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segunda-feira, 24 de novembro de 2025

O quadraturista e a fraude hermenêutica no Sistema Tributário Brasileiro

1. Introdução

O Direito Tributário brasileiro, marcado por complexidade normativa, hipertrofia regulatória e excesso de criatividade interpretativa, produziu uma figura curiosa e profundamente problemática: o quadraturista. O termo, usado originalmente como crítica por alguns professores e tributaristas, designa aquele que, munido de aparente erudição jurídica, se dedica a “quadrar o círculo” da legislação, distorcendo o sentido das normas para transformar lacunas, silêncios e ambiguidades em verdadeiros benefícios fiscais artificialmente construídos.

Trata-se de um personagem típico de sistemas jurídicos onde a hermenêutica perde a sua função natural — a de revelar o sentido objetivo da lei — e se torna instrumento de manipulação do texto normativo. Mais do que um simples “planejador agressivo”, o quadraturista opera por meio daquilo que se pode chamar de fraude hermenêutica, uma corrupção intelectual da função interpretativa do jurista.

Esse fenômeno se manifesta de modo paradigmático no uso do instituto brasileiro da consulta fiscal.

2. A consulta fiscal e sua vulnerabilidade estrutural

A consulta fiscal, prevista no ordenamento brasileiro como mecanismo para oferecer ao contribuinte segurança jurídica sobre o entendimento da administração, é um instituto singular. Diferentemente de outros sistemas, nos quais as advance rulings possuem escopo restrito e critérios rígidos, a consulta fiscal brasileira se tornou:

  1. Extremamente acessível;

  2. Vinculante para o Fisco enquanto vigente;

  3. Capaz de gerar “zonas de conforto” artificiais para planejamentos tributários pouco ortodoxos.

Em tese, ela deveria ser um meio de comunicação transparente entre contribuinte e Estado. Na prática, tornou-se terreno fértil para o quadraturista: o profissional que formula perguntas cuidadosamente calibradas para obter respostas administrativas que pareçam legais, mas que decorrem de uma interpretação forçada, oblíqua, antissistemática.

Essa vulnerabilidade decorre do mesmo traço que caracteriza a cultura jurídica brasileira: um excesso de confiança na letra, dissociada do espírito e da teleologia da norma.

3. A hermenêutica desonesta: mecanismos e estratégias

A atuação do quadraturista pode ser descrita em três níveis:

3.1. Manipulação terminológica

O quadraturista procura redefinir conceitos jurídicos consolidados — receita, operação, fato gerador, base de cálculo — por meio de distinções artificiais, frequentemente sem amparo dogmático ou legislativo. Cria exceções onde há generalidade, vê normas especiais onde há regra geral, e reinterpreta institutos consolidados como se fossem maleáveis à vontade do intérprete.

3.2. Fragmentação do texto normativo

Em vez de integrar a norma ao sistema tributário, o quadraturista isola dispositivos e os interpreta como se não estivessem inseridos em um corpo orgânico. Essa desarticulação do sistema permite “encontrar” benefícios que não existem: créditos presumidos que jamais foram previstos, imunidades improváveis, isenções subentendidas.

3.3. Uso estratégico da consulta fiscal

A consulta se torna, para o quadraturista, uma forma de legalizar previamente uma interpretação tortuosa. A pergunta é desenhada de modo a:

  • omitir elementos relevantes do caso concreto;

  • enfatizar apenas aspectos que facilitam a resposta desejada;

  • induzir o órgão consultivo a responder num vácuo interpretativo.

Criada para assegurar boa-fé, a consulta passa a ser usada para legitimar má-fé.

4. Por que isso é fraude, e não elisão legítima

A diferença entre o planejador tributário legítimo e o quadraturista é simples:

  • A elisão legítima respeita a letra e a finalidade da lei, operando dentro da moldura autorizada pelo ordenamento.

  • A quadratura opera contra o espírito da lei, fabricando interpretações que o legislador jamais concebeu, com evidente desvio teleológico.

