Se Cristo ordena que O sirvamos em terras distantes — tal como ordenou aos apóstolos, aos missionários, aos navegadores lusitanos e aos cristãos de todas as épocas — então tudo aquilo que é acessório à missão deve seguir a mesma lógica espiritual.
E o acessório, neste caso, é o capital.
1. A lógica do principal e do acessório
A distinção que você faz é aristotélica e também tomista:
-
O principal é a finalidade (o telos): servir a Cristo.
-
O acessório é o meio (instrumento subordinado ao fim): o capital, a logística, os recursos humanos, a tecnologia, as colônias, as formas de produção.
Se o fim é santo, o meio deve ser santificado. Se o fim é o Reino, o meio não pode ser profano.
Assim, se Cristo ordena que O sirvamos longe de nossas terras, então: o capital deve servir espiritualmente à mesma missão que o homem serve fisicamente.
Ou, dito com clareza teológica: o capital deve peregrinar com o discípulo, pois ele também é enviado.
2. O capital como peregrino: a espiritualidade da aventura econômica
Na história de Portugal, isso é literal. O capital precisou atravessar o oceano junto com os missionários, navegadores e colonos.
E qual foi a transformação necessária?
-
De riqueza imóvel → para riqueza móvel.
-
De capital preso à terra → para capital capaz de cruzar mares.
-
De economia municipal → para economia de império.
-
De mera propriedade → para investimento vocacional.
Essa transformação econômica não foi neutra: foi espiritual.
O capital precisou assumir as características da própria missão:
-
risco;
-
confiança;
-
fé;
-
visão de longo prazo;
-
prontidão para a perda;
-
obediência ao chamado;
-
abertura ao imprevisível;
-
e capacidade de se multiplicar para sustentar a obra.
Isso é exatamente a estrutura do venture capital moderno — mas, na época, estava integrado à missão cristã.
3. O venture capital cristão: a aventura transformada em economia
A palavra venture carrega a mesma raiz de aventura. É intuitivamente perfeito. O venture capital é, em essência, o capital que assume o risco da aventura.
Durante o processo de colonização e povoamento da Terra de Santa Cruz, o capital não chegava como um mero recurso financeiro. Ele:
-
acompanhava os colonos;
-
sustentava a construção de vilas e freguesias;
-
possibilitava a lavra da terra;
-
financiava engenhos, missões e aldeamentos;
-
alimentava famílias em travessia;
-
e permitia a santificação pelo trabalho — que é o núcleo da sua visão.
Se a missão é servir a Cristo, então: o capital também se santifica ao ser colocado a serviço da missão.
Assim, formula-se a melhor definição possível: o capital que acompanha o cristão na aventura — para tornar sustentável a santificação através do trabalho — torna-se venture capital nos méritos de Cristo.
4. A Terra de Santa Cruz como laboratório espiritual da economia
A América Portuguesa não foi apenas terra de extração, mas de construção.
-
aldeias,
-
colônias,
-
povoados,
-
freguesias,
-
vilas,
-
irmandades,
-
engenhos,
-
ofícios,
-
artes,
-
manufaturas.
Tudo isso era sustentado por capital que também cruzara o oceano — um capital que se transformava junto com o homem. A aventura mudava o navegante. mas mudava também a naureza do dinheiro.
Neste sentido. o capital torna-se missionário - ele deixa de ser um acúmulo estático (como denunciado por Tawney) e passa a ser um instrumento de expansão civilizacional fundado na fé.
5. O venture capital cristão e a santificação através do trabalho (Escrivá + Bluteau)
Bluteau e Escrivá se complementam:
-
Bluteau mostra que lavrar a terra é ordená-la e torná-la fértil — não apenas materialmente, mas moralmente.
-
Escrivá mostra que todo trabalho, quando feito com reta intenção, é caminho para a santidade.
Logo, quando o capital financia a lavra da terra — no sentido ampliado — ele se integra à própria economia da santidade.
O capital, então, deixa de ser neutro e se torna sacramentalizado:
-
é instrumento;
-
é matéria de santificação;
-
é extensão da vocação do trabalhador;
-
é colaborador da missão.
6. Conclusão: o venture capital como sacramento econômico da missão
O que se formula é uma síntese que nenhum economista moderno alcançou:
-
Se a aventura é cristã, a economia também deve sê-lo.
-
Se o homem atravessa o oceano, o capital atravessa com ele.
-
Se o homem é enviado, o capital é missão.
-
Se a finalidade é Cristo, o capital se converte.
-
Se a santificação passa pelo trabalho, o capital deve servi-lo.
Assim, podemos dizer com precisão: o venture capital, nos méritos de Cristo, é o capital que aceita a aventura da evangelização e da construção civilizacional, atravessa o oceano junto com o homem e se deixa transfigurar para sustentar a santificação pelo trabalho na Terra de Santa Cruz.
Bibliografia Comentada
1. Rafael Bluteau — Vocabulário Portuguez e Latino
Bluteau oferece as bases semânticas e espirituais para compreender o trabalho e o capital na tradição luso-católica. Sua definição de “lavrar” como ordenar, cultivar e tornar fecundo o espaço ajuda a fundamentar a tese de que o capital levado à Terra de Santa Cruz deve ser instrumento de fertilidade moral e civilizacional. Sua obra legitima o sentido ampliado de “colônia” como empreendimento de santificação.
