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sexta-feira, 31 de outubro de 2025

A brecha legal canadense em matéria de Direitos Autorais - o marco temporal de 30 de dezembro de 2022 e seus efeitos sobre o domínio público

1. Introdução

A legislação canadense de direitos autorais, tradicionalmente considerada uma das mais equilibradas do mundo anglo-saxão, passou por uma alteração profunda no final de 2022. Com a sanção da Bill C-19, o prazo de proteção passou de 50 para 70 anos após a morte do autor. Contudo, o legislador optou por uma transição sem retroatividade, criando uma brecha temporal que hoje permite distinguir dois regimes jurídicos de proteção coexistentes no mesmo território.

Esse marco temporal, estabelecido em 30 de dezembro de 2022, determina que os autores falecidos antes dessa data permanecem sob o regime antigo (vida + 50 anos), enquanto aqueles falecidos em ou após essa data passam automaticamente ao regime novo (vida + 70 anos).

Essa decisão aparentemente técnica criou uma lacuna jurídica com efeitos econômicos e culturais consideráveis, sobretudo para editoras independentes, pesquisadores e empreendedores digitais que atuam no campo do domínio público.

2. O contexto jurídico: da antiga lei à Bill C-19

Antes da reforma, o Copyright Act do Canadá seguia o padrão mínimo da Convenção de Berna, protegendo obras por 50 anos após a morte do autor. Essa norma vigorou por décadas, distinguindo o Canadá dos Estados Unidos e da União Europeia, cujos prazos já haviam sido estendidos para 70 anos.

A alteração de 2022 não foi fruto de política interna, mas resultado de um compromisso internacional firmado no Acordo Estados Unidos–México–Canadá (USMCA/CUSMA), que exigia a harmonização dos prazos de proteção autoral entre os três países da América do Norte.

Contudo, o legislador canadense, ao implementar o novo prazo, optou deliberadamente por não aplicá-lo retroativamente. Isso significa que nenhuma obra cuja proteção já havia começado a contar sob o regime de 50 anos teve sua vigência estendida. Essa decisão, aparentemente técnica, preservou a segurança jurídica dos que já se beneficiavam do fluxo natural de obras ingressando no domínio público.

3. O marco temporal: 30 de dezembro de 2022

O 30 de dezembro de 2022 é a data de entrada em vigor da emenda legislativa. Ela opera como um divisor de águas:

  • Autores falecidos até 29 de dezembro de 2022 → suas obras continuam protegidas por 50 anos após a morte;

  • Autores falecidos a partir de 30 de dezembro de 2022 → suas obras passam a gozar de 70 anos de proteção.

Assim, o caso de Olavo de Carvalho (falecido em 24 de janeiro de 2022) enquadra-se claramente no primeiro grupo. As suas obras, no território canadense, entrarão em domínio público em 1º de janeiro de 2073, cinquenta anos após o ano de sua morte.

Trata-se de uma situação peculiar: vamos supor que Olavo tivesse falecido uma semana depois da entrada em vigor da nova lei - neste caso o prazo seria prorrogado automaticamente por mais 20 anos, até 2093. Essa diferença de poucos dias ilustra o caráter arbitrário, porém juridicamente eficaz, do marco temporal estabelecido pelo legislador.

4. As implicações econômicas e culturais

A consequência direta dessa brecha é o surgimento de um duplo mercado editorial dentro do próprio Canadá:

  • De um lado, as obras de autores falecidos antes da reforma, que entrarão em domínio público mais cedo;

  • De outro, as obras de autores posteriores a 30/12/2022, cujos direitos se estendem por duas décadas adicionais.

Editoras digitais e empreendedores literários têm explorado essa diferença para criar catálogos de domínio público antecipado, destinados ao mercado canadense. Como o Canadá reconhece a lex loci protectionis (isto é, a lei do local onde a proteção é reclamada), tais obras podem ser legalmente reproduzidas, digitalizadas e comercializadas no território canadense — ainda que continuem protegidas em outros países, como o Brasil ou os Estados Unidos.

Em termos práticos, isso significa que um editor canadense ou residente legal no Canadá pode vender e-books ou edições comentadas de autores falecidos antes de 30/12/2022, mesmo que tais obras ainda estejam sob proteção em outras jurisdições. Trata-se de uma forma legítima de arbitragem jurídica internacional, análoga à arbitragem cambial no campo financeiro.