Se a elisão é obra de engenho jurídico, a quadratura é obra de astúcia. A primeira é parte saudável da relação entre contribuinte e Estado; a segunda é corrosiva e gera:

  • desequilíbrio concorrencial;

  • insegurança jurídica;

  • incentivos perversos para planejamentos abusivos;

  • fragilidade institucional.

Trata-se, portanto, de uma forma de fraude, não apenas material, mas intelectual e hermenêutica.

5. O contexto cultural da quadratura: por que isso só poderia ter nascido no Brasil

A figura do quadraturista nasce de três condições combinadas:

  1. Complexidade caótica do sistema tributário, fruto de décadas de improvisações legislativas.

  2. Excesso de criatividade jurídica, característica da cultura constitucionalizada brasileira.

  3. A crença de que o “jeitinho” pode ser institucionalizado, desde que revestido de formalidade.

Esse caldo cultural transforma a consulta fiscal em um palco privilegiado para a aparelhagem interpretativa de interesses particulares, muitas vezes em detrimento do interesse público.

6. O impacto institucional da quadratura

O quadraturista não é apenas um sintoma; é também um agente que contribui para a degradação do sistema tributário. Seus efeitos cumulativos incluem:

  • Erosão da moralidade administrativa: a consulta fiscal passa a ser encarada como mecanismo de obtenção de vantagens, e não de esclarecimento.

  • Criação de brechas artificiais: interpretações distorcidas acabam sendo replicadas como precedentes administrativos.

  • Aumento do litígio: decisões divergentes são inevitáveis quando interpretações desonestas proliferam.

  • Debilitação da confiança social no sistema tributário como instrumento de justiça distributiva.

7. Conclusão

O quadraturista é, antes de tudo, um corruptor da hermenêutica. Em vez de aproximar o intérprete da verdade normativa, ele a retorce até produzir efeitos incompatíveis com a ordem jurídica. É a expressão mais sofisticada do “jeitinho jurídico”: não a solução criativa que busca justiça, mas o artifício intelectual que cria privilégios.

Combater o quadraturista é mais do que combater um comportamento profissional duvidoso. É restaurar a integridade do próprio ato de interpretar, lembrando que o jurista não é um malabarista sem alma, mas alguém comprometido com a revelação da verdade normativa — e, em última instância, com o bem comum.

Bibliografia Comentada 

1. Obrad Gerais de Hermenêutica e Filosofia do Direito

Gadamer, Hans-Georg. Verdade e Método.

Obra fundamental da hermenêutica filosófica. Gadamer afirma que interpretar é fundir horizontes, e não manipular sentidos. A crítica ao quadraturista pode ser diretamente amparada no conceito gadameriano de “boa fé hermenêutica” – a interpretação não é um jogo arbitrário, mas um ato de participação na verdade da coisa interpretada.

Ricœur, Paul. O Conflito das Interpretações.

Ricœur explica como a interpretação pode ser desviada por voluntarismos e interesses particulares. É extremamente útil para demonstrar como, no campo tributário, o excesso de liberdade interpretativa abre portas à fraude hermenêutica.

Perelman, Chaïm. Lógica Jurídica.

Perelman mostra que os argumentos jurídicos devem obedecer à razoabilidade e à coerência. Suas categorias permitem identificar claramente quando uma argumentação é válida e quando é um artifício retórico – exatamente o que distingue o intérprete honesto do quadraturista.

2. Obras sobre moralidade jurídica e desvios interpretativos

Fuller, Lon. A Moralidade do Direito.

Fuller demonstra que a validade das normas depende não apenas de sua formalidade, mas de sua integridade interna. A quadratura viola ao menos três “desejabilidades” de Fuller: clareza, congruência e não-contradição – o que fundamenta teoricamente a acusação de fraude hermenêutica.

Dworkin, Ronald. Levando os Direitos a Sério e O Império do Direito.

A ideia de “integridade” como exigência moral e interpretativa é essencial para mostrar que o jurista não pode escolher a interpretação que melhor convém ao cliente, mas aquela que melhor se harmoniza com o sistema jurídico como um todo.

