1. Introdução
Se a empresa deixa de ser um bloco monolítico e passa a funcionar como um ecossistema social produtivo, então sua dinâmica interna deixa de ser apenas organizacional e passa a ser política. Não política no sentido partidário, mas no sentido clássico, aristotélico: a gestão do bem comum de uma comunidade.
Nesse novo paradigma, o CEO não é apenas o gestor supremo, o estrategista, o administrador de recursos. Ele é, por analogia estrutural, o prefeito de uma cidade corporativa. E a empresa é uma res publica não-estatal, uma “coisa pública” governada por uma coletividade, mas não pelo Estado — exatamente como Bresser-Pereira definiu ao falar de organizações públicas não estatais, voltadas ao interesse comum.
A empresa, portanto, torna-se:
-
um ecossistema (relações vivas),
-
uma microcidade (estrutura política interna),
-
e uma instituição pública não estatal (voltada ao bem comum interno e externo).
2. O CEO como prefeito da cidade corporativa
A metáfora é precisa: Se a empresa é uma cidade, o CEO é seu prefeito.
O prefeito:
-
representa a comunidade;
-
coordena setores e corpos distintos;
-
toma decisões que afetam o bem comum;
-
negocia, articula, harmoniza interesses divergentes;
-
deve possuir legitimidade, reputação e confiança dos cidadãos.
Da mesma forma, o CEO:
2.1. Representa a empresa como um todo
Ele encarna a identidade do ecossistema, tal como um prefeito encarna a identidade de uma cidade.
2.2. Relaciona-se com “corpos sociais” distintos
Departamentos, equipes, grupos informais, núcleos de especialização, categorias profissionais.
Cada parte é como um bairro, um distrito ou uma comunidade.
2.3. Precisa de reputação entre todos esses grupos
Pois sem reputação política interna, não há coesão.
2.4. Age como negociador do bem comum
Não governa contra a empresa, mas com a empresa.
2.5. Serve ao bem comum-meio (a empresa)
A empresa, como cidade, não existe para si mesma, mas para servir ao bem comum-fim: os consumidores.
Essa distinção é absolutamente aristotélica:
-
bem comum-meio = aquilo que permite a cooperação (a polis, ou aqui, a empresa)
-
bem comum-fim = aqueles para quem a comunidade existe (cidadãos; aqui, consumidores)
3. O ethos político do CEO
Um prefeito incompetente destrói a cidade. Um CEO incompetente destrói o ecossistema corporativo.
Da mesma forma que um líder político:
3.1. O CEO deve exercer prudência (phronesis)
Não pode tomar decisões mecânicas. Precisa de sensibilidade moral, cultural e humana.
3.2. Deve ter diplomacia interna
Pois cada setor tem sua cultura, linguagem, incentivos e interesses.
3.3. Precisa de legitimidade simbólica
A autoridade formal (cargo) não basta; é necessária autoridade moral e autoridade reputacional.
3.4. Atua como guardião do pacto social interno
Toda empresa moderna possui regras explícitas, mas também normas tácitas, costumes internos, pactos informais — exatamente como uma cidade.
3.5. Deve servir ao bem comum e não ao bem próprio
Um prefeito que governa apenas para si destrói sua cidade. Um CEO que governa apenas para si destrói a empresa.
4. Empresa como instituição pública não-estatal (Bresser-Pereira)
Luiz Carlos Bresser-Pereira fez uma distinção sofisticada e pouco compreendida:
-
Público estatal: o que pertence ao Estado.
-
Público não-estatal: instituições cuja finalidade é o interesse comum, mas que não pertencem ao Estado — como conselhos profissionais, fundações, universidades comunitárias, cooperativas e associações.
Sua definição aplica-se perfeitamente à empresa-ecossistema:
4.1. Ela serve ao interesse coletivo interno
Funcionários, parceiros, fornecedores, prestadores: todos dependem dela.
4.2. Ela serve ao interesse coletivo externo
Consumidores, bairro, mercado, cadeia produtiva, sociedade.
4.3. Seus resultados são públicos, não privados
O valor social que ela cria — inovação, eficiência, circulação de conhecimento, emprego, bens — é sempre público, mesmo quando apropriado privadamente.
4.4. Ela é autogovernada por uma coletividade plural
Gestores, conselhos, acionistas, direção, corpo técnico: todos formam um corpo político interno, embora não sejam um órgão estatal.
A empresa-ecossistema é uma res pública corporativa.
5. A política interna da empresa: uma ciência invisível
A empresa moderna funciona como:
-
uma cidade;
-
um ecossistema;
-
uma instituição política;
-
uma comunidade de destino;
-
uma república não estatal.
Por isso, a governança deixou de ser mera técnica administrativa e se tornou uma ciência política interna.
As relações internas são relações de poder,
mas também de
reconhecimento,
confiança,
lealdade,
reputação,
coordenação social.
Esses elementos, embora invisíveis a planilhas, são tão essenciais quanto a contabilidade financeira.
Bastiat diria:
“O que faz uma empresa funcionar é o que não se vê.”
E o que não se vê é a política interna — a cidade viva que pulsa por trás do CNPJ.