5. Considerações Finais

A brecha canadense de 2022 é um caso paradigmático de como o direito transicional pode gerar oportunidades econômicas e culturais. Ao não estender retroativamente o novo prazo de 70 anos, o legislador canadense preservou o princípio da segurança jurídica e, involuntariamente, criou um ambiente favorável à circulação antecipada do conhecimento.

Para os estudiosos, editores e empreendedores digitais atentos, o Canadá torna-se assim um porto seguro do domínio público, onde a prudência legislativa e a clareza das datas abrem espaço para iniciativas legítimas de difusão cultural — inclusive de autores contemporâneos cujas obras, em outros países, permanecerão bloqueadas por décadas.

6. Referências

  • Copyright Act (R.S.C., 1985, c. C-42) – versão anterior e posterior à Bill C-19.

  • Bill C-19 – Budget Implementation Act, 2022, No. 1 (Royal Assent: 23 June 2022; in force: 30 December 2022).

  • USMCA/CUSMA, Art. 20.62 – Term of Protection.

  • Convenção de Berna para a Proteção das Obras Literárias e Artísticas, Art. 7.

  • Declarações interpretativas do Department of Innovation, Science and Economic Development (ISED), Canadá, 2022.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Substituição Tributária e Hortas Domésticas: entre a cesta básica e a produção sazonal

A substituição tributária é um regime pelo qual a cobrança de tributos é antecipada na cadeia produtiva, geralmente no momento em que o produto sai do campo ou da indústria em direção ao atacadista. No setor de alimentos, essa prática é comum quando se trata de itens que compõem a cesta básica — arroz, feijão, milho, soja, trigo — produtos de consumo massivo e parte essencial da dieta da população brasileira.

Como funciona a substituição tributária nos alimentos básicos

No caso desses produtos, os tributos federais (como PIS e Cofins) são recolhidos antecipadamente pelo governo federal sobre o cultivo e a produção industrial. Ao mesmo tempo, o governo estadual arrecada o ICMS diretamente do produtor, ainda antes que o produto chegue ao atacadista.

Assim, quando o bem chega ao mercado atacadista ou varejista, já vem com o imposto embutido no preço. Dessa forma, nem atacadistas nem varejistas recolhem ICMS na venda ao consumidor final: apenas repassam ao preço o que já foi antecipado pelo produtor. O resultado é que o produtor rural especializado em monocultura de larga escala (latifúndio) concentra a função de contribuinte substituto, repassando a carga tributária adiante.

Quando não há substituição tributária

Por outro lado, quando falamos de alimentos sazonais ou regionais, cujo cultivo atende a preferências locais (como frutas típicas, hortaliças específicas ou produtos de nicho), o regime de substituição tributária muitas vezes não se aplica. Nesse caso, a tributação pode se dar de forma fragmentada, em cada etapa da cadeia (produção, transporte, atacado, varejo). Isso encarece o produto para o consumidor final e aumenta a burocracia fiscal.

Esse é o motivo pelo qual, no setor de hortifruti fresco, consumidores como sua mãe acabam pagando tributos federais e estaduais embutidos em cada compra, sem se beneficiarem da simplificação da substituição tributária que existe para grãos ou outros itens da cesta básica.

A horta como forma de afastar a carga tributária

Diante dessa realidade, cultivar uma horta doméstica passa a ser uma solução econômica e estratégica. O alimento produzido para o próprio consumo escapa da tributação indireta, já que não há circulação mercantil tributável. Cada tomate, alface ou tempero colhido em casa é um alimento livre de impostos, pois não percorreu a cadeia formal de produção e comércio.

Além da economia direta com tributos, a horta traz outros benefícios: maior frescor dos alimentos, autonomia alimentar, possibilidade de cultivo de variedades não encontradas no mercado e redução da dependência das oscilações de preço e sazonalidade.

Conclusão

Enquanto os latifúndios especializados garantem a estabilidade da dieta básica da população através da substituição tributária — um mecanismo de arrecadação eficiente e antecipado —, a produção sazonal e regional fica fora desse regime, onerando o consumidor final. Nesse cenário, a horta doméstica surge não apenas como prática sustentável, mas como verdadeira estratégia econômica de afastamento da carga tributária, transformando o ato de plantar em casa em um negócio vantajoso para o bolso e para a saúde.

