na França

Burke entende a sociedade como um pacto entre os mortos, os vivos e os que ainda nascerão. Essa concepção é preciosa para interpretar a sucessão não como simples transferência de bens, mas como continuidade da civilização, preservação de valores e manutenção da moral social. Sua influência pode ser claramente percebida na profundidade civilizacional da dualidade sucessória.

9. Santo Tomás de Aquino — Suma Teológica, especialmente II-II, q. 32–33 (sobre liberalidade, amizade e benevolência)

A tradição tomista esclarece a dimensão moral do testamento como ato de liberalidade e responsabilidade. Para Aquino, a distribuição de bens é sempre um ato de justiça e caridade ordenado a Deus. Isso fundamenta a visão cristã do testamento como expressão final de uma alma que deseja ordenar seus bens segundo a reta razão iluminada pela fé.

10. Olivier Martínez — Droit International Privé des Successions (França)

Martínez oferece uma leitura contemporânea da sucessão transnacional na tradição europeia continental. A análise das tensões entre lei pessoal e autonomia privada dialoga diretamente com o eixo técnico do artigo. Ele também descreve com precisão os desafios modernos das sucessões internacionais, o que reforça a atualidade do tema.

11. Peter L. Strauss — The Common Law and Testamentary Freedom

Este estudo do mundo anglo-americano ilumina o outro polo: o da autonomia testamentária ampla. Embora o Brasil siga o modelo romanístico, a comparação ajuda a ver o testamento como norma privada robusta, reforçando a tese da coexistência de duas ordens: a objetiva (Estado) e a subjetiva (vontade final do indivíduo).

12. Joseph Ratzinger (Bento XVI) — Introdução ao Cristianismo

Ratzinger oferece uma base teológica sólida para compreender a morte, a continuidade do ser e o valor espiritual da responsabilidade. Sua antropologia ilumina a noção de que a sucessão é também um ato de esperança e continuidade moral — algo que estrutura a interpretação cristã da última vontade.

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