6. Conclusão: o prefeito corporativo como guardião do bem comum
Quando se reconhece que a empresa é um ecossistema e que o CEO é seu prefeito, compreende-se que:
-
governar uma empresa é governar uma comunidade;
-
o sucesso de uma empresa depende do capital político interno;
-
a legitimidade é tão importante quanto a eficiência;
-
a empresa é uma res publica não-estatal, e seu dirigente é uma figura política;
-
o bem comum interno é meio para o bem comum externo, que é o verdadeiro fim.
A boa empresa, como a boa cidade, é aquela que promove vida boa para os que nela convivem e que entrega bens verdadeiros à sociedade.
A má empresa, como a má cidade, destrói o tecido social que a sustenta.
Bibliografia Comentada
1. Aristóteles — Política
Aristóteles define a cidade (polis) como uma comunidade orientada para o bem comum. Sua análise das formas de governo, da prudência (phronesis) e da ética da liderança fornece a base filosófica para entender o CEO como “prefeito”: um líder cuja legitimidade deriva da capacidade de harmonizar interesses e conduzir a comunidade corporativa ao seu bem comum. É o ponto de partida clássico para toda analogia entre governança e política.
2. Tomás de Aquino — Comentário à Ética a Nicômaco e Comentário à Política
Santo Tomás aprofunda a ideia do bem comum como fim natural das comunidades humanas. Para ele, a autoridade legítima existe para ordenar os membros ao bem comum superior, e essa autoridade se fundamenta na prudência e na justiça. Aplicar Tomás à empresa moderna ajuda a compreender que o CEO não manda arbitrariamente: ele ordena, governa, cuida e preserva o tecido social da empresa.
3. Luiz Carlos Bresser-Pereira — A Reforma do Estado nos Anos 90 e Democracia e Construção do Estado
Bresser-Pereira define com precisão o conceito de instituições públicas não-estatais: entidades que servem ao interesse da coletividade, embora não façam parte do Estado. A empresa complexa encaixa-se nessa categoria quando vista como ecossistema e microcidade, pois serve simultaneamente a uma coletividade interna (colaboradores, fornecedores) e externa (consumidores). Sua teoria dá base conceitual para afirmar que a empresa é uma “res publica corporativa”.
4. Ronald Coase — The Nature of the Firm
Coase explica por que as empresas existem: para reduzir custos de transação. No entanto, sua obra se torna ainda mais profunda quando percebemos que a redução desses custos depende de governança interna — isto é, de política. Coase fornece o enquadramento para entender que a empresa, apesar de privada, funciona com lógicas públicas, exigindo coordenação e autoridade legítima.
6. Henry Mintzberg — The Rise and Fall of Strategic Planning e Managing the Myths of Health Care
Mintzberg argumenta que a verdadeira gestão é profundamente política, baseada em relações humanas, e não apenas em processos formais. Ele descreve as organizações como “florestas sociais”, cheias de interações vivas. Sua crítica à visão mecanicista da gestão reforça a ideia de que o CEO precisa operar como líder político, harmonizando tribos e comunidades internas.
7. Paulo Gala — Complexidade Econômica: Uma Nova Perspectiva para Entender a Economia
Gala mostra que a riqueza surge de redes complexas de capacidades produtivas interconectadas. A empresa-ecossistema é exatamente isso: uma rede de habilidades diversas que se coordenam para criar valor. O conceito de complexidade econômica ilumina a dimensão invisível das relações internas da empresa e reforça que o papel do CEO é coordenar essas redes, como um prefeito coordena sua cidade.
8. Mark Granovetter — Economic Action and Social Structure: The Problem of Embeddedness
Granovetter demonstra que toda ação econômica é “embutida” em redes sociais. Enquanto economistas clássicos veem indivíduos isolados, Granovetter vê malhas de relações. Sua obra é essencial para compreender que a empresa é antes de tudo uma rede social produtiva, e que o CEO governa pessoas que agem dentro dessas redes, não peças mecânicas.
9. James March & Herbert Simon — Organizations
Clássico da teoria organizacional. March e Simon descrevem as organizações como sistemas de regras, papéis e racionalidades limitadas — ou seja, verdadeiros sistemas políticos internos. A obra mostra que decisões corporativas são análogas a decisões públicas, exigindo negociação, legitimidade e coordenação. Base conceitual perfeita para o “prefeito corporativo”.
10. Peter Drucker — Management: Tasks, Responsibilities, Practices
Drucker vê o gestor como um “órgão social”, alguém que serve à comunidade organizacional e mantém a saúde da instituição. Ele introduz de forma clara a ideia de que o gestor (e, no topo, o CEO) não é apenas administrador, mas figura política, cultural e comunitária. Sua visão é profundamente convergente com a ideia da empresa como cidade.
11. Elinor Ostrom — Governing the Commons
Embora focada em recursos comuns, Ostrom mostra como comunidades conseguem se autogovernar criando regras, reputações, sanções e pactos de longo prazo. Empresas-ecossistema funcionam exatamente assim: como comunidades que dependem de regras compartilhadas. Sua teoria ajuda a entender como o CEO atua como guardião desse sistema de governança policêntrica.
12. Max Weber — Economia e Sociedade
Weber analisa diferentes tipos de autoridade — tradicional, legal-racional e carismática — e como elas estruturam comunidades humanas. Aplicar Weber ao ambiente corporativo ajuda a compreender por que o CEO precisa combinar autoridade formal (legal-racional) com legitimidade carismática (reputação interna). Weber ilumina a política interna da empresa com precisão quase cirúrgica.
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