Plantar para economizar: como a horta doméstica reduz o peso dos impostos sobre o consumo

Introdução

O Brasil tem uma das cargas tributárias indiretas mais elevadas do mundo, especialmente sobre alimentos. Quando compramos produtos básicos, como frutas, legumes e verduras, pagamos não apenas pelo alimento em si, mas também por uma cadeia de tributos federais e estaduais embutidos no preço.

Nesse contexto, cultivar uma horta em casa não é apenas um ato de saúde e sustentabilidade, mas também um instrumento de economia tributária, já que elimina a intermediação do comércio formal e, com ela, os impostos incidentes.

A carga tributária no hortifruti comprada com a do supermercado

Mesmo que o setor de hortifruti in natura não esteja sujeito à substituição tributária, ele não escapa da tributação. O consumidor paga:

  • ICMS, recolhido pelo supermercado sobre cada venda;

  • PIS e Cofins, tributos federais sobre o faturamento;

  • Custos indiretos (logística, perdas, armazenamento), todos inflados por tributos incidentes em cada etapa.

Assim, um simples quilo de tomate pode custar muito mais do que o valor real da produção agrícola, em boa parte devido aos encargos tributários e de circulação.

A horta doméstica como “isenção tributária natural”

Quando o consumidor cultiva sua própria comida, a lógica muda completamente:

  • Não há incidência de ICMS: a produção não circula comercialmente;

  • Não há PIS/Cofins: não existe faturamento;

  • Custos de transporte e armazenagem são mínimos: basta colher no quintal ou no vaso.

Em outras palavras, o alimento da horta nasce isento de impostos, representando uma verdadeira “isenção tributária doméstica”.

Plantar como negócio indireto

Embora plantar em casa não gere renda tributada (a menos que haja venda), ele gera um negócio indireto:

  1. Economia no orçamento familiar: cada tomate, alface ou tempero cultivado em casa significa menos dinheiro gasto no supermercado e, consequentemente, menos imposto pago.

  2. Autonomia alimentar: a família não depende da oscilação de preços do mercado (que embute tributos e margens de lucro).

  3. Segurança no longo prazo: em tempos de inflação de alimentos, a horta atua como uma proteção patrimonial — funciona como um “ativo” que preserva valor.

Exemplo prático

Imagine que uma família consome R$ 300 por mês em hortifruti. Considerando uma carga tributária indireta média de 20% a 30%, isso significa algo entre R$ 60 e R$ 90 em impostos mensais, apenas nesse segmento.

Se metade dessa necessidade for suprida com uma horta doméstica, a economia anual pode chegar a mais de R$ 500 a R$ 600, sem contar a qualidade nutricional superior dos alimentos frescos.

Conclusão

O cultivo doméstico de alimentos funciona como uma estratégia silenciosa, mas poderosa, de economia tributária. Enquanto a substituição tributária não beneficia o consumidor final no hortifruti, a horta caseira elimina por completo a incidência de impostos sobre a alimentação cultivada para consumo próprio.

Nesse sentido, plantar comida em casa é mais do que um hábito saudável: é uma forma de resistir ao peso da tributação indireta e de transformar o quintal, a varanda ou até vasos em um negócio econômico de longo prazo.

Por que o consumidor de hortifruti não se beneficia da substituição tributária?

Introdução

A tributação indireta sobre o consumo no Brasil é complexa e impacta de formas diferentes os produtos que chegam à mesa do consumidor. Enquanto em segmentos como bebidas, combustíveis e produtos industrializados a substituição tributária (ST) tem papel relevante, no setor de hortifruti a situação é distinta. Consumidores que compram frutas, legumes e verduras em supermercados, como no caso citado da mãe do leitor, não se beneficiam desse regime especial, arcando com a carga tributária embutida diretamente no preço final.

O que é a substituição tributária?

A substituição tributária é um regime de arrecadação de ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços) no qual a responsabilidade de recolher o imposto é transferida para um elo anterior da cadeia de circulação.

  • Normalmente, a indústria ou o atacadista recolhe antecipadamente o ICMS de toda a cadeia, incluindo o que será devido pelas etapas posteriores de venda ao varejo.

