Introdução
O provérbio popular “fazer o bem sem olhar a quem” é recorrentemente repetido como expressão de altruísmo. Porém, à luz da filosofia, da teologia e da antropologia, revela-se um sofisma perigoso. A caridade não se confunde com liberalidade irrefletida; a dádiva, quando desprovida de solenidade e discernimento, degrada-se em profanação.
O presente artigo examina a questão da dádiva a partir de três perspectivas: a filosofia tomista, a análise antropológica de Marcel Mauss e a reflexão política de Hannah Arendt.
1. A virtude da liberalidade em Santo Tomás de Aquino
Na Suma Teológica (II-II, q.117), Santo Tomás define a liberalidade como a virtude que regula o uso dos bens exteriores, especialmente no ato de dar. O Aquinate insiste que a liberalidade deve estar subordinada à razão, e que dar indiscriminadamente não constitui virtude, mas desordem.
Se a finalidade própria da virtude é ordenar o bem segundo a reta razão, não pode ser ato virtuoso entregar bens preciosos a pessoas incapazes de honrá-los. Tal gesto não edifica, mas desperdiça, e por vezes até escandaliza. Portanto, a caridade não pode ser confundida com descuido: dar mal é tão injusto quanto não dar quando se deve.
2. A teoria antropológica da dádiva (Marcel Mauss)
Em seu clássico Ensaio sobre a Dádiva (1925), Marcel Mauss demonstra que, em sociedades tradicionais, a dádiva não é mero ato de transferência material, mas um ato carregado de sentido social e espiritual. Dar implica sempre um triplo movimento: dar, receber e retribuir.
Nessas culturas, a dádiva é acompanhada de solenidade, pois não se trata de “descarregar” um objeto, mas de estabelecer vínculos de honra, confiança e reciprocidade. O objeto doado carrega consigo algo da pessoa que doa. Assim, se o recebedor despreza o objeto ou não o honra, rompe-se o laço social e espiritual que sustentava a troca.
Aplicado ao contexto cristão, isso significa que uma dádiva feita sem discernimento — “sem olhar a quem” — não cumpre sua função sacramental de edificar vínculos de comunhão.
3. A crítica de Hannah Arendt: a banalização do bem
Hannah Arendt, ao refletir sobre o “mal banal” em Eichmann em Jerusalém, mostrou como atos humanos podem ser esvaziados de significado moral quando realizados de modo maquinal, sem reflexão. Embora falasse do mal, sua análise pode ser aplicada ao “bem” quando este é reduzido a gesto irrefletido: também o bem pode ser banalizado.
“Fazer o bem sem olhar a quem” é, nesse sentido, uma forma de banalização: o gesto não considera a dignidade do destinatário, nem a responsabilidade do doador. O bem, quando privado de solenidade e responsabilidade, perde substância e se torna mera aparência.
4. Idem velle, idem nolle: a comunhão da vontade
Os antigos romanos resumiam a verdadeira amizade na máxima idem velle, idem nolle — querer e não querer as mesmas coisas. Esse princípio pode ser transposto para a dádiva cristã: só há verdadeira dádiva quando há comunhão de vontade entre quem dá e quem recebe.
Quando alguém recebe um livro, um brinquedo ou mesmo uma Bíblia, mas não tem a intenção de honrar o dom, não existe comunhão; a dádiva torna-se vã. O doador, nesse caso, não deve ser visto como egoísta se recusar a doar: ao contrário, demonstra zelo e justiça ao preservar o bem até encontrar quem saiba honrá-lo.
Conclusão
O provérbio “fazer o bem sem olhar a quem” é mais uma fórmula de comodidade do que uma regra de caridade. A verdadeira dádiva, à luz de Santo Tomás, de Mauss e de Arendt, exige discernimento, solenidade e reciprocidade.
Dar sem olhar a quem é, no fundo, profanar tanto o objeto dado quanto a própria virtude da liberalidade. A caridade cristã não se confunde com desleixo: ela exige que cada dádiva seja feita com solenidade, de modo que o bem não se perca no lixo da banalidade, mas floresça em comunhão nos méritos de Cristo.
Bibliografia
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AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. II-II, q.117 (Sobre a virtude da liberalidade). Trad. Alexandre Correia. São Paulo: Loyola, 2001.
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MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão da troca nas sociedades arcaicas (1925). Trad. Paulo Neves. São Paulo: Cosac Naify, 2003.
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ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. Trad. José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
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AGOSTINHO, Santo. Confissões. Trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrósio de Pina. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991. [Referência complementar sobre memória, dons e solenidade da vida cristã].
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ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. Trad. Lourdes Santos Machado. São Paulo: Martins Fontes, 1999. [Para o princípio “idem velle, idem nolle”, citado como base da comunhão de vontade].
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