1. A expressão e sua superfície cultural
A frase inglesa “I’m losing my religion” pertence originalmente ao inglês coloquial do sul dos Estados Unidos. No uso comum, não significa perder a fé cristã, mas algo como “estou perdendo a paciência”, “estou chegando no limite”, “estou prestes a explodir”. Essa expressão ganhou projeção global com a música do R.E.M., e desde então vem sendo repetida, muitas vezes sem que o falante compreenda sua origem.
Mas um idioma sempre carrega uma visão de mundo, e é aí que se abre o espaço para uma reflexão mais profunda. Quando alguém diz “I’m losing my religion”, o imaginário moderno raramente se volta ao Cristo crucificado, à fé vivida, à ordem espiritual. Antes, a frase evoca outra “religião”, muito mais presente no cotidiano do homem contemporâneo do que a fé cristã: a religião do dinheiro.
Para muitos, “perder a religião” não é perder Cristo. É perder o dólar.
2. O símbolo do dólar como “religião civil”
Eu observei algo extremamente forte: ao ouvir “I'm losing my religion”, eu imagino alguém perdendo uma nota de um dólar — com George Washington no anverso e o símbolo do “Olho que Tudo Vê” no reverso. Essa imagem, aparentemente irônica, revela uma verdade antropológica: o dólar, no imaginário contemporâneo, tornou-se o verdadeiro sacramento da modernidade.
2.1 O anverso: George Washington como santo fundador
No anverso da nota, a figura de George Washington é apresentada quase como um ícone. Ele não é apenas o “pai fundador”: ele representa a narrativa fundacional de uma nação que, desde sua origem, vinculou liberdade a propriedade, e propriedade a destino manifesto. É uma hagiografia secular, uma santidade sem santidade, uma espécie de devoção política mascarada de patriotismo.
Para muitos, “ir até onde o George está” é uma forma de redenção temporal: alcançar a prosperidade, o sucesso, o prestígio, o poder de compra. É o culto ao capital erigido sobre o altar da história nacional.
2.2 O reverso: o olho da Providência como escatologia iluminista
O triângulo com o olho — frequentemente associado à maçonaria — é um símbolo que mistura iconografia iluminista, estética religiosa e ambições políticas. Em vez da Providência divina, ele evoca a autoiluminação do homem, a razão soberana, uma espécie de providência secularizada. É quase uma paródia da onisciência divina.
Não há Cristo ali. Há razão autodeificada. Há poder humano elevado ao absoluto.
3. A substituição antropológica: de Deus a Mammon
Cristo ensina com clareza:
“Não podeis servir a Deus e a Mammon.”
A modernidade, porém, encontrou uma solução para esse dilema: eliminou Deus e deixou apenas Mammon.
Assim, a fé verdadeira — aquela que orienta a vida ao Reino de Deus — foi substituída pela fé pragmática, operacional, consumível, utilitarista, que orienta a vida ao mercado, ao crédito, ao consumo, à produtividade, à independência absoluta que depende de tudo.
O dólar é o sacramento.
O consumo é a liturgia.
O sucesso é o céu.
A pobreza é o inferno — sempre culpabilizado.
Logo, quando alguém diz “I’m losing my religion”, a frase pode muito bem significar:
“Estou perdendo o pequeno deus que me dá identidade, segurança e sentido neste mundo.”
4. A psicologia espiritual do dinheiro
O dinheiro, na sociedade moderna, não é apenas instrumento de troca.
É símbolo de valor existencial.
É uma métrica de quem alguém “é”.
É índice de dignidade social e, em muitos casos, de suposta virtude pessoal.
Se o dinheiro é perdido, a pessoa sente que perde algo de si mesma.
Não se trata de economia, mas de antropologia.
Não se trata de comprar coisas, mas de ser alguém.
Assim, perder um dólar pode significar, simbolicamente:
-
perder controle,
-
perder relevância,
-
perder autonomia,
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perder dignidade,
-
perder segurança — e, com ela, a “religião” que realmente se pratica.
5. A inversão completa do Evangelho
O Evangelho ordena:
“Buscai primeiro o Reino de Deus e a sua justiça.”
A modernidade ordena:
“Buscai primeiro o dinheiro — o resto virá por acréscimo.”
Esta é a inversão antropológica que marca nosso tempo: a religião verdadeira foi substituída por uma religião funcional, implícita, entronizada nos hábitos, nas emoções, nos medos e desejos. É uma religião que promete tudo e exige tudo, mas entrega quase nada.
Ela oferece segurança, mas só à custa da ansiedade permanente. Oferece liberdade, mas só à custa da servidão ao crédito. Oferece identidade, mas só enquanto se tem saldo na conta.
6. Conclusão: o pequeno deus de papel
A intuição pode ser condensada em uma imagem poderosa:
Muita gente não está perdendo a fé em Cristo — está apenas perdendo o deus de papel que substituiu Cristo.
O dólar, com seu santo fundador e seu olho iluminista, é um catecismo silencioso que a modernidade repete todos os dias. Ele exige adoração exclusiva. Ele mede almas. Ele dita prioridades. Ele define o sentido do trabalho e da vida.
Mas a verdadeira religião — a que salva — permanece inviolada, aguardando o retorno do homem ao altar verdadeiro.
Perder o dólar pode ser perder “a religião” aos olhos do mundo. Perder Cristo, porém, é perder tudo.
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