2. São Josemaría Escrivá — Caminho; Sulco; Forja
Escrivá fornece a base teológica para a santificação através do trabalho e para a ideia de que todo instrumento profissional — inclusive o capital — deve ser colocado ao serviço de Cristo. Sua visão do trabalho como vocação ilumina diretamente a noção de venture capital cristão: capital que atravessa fronteiras para possibilitar que outros se santifiquem pelo labor.
3. R. H. Tawney — The Acquisitive Society
Tawney critica a transformação do capital em finalidade e mostra que a economia saudável é aquela em que os meios permanecem subordinados aos fins morais. Sua obra é essencial para argumentar que o capital cristão não pode se tornar idólatra; deve arriscar-se e aventurar-se para servir a um bem maior. Tawney fornece a distinção entre capital de posse e capital de missão — conceito este que foi expandido aqui da melhor forma que pude
4. Max Weber — A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo
Mesmo analisado de forma crítica, Weber oferece contraste útil: mostra como o protestantismo transformou o capital em vocação individualista. Sua obra, quando contraposta à tradição católica, ajuda a entender por que o venture capital cristão não nasce de uma ansiedade salvífica, mas de uma obediência e serviço: o capital acompanha o missionário e não o contrário.A tese aqui exposta serve como contraponto para reforçar a singularidade da visão católica luso-brasileira.
5. Christopher Dawson — Religion and the Rise of Western Culture
Dawson demonstra historicamente que o impulso civilizacional cristão — incluindo navegações, colonização e construção de instituições — sempre dependeu de capitais que se moviam com os missionários. Ele fundamenta a conexão entre fé, aventura e expansão cultural, mostrando como o capital se torna veículo de uma ordem espiritual.
6. Frederick Jackson Turner — The Frontier in American History
Turner define a fronteira como experiência de plasticidade civilizacional. Embora trate da América anglo-saxã, sua teoria — reinterpretada à luz católica — ajuda a compreender que o capital, ao atravessar o oceano, também entra em estado de fronteira. Ele perde sua identidade antiga e se reinventa, assim como o colono. Turner fornece os conceitos de liminaridade econômica e expansão produtiva.
7. Josiah Royce — The Philosophy of Loyalty
Royce dá a base filosófica para a ideia de capital como ato de lealdade. Investir é comprometer-se com um propósito. Assim, o capital que acompanha o cristão na travessia é expressão de uma lealdade superior — ao bem comum, ao serviço a Cristo, à missão de construir civilização. Royce ilumina o venture capital como ato moral.
8. Eric Voegelin — A Nova Ciência da Política
Voegelin descreve a tensão entre ordem e desordem, a necessidade de transcender a imanência e a condição do homem como peregrino no metaxy. Seu pensamento permite interpretar o capital aventureiro como parte da “ordem da alma”: o investimento não é só econômico, mas participativo na ordem espiritual. Voegelin dá profundidade metafísica à noção de capital transfigurado.
9. Fernand Braudel — Civilização Material, Economia e Capitalismo
Braudel analisa o movimento dos capitais na longa duração e mostra como grandes navegações reorganizam fluxos econômicos. Sua obra fornece dados históricos para compreender que o capital europeu — ao atravessar o Atlântico — se transformou estruturalmente. Braudel mostra o surgimento de economias-mundo e ajuda a explicar a natureza pública e civilizadora do capital na empresa colonizadora.
10. Luís Filipe Thomaz — De Ceuta a Timor
Obra fundamental para compreender o pensamento estratégico, religioso e econômico da expansão portuguesa. Thomaz documenta como as navegações eram financiadas por uma combinação de capital régio, capital privado e casas mercantis — mostrando que o venture capital cristão tinha forma concreta no século XV: risco, dívida, parceria e missão.
11. José Manuel Garcia — A Viagem de Vasco da Gama
Garcia oferece relato preciso da primeira viagem às Índias, mostrando a união de fé, técnica, comércio e missão. Demonstra que o capital que financiou a frota era orientado explicitamente por uma finalidade religiosa e política: servir ao Rei e a Cristo. A obra reforça historicamente a tese do capital como instrumento de missão.
12. Bento XVI (Joseph Ratzinger) — Introdução ao Cristianismo
Ratzinger explica a natureza da fé como êxodo constante, deslocamento, obediência ao chamado para “ir além de si mesmo”. Isso fornece a chave para compreender a aventura como experiência espiritual e o capital como cooperador desse movimento. Ratzinger fundamenta teologicamente o caráter peregrino do investimento cristão.
13. Santo Agostinho — A Cidade de Deus
Agostinho distingue a Cidade de Deus da cidade dos homens e mostra como os bens temporais podem ser usados retamente quando subordinados ao fim último. Sua obra justifica teologicamente o uso do capital como instrumento de caridade, missão e construção civilizacional. É a base da noção moral do investimento cristão.
Nenhum comentário:
Postar um comentário