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quarta-feira, 19 de novembro de 2025

A linguagem da pobreza: por que biedny e ubogi expressam uma antropologia que a Inglaterra não conheceu?

Resumo

Este artigo examina como a distinção polonesa entre biedny (pobre material) e ubogi (pobre existencial/espiritual) revela uma compreensão mais rica da condição humana do que a oferecida pelo inglês, língua que não diferencia esses conceitos e que tratou “the poor” como categoria jurídica unificada. Argumenta-se que essa ausência lexical teve consequências históricas profundas, especialmente na formulação das Poor Laws inglesas, onde o pobre foi reduzido a objeto administrativo. A tese final é que sem dicotomias lexicais adequadas, a justiça positiva perde acesso à justiça natural.

1. Introdução: quando uma palavra decide o destino de um povo

Línguas não são apenas códigos de comunicação; são estruturas de percepção da realidade.
Elas recortam o mundo, eliminam nuances ou criam distinções que alteram o modo como sociedades concebem:

  • a moralidade,

  • a justiça,

  • a economia,

  • a dignidade humana.

A distinção polonesa entre biedny e ubogi é um caso exemplar disso.

Enquanto o português, o espanhol e o inglês colapsam diversos tipos de “pobreza” dentro de um único termo, o polonês separa dois fenômenos radicalmente distintos: a carência material e a vulnerabilidade espiritual.

Essa distinção — ausente no inglês — teria impedido muitos dos equívocos das Poor Laws inglesas, que trataram “os pobres” como uma massa juridicamente homogênea.

2. A dupla pobreza polonesa: biedny e ubogi

2.1. Biedny: o pobre econômico

Biedny significa aquele que sofre carência material:

  • falta de renda

  • falta de recursos

  • incapacidade de atender às necessidades básicas

  • pobreza mensurável, sociológica

É a pobreza do campo da economia e da política pública.

2.2. Ubogi: o pobre na ordem da existência

Ubogi, por sua vez, deriva de ubóstwo — termo que tem ressonâncias espirituais profundas.

Indica:

  • pobreza enquanto fragilidade humana

  • humildade existencial

  • dependência espiritual

  • vulnerabilidade moral e pessoal

  • estado de desamparo que exige misericórdia, não administração

É uma pobreza que pode existir mesmo em quem não é materialmente pobre — como ocorre com o humilde, o abatido, o pequeno de coração.

Essa distinção é mais próxima do latim pauper (pobre frágil) e miser (necessitado), categorias que o polonês preserva no seu modo próprio.

3. O inglês e o colapso semântico de “the poor”

O inglês utiliza uma única palavra, poor, para designar:

  • o miserável

  • o desfavorecido

  • o humilde

  • o incapaz

  • o acidentado

  • o emocionalmente abatido (you poor thing)

  • o financeiramente carente

  • o espiritualmente pequeno

  • o fraco e o deficiente

  • o desafortunado

Ou seja: o inglês unifica biedny e ubogi sob um mesmo rótulo semântico, dissolvendo nuances antropológicas essenciais.

O resultado: a pobreza torna-se uma categoria jurídica indiferenciada.

4. As Poor Laws inglesas: quando o Estado legisla sobre uma palavra que não distingue

A Inglaterra, especialmente após a Reforma, tratou “os pobres” como um grupo administrável. A Poor Law de 1601 e, mais tarde, a drástica reforma de 1834 criaram um sistema em que:

  • pobres incapazes, órfãos e inválidos (equivalentes ao ubogi)

  • pobres aptos ao trabalho mas sem recursos (equivalentes ao biedny)

foram colocados sob o mesmo arcabouço jurídico, apenas subdivididos administrativamente entre:

  • impotent poor (incapazes)

  • able-bodied poor (aptos)

Mas essa é uma distinção funcional, não existencial. Não é uma distinção moral, antropológica ou espiritual.

O que faltou às Poor Laws foi precisamente o que o polonês oferece: um vocabulário capaz de reconhecer humanidades distintas.

Sem isso:

  • criou-se a workhouse, onde pobres eram punidos pelo Estado

  • confundiu-se vulnerabilidade com vagabundagem

  • tratou-se pobreza espiritual como falha de caráter

  • reduziu-se a assistência à lógica produtivista-protestante

  • abandonou-se a tradição caritativa medieval

A Inglaterra legislou sobre “the poor” porque não havia linguagem para legislar entre pobres.

5. A distinção fundamental entre law e right não resolveu o problema

Os juristas ingleses distinguem:

  • law = lei positiva

  • right = direito moral, natural

Mas essa distinção é insuficiente quando o próprio objeto da lei é mal definido. Se o conceito de “pobre” é amorfo, tanto law quanto right herdaram o erro original.

Uma palavra inadequada pode distorcer:

  • o direito natural (porque confunde os deveres de justiça e caridade)

  • a lei positiva (porque regula grupos diferentes como se fossem iguais)

Em termos filosóficos: sem distinção ontológica, não há distinção jurídica válida.

6. Língua, justiça e antropologia: a tese central

A distinção polonesa não é apenas linguística. Ela revela uma antropologia católica, que vê:

  • o pobre material como injustiçado

  • o pobre existencial como vulnerável

  • ambos como destinatários de cuidado — mas de naturezas diferentes

Já a história inglesa da pobreza — especialmente após a Reforma — revela:

  • o pobre como problema

  • a pobreza como falha moral

  • a assistência como disciplina e controle

  • a caridade como trabalho obrigatório

Assim, o vocabulário inglês não apenas descreve: ele justifica uma visão.

O vocabulário polonês, por sua vez, impede que tais reduções aconteçam.

7. Conclusão: sem dicotomias lexicais, a justiça se torna cega

A distinção entre biedny e ubogi é superior porque:

  • reconhece duas naturezas de pobreza

  • impede que a lei trate a fragilidade humana como delito

  • incorpora uma visão personalista da dignidade

  • oferece parâmetros para políticas públicas diferenciadas

  • protege a caridade de ser substituída por coerção estatal

A Inglaterra teve law e right, mas não teve biedny e ubogi. E isso, de fato, faria toda a diferença. Uma língua que não distingue não enxerga. E uma lei que não enxerga não pode julgar com justiça.

Bibliografia Essencial

Antropologia e Linguística

  • Whorf, Benjamin Lee — Language, Thought and Reality.

  • Sapir, Edward — Selected Writings in Language, Culture and Personality.

  • Tomasello, Michael — A Natural History of Human Thinking.

História da Pobreza na Inglaterra

  • Slack, Paul — The English Poor Law, 1531–1782.

  • Polanyi, Karl — The Great Transformation.

  • Himmelfarb, Gertrude — The Idea of Poverty: England in the Early Industrial Age.

  • Rose, Michael — The Relief of Poverty, 1834–1914.

Estudos Poloneses

  • Bystroń, Jan Stanisław — Kultura Ludowa.

  • Kłoczowski, Jerzy — A History of Polish Christianity.

  • Davies, Norman — God’s Playground: A History of Poland.

Doutrina Social e Filosofia Moral

  • João Paulo II — Laborem Exercens, Sollicitudo Rei Socialis, Centesimus Annus.

  • Bento XVI — Caritas in Veritate.

  • Maritain, Jacques — Humanisme Intégral.

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