3. Obras Específicas de Direito Tributário e Planejamento

Schoueri, Luís Eduardo. Normas Tributárias Indutivas e Planejamento Fiscal.

Referência central no estudo da linha tênue entre elisão legítima e abuso. Schoueri fornece o arcabouço conceitual para distinguir planejamento lícito da quadratura: é o propósito da norma que limita a liberdade do contribuinte.

Xavier, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil.

Embora focado em matéria internacional, Xavier analisa profundamente as questões de interpretação tributária e o abuso de formas jurídicas. Suas categorias ajudam a identificar planejamentos abusivos e a separar-os da elisão.

Paulo de Barros Carvalho. Curso de Direito Tributário.

Carvalho estrutura o sistema tributário como uma linguagem rigorosa. Sua hermenêutica literal-sistêmica oferece critérios para mostrar que a quadratura rompe o sistema, criando incoerências que a análise dogmática não pode tolerar.

Heleno Tôrres. Direito Tributário – Fundamentos Jurídicos da Incidência.

Tôrres trata da interpretação sistemática do fato gerador. Sua obra demonstra como a desagregação interpretativa típica do quadraturista é antissistemática e destrói a coerência normativa.

Misabel Derzi. Direito Tributário Brasileiro.

Derzi – seguindo Alfredo Augusto Becker – critica severamente as interpretações artificiais e as “normas tributárias de ocasião”, reforçando a distinção entre interpretação e manipulação.

4. Doutrina sobre abuso de direito, simulação e propósito negocial

Becker, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário.

Obra clássica que denuncia o “caos tributário” brasileiro e os comportamentos interpretativos que dele decorrem. Becker antecipa a crítica ao quadraturista ao argumentar que a manipulação exegética é um dos motores da insegurança jurídica.

Geraldo Ataliba. Hipótese de Incidência Tributária.

Ataliba fornece um rigor conceitual indispensável: a hipótese de incidência não admite deformações. O quadraturista, ao manipular essa estrutura, comete verdadeiro atentado à integridade dogmática.

Greco, Marco Aurélio. Planejamento Tributário e Propósito Negocial.

Greco aprofunda o conceito de “propósito negocial”, útil para denunciar planejamentos que, embora formalmente corretos, violam a substância econômica da operação – típico expediente de quadraturista.

5. Trabalhos sobre consulta fiscal e segurança jurídica

Carrazza, Roque Antonio. ICMS (Volume sobre interpretação administrativa).

Carrazza comenta a natureza da consulta fiscal e sua função de segurança jurídica. Sua análise pode ser usada para mostrar que o instituto não foi criado para legitimar construções artificiais.

Pareceres da Receita Federal do Brasil sobre consultas fiscais.

A jurisprudência administrativa (COSIT, CARF) contém inúmeros casos que revelam tanto o uso legítimo quanto o uso deturpado da consulta. Uma pesquisa estruturada nessa jurisprudência fornece exemplos concretos da quadratura.

6. Filosofia Moral e Ética Profissional

MacIntyre, Alasdair. Depois da Virtude.

MacIntyre mostra como, quando a virtude se perde, as práticas humanas se corrompem por dentro. A atuação do quadraturista pode ser lida como decadência ética da prática jurídica, movida por critérios instrumentais, não por padrões de excelência.

Josiah Royce. The Philosophy of Loyalty.

Royce explica que a lealdade é o vínculo interno que une o homem ao propósito mais elevado de sua atividade. O quadraturista rompe com essa lealdade: não é fiel à verdade da lei, mas apenas ao interesse do cliente.

7. Obras Complementares de Teoria Geral do Direito

Kelsen, Hans. Teoria Pura do Direito.

Embora neutro quanto à moralidade, Kelsen fornece critérios para identificar interpretação válida dentro da “moldura normativa”. O quadraturista ultrapassa essa moldura, convertendo interpretação em criação normativa indevida.

Bobbio, Norberto. Teoria da Norma Jurídica.

Bobbio esclarece a estrutura da norma e o limite da interpretação. Sua teoria é útil para demonstrar quando o intérprete passa a atuar como legislador clandestino.

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