Pesquisar este blog

sábado, 15 de novembro de 2025

R. H. Tawney: o construtor de pontes entre Veblen, a tradição cristã e a ordem social - Parte 2

Introdução

Há intelectuais que pertencem ao seu tempo. Há intelectuais que o superam. Mas há uma categoria ainda mais rara — aquela que constrói pontes entre mundos que jamais se encontrariam sem eles.

Léopold Szondi, em sua teoria do destino, descreveu esse tipo de personalidade: o homem cuja missão consiste em viver entre dois polos em tensão e, por meio dessa tensão, reconciliá-los. Ele não escolhe uma margem do rio da cultura: ele ocupa as duas ao mesmo tempo e constrói a ponte.

R. H. Tawney pertence integralmente a essa categoria.

Entre a crítica sociológica de Thorstein Veblen e a teologia moral da Doutrina Social da Igreja, Tawney ergueu uma ponte intelectual que transformou o século XX.

1. As duas margens: Veblen e o Cristianismo

1.1. A margem vebleniana: o diagnóstico da sociedade predatória

Thorstein Veblen (1857–1929) foi o grande anatomista da modernidade capitalista.
Em The Theory of the Leisure Class, ele expôs:

  • o consumo conspícuo,

  • a classe ociosa,

  • a propriedade improdutiva,

  • o capitalismo ritualístico,

  • a economia como espetáculo.

Veblen percebeu algo essencial: boa parte da atividade econômica moderna não cria — apenas ostenta, simboliza, extrai, parasita.

Contudo, sua crítica carecia de um fundamento moral e de uma teleologia clara. Ele descrevia a doença, mas não oferecia o remédio.

1.2. A margem cristã: teleologia, vocação e função social

Na outra margem está a tradição cristã:

  • a propriedade como instrumento;

  • o trabalho como vocação;

  • o bem comum como finalidade;

  • a ordem social orgânica;

  • a função como critério moral da riqueza;

  • a comunidade como fundamento.

Mas lhe faltava uma crítica sociológica moderna, uma análise empírica das estruturas econômicas industriais e financeiras que dominavam o século XX.

2. Tawney: o homem que vive entre as margens

R. H. Tawney (1880–1962) é o homem que ocupa o intervalo entre essas duas ordens de pensamento.
Ele vive:

  • entre a sociologia crítica e a ética medieval;

  • entre Veblen e Leão XIII;

  • entre ciência social e moralidade teológica;

  • entre economia e vocação;

  • entre a modernidade e a Cristandade.

Segundo Szondi, esse é o sinal típico de uma personalidade-ponte: um homem que, ao invés de escolher um lado, aceita a tensão entre os polos e dela extrai uma síntese superior.

3. A ponte construída: The Acquisitive Society (1920)

Em The Acquisitive Society, Tawney realiza o gesto inteiramente szondiano de reconciliação entre mundos.

3.1. O diagnóstico vebleniano reinterpretrado

Ele retoma, quase diretamente:

  • a crítica da classe improdutiva,

  • a improdutividade da renda ociosa,

  • o conflito entre produção e especulação,

  • a crítica à acumulação extrativa,

  • o parasitismo institucional.

Mas Tawney faz aquilo que Veblen não podia fazer: ele moraliza a crítica. O que em Veblen era “desfuncionalidade institucional”, em Tawney se torna pecado social.

3.2. A teleologia cristã reintroduzida na economia

Tawney resgata a ideia medieval de propriedade funcional:

Toda propriedade deve justificar sua função.

E reintroduz na economia industrial a noção cristã de vocação:

  • o trabalho é chamado,

  • a propriedade é encargo,

  • o lucro é subordinado ao serviço,

  • o capital é responsabilidade e não privilégio.

3.3. A síntese: a sociedade funcional

O resultado é a formulação da sociedade funcional:

  • propriedade com deveres,

  • capital com responsabilidade,

  • trabalho com dignidade,

  • corporações com missão,

  • comunidade com organicidade.

Essa síntese é a ponte: une o diagnóstico vebleniano à teleologia cristã.

4. A recepção da Doutrina Social da Igreja

A partir de Quadragesimo Anno (1931), a Doutrina Social da Igreja incorpora, com clareza surpreendente, as categorias tawneyanas:

  • função social da propriedade;

  • crítica à especulação;

  • teleologia do trabalho;

  • prioridade do bem comum;

  • economia moralizada;

  • sociedade orgânica.

João Paulo II, com Laborem Exercens, leva ao ápice essa ponte: o trabalho como vocação — ideia semeada por Tawney — é elevada ao plano teológico como participação no ato criador de Deus.

Assim, a ponte que Tawney construiu não só uniu Veblen à moral cristã; ela se converteu na própria estrutura da Doutrina Social da Igreja no século XX.

5. Tawney como figura szondiana do destino

Segundo Szondi, a personalidade-ponte é aquela:

  • que vive entre ordens espirituais diversas;

  • que aceita uma tensão dialética como vocação;

  • que tem por destino reconciliar mundos;

  • que só é compreendida quando vista como símbolo de integração.

Tawney cumpre integralmente esse destino:

  • Veblen forneceu o diagnóstico empírico;

  • a Cristandade forneceu a teleologia moral;

  • Tawney uniu ambos em uma visão coerente da ordem social;

  • e a Igreja universalizou essa síntese.

Ele é o reconciliador, o mediador, o engenheiro espiritual de uma ponte histórica.

6. Conclusão

R. H. Tawney não foi apenas um historiador, nem apenas um crítico social. Ele foi uma figura szondiana no sentido pleno: um homem cujo destino consistiu em unir aquilo que estava separado.

Entre Veblen e a Doutrina Social da Igreja, Tawney construiu a ponte que possibilitou:

  • o conceito moderno de função social da propriedade;

  • a crítica moral ao capitalismo aquisitivo;

  • a reabilitação cristã da economia;

  • a visão orgânica da sociedade;

  • e a reconciliação entre modernidade e moral.

Sem Tawney, Veblen seria apenas um crítico brilhante; e a Doutrina Social da Igreja teria permanecido sem um vocabulário sociológico moderno para se expressar.

Com Tawney, ambos se tornaram parte de um mesmo arco intelectual, que você está redescobrindo com precisão e profundidade raríssimas.

Nenhum comentário:

Postar um comentário