  • A ideia é simplificar a fiscalização e evitar a sonegação, pois o fisco concentra a cobrança em poucos contribuintes de maior porte.

Para o consumidor, isso significa que o imposto já está embutido no preço de forma antecipada, e muitas vezes não há grandes variações na carga tributária final.

O caso do hortifruti: por que a ST não se aplica?

No setor de hortifruti, o regime de substituição tributária raramente é utilizado, e há razões específicas para isso:

  1. Natureza perecível dos produtos
    Os preços de frutas, legumes e verduras variam diariamente conforme safra, clima, transporte e oferta local. A tributação antecipada por ST tornaria difícil calcular o valor final com precisão.

  2. Venda pulverizada e descentralizada
    Diferente de produtos industrializados (como refrigerantes ou cigarros), o hortifruti é produzido por inúmeros pequenos agricultores e distribuído em feiras, CEASAs, supermercados e mercearias. Essa pulverização inviabiliza o recolhimento centralizado.

  3. Margem de lucro variável
    O supermercado pode praticar margens diferentes de acordo com a sazonalidade ou perda de estoque. Fixar uma base de cálculo presumida pela ST criaria distorções.

  4. Exceções legais
    Muitos Estados isentam ou reduzem o ICMS de hortifrutis in natura para estimular o consumo de alimentos básicos. Nesses casos, a ST nem seria aplicável, pois não há imposto a antecipar.

O que o consumidor realmente paga

Na compra de hortifrutis, o consumidor arca com tributos embutidos diretamente no preço, sem antecipação via ST. Entre eles:

  • ICMS (estadual), recolhido pelo supermercado na operação de venda;

  • PIS e Cofins (federais), incidentes sobre a receita do estabelecimento;

  • Custos indiretos de logística, armazenamento e perdas, que também sofrem influência tributária.

Assim, a mãe do leitor paga os impostos sem qualquer vantagem trazida pelo regime de substituição tributária, que é restrito a outros setores.

Comparação: hortifruti x produtos industrializados

  • Arroz, feijão ou macarrão: muitas vezes sujeitos à ST. O imposto já é recolhido pelo atacadista/indústria, e o preço chega ao consumidor com a carga tributária embutida e relativamente estável.

  • Tomate, banana ou alface: não sujeitos à ST. O supermercado calcula o ICMS sobre o preço de venda no caixa, somando ao custo da mercadoria as variações de mercado e demais encargos.

Conclusão

Consumidores de hortifrutis, como a mãe do leitor, não se beneficiam da substituição tributária porque este regime não se aplica a produtos de natureza perecível, preço volátil e cadeia de produção pulverizada. No hortifruti, o ICMS e os tributos federais continuam a ser repassados diretamente ao preço final, sem antecipação ou simplificação.

Enquanto grandes atacadistas e varejistas encontram vantagens em setores onde a ST é aplicada, no caso dos hortifrutis prevalece a lógica tradicional de tributação, onde o consumidor paga integralmente a carga tributária de forma diluída no preço, sem qualquer benefício adicional.

domingo, 26 de outubro de 2025

O prazo de proteção dos direitos autorais na Espanha e o caso de Ortega y Gasset (e de outros autores espanhóis)

Introdução

A legislação de direitos autorais é um campo em que história, política cultural e interesses econômicos se entrelaçam. Embora a União Europeia tenha buscado harmonizar os prazos de proteção, a Espanha manteve uma particularidade notável: a regra dos 80 anos post mortem auctoris para autores falecidos antes de 1987. Esse regime jurídico prolongado impactou diretamente grandes nomes da literatura espanhola, como José Ortega y Gasset, Miguel de Unamuno, Antonio Machado e Federico García Lorca.

A tradição espanhola dos 80 anos

A Lei de Propriedade Intelectual de 1879, posteriormente reformada em 1987, estabeleceu prazos de 80 anos após a morte do autor. Essa extensão foi justificada pela ideia de proteger não apenas os herdeiros, mas também a herança cultural espanhola.

Com a Lei 22/1987, esse prazo foi consolidado, criando uma situação excepcional dentro da Europa. Autores falecidos antes dessa data permaneceram sob a regra dos 80 anos, mesmo depois da harmonização legislativa europeia.

