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quinta-feira, 2 de outubro de 2025

O povo como pato: crítica católica e arendtiana ao economicismo e à redução do humano ao biológico

A frase satírica de Lisboa, imitando Lula — “ o povo tem que comer, o povo tem que cagar” — escancara, em tom de deboche, um problema profundo da política contemporânea: a redução do homem a um ser meramente biológico. O complemento da ironia — “o povo é pato, pois ele caga logo que come” — intensifica essa crítica, ao retratar a população como animais que apenas ingerem e excretam, sem pausa para refletir, acumular ou transcender.

Trata-se de uma metáfora dura, mas precisa, contra o economicismo que permeia tanto o populismo fisiológico quanto o comunismo ideológico.

A redução do homem ao biológico

O economicismo é a visão segundo a qual todos os problemas humanos podem ser resolvidos dentro da esfera econômica. Essa mentalidade, denunciada pela tradição católica, inverte meios e fins: faz da economia — que deveria estar a serviço do homem e do bem comum — a medida do próprio valor humano.

Como ensinou o Papa Pio XI na Quadragesimo Anno (1931), essa redução se manifesta em duas versões igualmente perigosas: o liberalismo materialista e o coletivismo comunista. Ambos, ainda que rivais, compartilham a mesma falha de origem: ver no homem apenas uma peça útil dentro da engrenagem econômica ou estatal.

É nesse sentido que a frase caricata atribuída a Lula é reveladora: a função do governo se resumiria a garantir que o povo se alimente e satisfaça suas necessidades fisiológicas. Nada além.

A contribuição de Hannah Arendt

Hannah Arendt, em A Condição Humana (1958), oferece uma crítica paralela a essa mesma redução. Ela distingue três dimensões da vida ativa: labor, trabalho e ação.

  • O labor é a atividade ligada à sobrevivência biológica: comer, beber, reproduzir-se — o ciclo da vida que nunca se completa.

  • O trabalho é a atividade que cria um mundo estável de coisas, uma permanência cultural e material.

  • A ação é a dimensão política e livre, onde o homem aparece em sua singularidade, comunica-se e funda novas realidades.

Ao reduzir o povo à condição de “quem come e caga”, o discurso populista coloca o homem apenas na esfera do animal laborans, isto é, o ser humano preso ao ciclo natural, sem espaço para o trabalho criador e muito menos para a ação política autêntica.

A consequência, como alerta Arendt, é a perda da liberdade e da dignidade: os homens deixam de ser cidadãos e se tornam meros organismos a serem administrados.

O comunismo como forma extrema

A tradição católica, em consonância com Arendt, vê no comunismo a forma mais radical dessa redução. Como ensina Pio XI na Divini Redemptoris (1937), o comunismo não apenas concentra-se no biológico, mas nega a transcendência divina, suprimindo a dimensão espiritual que dá sentido à vida.

Nesse sistema, o povo é reduzido a massa manipulável, mantida apenas com o necessário para que continue a servir ao projeto ideológico. A caricatura “o povo é pato” exprime perfeitamente essa lógica: não se exige dele pensamento, cultura ou fé, apenas sobrevivência e obediência.

A resposta católica

Contra esse reducionismo, a visão católica recoloca o homem em sua integridade. Como recorda Leão XIII em Rerum Novarum (1891), o trabalho humano não é apenas esforço biológico, mas participação na obra criadora de Deus. O salário não deve apenas sustentar o corpo, mas permitir a vida digna da família, a educação dos filhos e o cultivo da virtude.

O homem, portanto, não é pato. Ele é imago Dei, chamado a transcender o mero ciclo de comer e excretar, para viver em liberdade, verdade e amor.

Conclusão

A ironia de Lisboa, ainda que em tom de piada, toca em um ponto vital: reduzir o povo à condição de animal fisiológico é desumanizar a política. É transformar cidadãos em patos, satisfeitos com grãos, sem consciência de sua vocação maior.

Hannah Arendt, do ponto de vista filosófico, e a tradição católica, do ponto de vista teológico, convergem na denúncia do economicismo: o homem não é apenas laborans. Ele é também trabalhador criador, agente político, filho de Deus chamado à santidade.

A verdadeira política deve superar tanto o populismo fisiológico quanto o comunismo materialista. O povo não é pato: é uma comunidade de pessoas destinadas a construir, agir e amar — em Cristo, por Cristo e para Cristo.

📖Bibliografia

  • Leão XIII, Rerum Novarum (1891).

  • Pio XI, Quadragesimo Anno (1931).

  • Pio XI, Divini Redemptoris (1937).

  • Bento XVI, Caritas in Veritate (2009).

  • Hannah Arendt, A Condição Humana (1958).

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