Resumo
Este artigo examina como a distinção polonesa entre biedny (pobre material) e ubogi (pobre existencial/espiritual) revela uma compreensão mais rica da condição humana do que a oferecida pelo inglês, língua que não diferencia esses conceitos e que tratou “the poor” como categoria jurídica unificada. Argumenta-se que essa ausência lexical teve consequências históricas profundas, especialmente na formulação das Poor Laws inglesas, onde o pobre foi reduzido a objeto administrativo. A tese final é que sem dicotomias lexicais adequadas, a justiça positiva perde acesso à justiça natural.
1. Introdução: quando uma palavra decide o destino de um povo
Línguas não são apenas códigos de comunicação; são estruturas de percepção da realidade.
Elas recortam o mundo, eliminam nuances ou criam distinções que alteram o modo como sociedades concebem:
-
a moralidade,
-
a justiça,
-
a economia,
-
a dignidade humana.
A distinção polonesa entre biedny e ubogi é um caso exemplar disso.
Enquanto o português, o espanhol e o inglês colapsam diversos tipos de “pobreza” dentro de um único termo, o polonês separa dois fenômenos radicalmente distintos: a carência material e a vulnerabilidade espiritual.
Essa distinção — ausente no inglês — teria impedido muitos dos equívocos das Poor Laws inglesas, que trataram “os pobres” como uma massa juridicamente homogênea.
2. A dupla pobreza polonesa: biedny e ubogi
2.1. Biedny: o pobre econômico
Biedny significa aquele que sofre carência material:
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falta de renda
-
falta de recursos
-
incapacidade de atender às necessidades básicas
-
pobreza mensurável, sociológica
É a pobreza do campo da economia e da política pública.
2.2. Ubogi: o pobre na ordem da existência
Ubogi, por sua vez, deriva de ubóstwo — termo que tem ressonâncias espirituais profundas.
Indica:
-
pobreza enquanto fragilidade humana
-
humildade existencial
-
dependência espiritual
-
vulnerabilidade moral e pessoal
-
estado de desamparo que exige misericórdia, não administração
É uma pobreza que pode existir mesmo em quem não é materialmente pobre — como ocorre com o humilde, o abatido, o pequeno de coração.
Essa distinção é mais próxima do latim pauper (pobre frágil) e miser (necessitado), categorias que o polonês preserva no seu modo próprio.
3. O inglês e o colapso semântico de “the poor”
O inglês utiliza uma única palavra, poor, para designar:
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o miserável
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o desfavorecido
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o humilde
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o incapaz
-
o acidentado
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o emocionalmente abatido (you poor thing)
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o financeiramente carente
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o espiritualmente pequeno
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o fraco e o deficiente
-
o desafortunado
Ou seja: o inglês unifica biedny e ubogi sob um mesmo rótulo semântico, dissolvendo nuances antropológicas essenciais.
O resultado: a pobreza torna-se uma categoria jurídica indiferenciada.
4. As Poor Laws inglesas: quando o Estado legisla sobre uma palavra que não distingue
A Inglaterra, especialmente após a Reforma, tratou “os pobres” como um grupo administrável. A Poor Law de 1601 e, mais tarde, a drástica reforma de 1834 criaram um sistema em que:
-
pobres incapazes, órfãos e inválidos (equivalentes ao ubogi)
-
pobres aptos ao trabalho mas sem recursos (equivalentes ao biedny)
foram colocados sob o mesmo arcabouço jurídico, apenas subdivididos administrativamente entre:
-
impotent poor (incapazes)
-
able-bodied poor (aptos)
Mas essa é uma distinção funcional, não existencial. Não é uma distinção moral, antropológica ou espiritual.
O que faltou às Poor Laws foi precisamente o que o polonês oferece: um vocabulário capaz de reconhecer humanidades distintas.
Sem isso:
-
criou-se a workhouse, onde pobres eram punidos pelo Estado
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confundiu-se vulnerabilidade com vagabundagem
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tratou-se pobreza espiritual como falha de caráter
-
reduziu-se a assistência à lógica produtivista-protestante
-
abandonou-se a tradição caritativa medieval
A Inglaterra legislou sobre “the poor” porque não havia linguagem para legislar entre pobres.
5. A distinção fundamental entre law e right não resolveu o problema
Os juristas ingleses distinguem:
-
law = lei positiva
-
right = direito moral, natural
Mas essa distinção é insuficiente quando o próprio objeto da lei é mal definido. Se o conceito de “pobre” é amorfo, tanto law quanto right herdaram o erro original.
Uma palavra inadequada pode distorcer:
-
o direito natural (porque confunde os deveres de justiça e caridade)
-
a lei positiva (porque regula grupos diferentes como se fossem iguais)
Em termos filosóficos: sem distinção ontológica, não há distinção jurídica válida.
6. Língua, justiça e antropologia: a tese central
A distinção polonesa não é apenas linguística. Ela revela uma antropologia católica, que vê:
-
o pobre material como injustiçado
-
o pobre existencial como vulnerável
-
ambos como destinatários de cuidado — mas de naturezas diferentes
Já a história inglesa da pobreza — especialmente após a Reforma — revela:
-
o pobre como problema
-
a pobreza como falha moral
-
a assistência como disciplina e controle
-
a caridade como trabalho obrigatório
Assim, o vocabulário inglês não apenas descreve: ele justifica uma visão.
O vocabulário polonês, por sua vez, impede que tais reduções aconteçam.
7. Conclusão: sem dicotomias lexicais, a justiça se torna cega
A distinção entre biedny e ubogi é superior porque:
-
reconhece duas naturezas de pobreza
-
impede que a lei trate a fragilidade humana como delito
-
incorpora uma visão personalista da dignidade
-
oferece parâmetros para políticas públicas diferenciadas
-
protege a caridade de ser substituída por coerção estatal
A Inglaterra teve law e right, mas não teve biedny e ubogi. E isso, de fato, faria toda a diferença. Uma língua que não distingue não enxerga. E uma lei que não enxerga não pode julgar com justiça.
Bibliografia Essencial
Antropologia e Linguística
-
Whorf, Benjamin Lee — Language, Thought and Reality.
-
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Tomasello, Michael — A Natural History of Human Thinking.
História da Pobreza na Inglaterra
-
Slack, Paul — The English Poor Law, 1531–1782.
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Himmelfarb, Gertrude — The Idea of Poverty: England in the Early Industrial Age.
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Estudos Poloneses
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Bystroń, Jan Stanisław — Kultura Ludowa.
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Kłoczowski, Jerzy — A History of Polish Christianity.
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Doutrina Social e Filosofia Moral
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João Paulo II — Laborem Exercens, Sollicitudo Rei Socialis, Centesimus Annus.
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Bento XVI — Caritas in Veritate.
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Maritain, Jacques — Humanisme Intégral.
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