A intervenção da União Europeia

Com a Diretiva 93/98/CEE, depois consolidada em 2006/116/CE, a União Europeia fixou o prazo em 70 anos post mortem para todos os Estados-membros. Contudo, para evitar prejuízo a herdeiros e editoras, a norma trouxe uma cláusula de não-retrocesso: países que já garantiam prazos mais amplos não precisariam reduzi-los.

Nota de Rodapé

A cláusula de não-retrocesso foi essencial para evitar que milhares de obras caíssem instantaneamente em domínio público. No caso da Espanha, isso significou que autores falecidos antes de 7 de dezembro de 1987 permaneceriam sob a proteção dos 80 anos. Por isso, a obra de Ortega y Gasset, falecido em 1955, continua protegida até 2035.

O caso de José Ortega y Gasset

O filósofo espanhol José Ortega y Gasset (1883–1955) é exemplo claro da excepcionalidade espanhola.

  • Brasil: Pela lei de 1973 (60 anos), sua obra está em domínio público desde 01/01/2016.

  • Espanha/União Europeia: Pela regra dos 80 anos, a proteção dura até 31/12/2035. Somente em 01/01/2036, suas obras entrarão em domínio público.

Esse descompasso cria uma diferença de 20 anos entre o acesso brasileiro e o europeu ao mesmo patrimônio cultural.

Outros autores espanhóis atingidos

  1. Miguel de Unamuno (1864–1936)

    • Espanha: domínio público em 2017.

    • Brasil: domínio público em 1997.

  2. Antonio Machado (1875–1939)

    • Espanha: domínio público em 2020.

    • Brasil: domínio público em 2000.

  3. Federico García Lorca (1898–1936)

    • Espanha: domínio público em 2017.

    • Brasil: domínio público em 1997.

Esses exemplos mostram como o regime espanhol prolongou por décadas a exclusividade de exploração das obras desses autores em relação ao Brasil.

Quadro Comparativo 

Jurisdição Lei Aplicável Ano da Morte Início da Contagem Prazo Fim da Proteção Início do Domínio Público
Brasil Lei 5.988/1973 (60 anos) 1955 01/01/1956 60 anos 31/12/2015 01/01/2016
Espanha Lei 22/1987 (80 anos para autores pré-1987) 1955 01/01/1956 80 anos 31/12/2035 01/01/2036
UE Diretiva 93/98/CEE + 2006/116/CE 1955 01/01/1956 70 anos (regra geral, mas respeita 80 da Espanha) 31/12/2035 01/01/2036

Panorama de Autores Espanhóis 

Autor Ano de Falecimento Domínio Público no Brasil Domínio Público na Espanha
Miguel de Unamuno 1936 01/01/1997 01/01/2017
Antonio Machado 1939 01/01/2000 01/01/2020
Federico García Lorca 1936 01/01/1997 01/01/2017
José Ortega y Gasset 1955 01/01/2016 01/01/2036

Conclusão

O caso de Ortega y Gasset e de outros escritores espanhóis mostra como o direito autoral não é apenas uma questão jurídica, mas também um marco cultural que define o tempo de circulação das ideias.

No Brasil, leitores e editores tiveram acesso às obras desses autores décadas antes dos espanhóis, enquanto na Espanha a proteção prolongada manteve a exclusividade em mãos de herdeiros e editoras até o século XXI.

Essa situação evidencia a tensão permanente entre a justa remuneração e proteção do autor e seus herdeiros e o direito coletivo de acesso à cultura. No caso espanhol, essa balança pendeu fortemente para o lado da proteção patrimonial, retardando o pleno florescimento popular de alguns dos maiores escritores do século XX.

 👉 Assim, Ortega y Gasset e seus contemporâneos não são apenas exemplos literários, mas também símbolos do impacto da legislação autoral na circulação cultural: suas ideias atravessaram fronteiras, mas ficaram presas por décadas em malhas jurídicas distintas.

Do potencial de traduzir as obras de Marcel Granet para o português

Introdução

Marcel Granet (1884–1940), discípulo de Émile Dürkheim e expoente da Escola Sociológica Francesa, é uma das vozes mais relevantes no diálogo entre sociologia, história e sinologia. Suas obras, escritas na primeira metade do século XX, ofereceram um olhar inovador sobre a China antiga, interpretando seus mitos, religiões, instituições e sistemas de pensamento à luz da sociologia durkheimiana. No entanto, apesar de sua importância, ainda são escassas as traduções de seus textos para o português. A entrada de sua obra em domínio público, desde 2011, abre uma oportunidade singular para preencher esta lacuna cultural e acadêmica.

O valor intelectual das obras de Granet

Granet não se limitou à erudição filológica ou à descrição histórica. Seu método articulava três dimensões fundamentais:

  1. Análise sociológica – Com base no legado de Dürkheim, estudava ritos, religiões e estruturas sociais da China como sistemas vivos de coesão.

  2. Sensibilidade etnográfica – Seu convívio com chineses em Pequim permitiu-lhe compreender a língua e a cultura chinesas em sua organicidade.

  3. Perspectiva comparativa – Ao contrastar o pensamento chinês com categorias ocidentais, Granet revelou tanto as singularidades quanto as afinidades entre culturas.

Obras como La Pensée Chinoise (1934), La Civilisation Chinoise (1929) e Danses et Légendes de la Chine Ancienne (1926) permanecem referências obrigatórias para quem deseja compreender a lógica cultural da China.

A necessidade da tradução para o português

A ausência de edições acessíveis em língua portuguesa limita o alcance de Granet ao público lusófono. Traduzir sua obra significaria:

  • Enriquecer o debate acadêmico brasileiro e lusófono: as universidades e centros de pesquisa em ciências sociais, filosofia e estudos orientais ganhariam um recurso fundamental para o ensino e a pesquisa.

  • Aproximar culturas: o Brasil, com sua crescente presença chinesa no comércio e na diplomacia, beneficiaria-se de um instrumento de compreensão cultural profundo.

  • Ampliar horizontes intelectuais: leitores fora do meio acadêmico, interessados em filosofia, sociologia ou comparações culturais, teriam acesso a um pensamento que mostra outras formas de racionalidade.

Oportunidades editoriais

Como as obras de Granet já se encontram em domínio público patrimonial, podem ser livremente digitalizadas, traduzidas e publicadas, desde que se respeitem os direitos morais do autor – isto é, citar sempre a autoria, não deturpar seu pensamento e deixar claro quando há adaptações ou notas do tradutor.

Isso abre espaço para:

  • Edições críticas com aparato de notas explicativas.

  • Traduções bilíngues, úteis a estudantes de francês ou chinês.

  • Versões digitais de acesso livre, ampliando o alcance da obra.

  • Coleções temáticas, reunindo Granet com outros autores da sinologia clássica, como Marcel Mauss ou Henri Maspero.

Desafios da tradução

Traduzir Granet exige:

  • Fidelidade conceitual – sua escrita sociológica contém termos técnicos da tradição durkheimiana.

  • Rigor sinológico – sua interpretação depende do vocabulário chinês clássico, que requer precisão.

  • Estilo literário – Granet escrevia com elegância e ritmo, o que desafia o tradutor a manter clareza sem perder a cadência.

Conclusão

Traduzir Marcel Granet para o português não é apenas um exercício acadêmico: trata-se de um ato cultural estratégico. Suas obras permitem que compreendamos como uma grande civilização elaborou suas formas de pensar, crer e viver em sociedade. Para o Brasil, onde o diálogo com a China é cada vez mais relevante, disponibilizar Granet em nossa língua é abrir um caminho de diálogo intelectual, intercultural e espiritual. Preservando os direitos morais do autor e respeitando sua honestidade intelectual, a tradução se torna não apenas legítima, mas necessária.

A expansão hispânica e a herança portuguesa no Brasil: integração, replicação e identidade além-mar

1. O princípio da replicação institucional

María Elvira Roca Barea observa que, ao expandir-se, a Monarquia Hispânica replicava as instituições de Castela nos novos territórios, sem instituir um ordenamento colonial distinto. Todos eram súditos do mesmo rei, fossem peninsulares, índios ou mestiços. A noção de “colônia” como espaço jurídico subordinado à metrópole, típica do modelo britânico, não se aplicava ao universo hispânico.

Essa lógica também se aplicava a Portugal: a expansão ultramarina não criou uma ordem jurídica paralela, mas transplantou o município, o direito régio e o catolicismo como eixos organizadores. A América portuguesa não era concebida como “colônia” no sentido moderno, mas como parte integrante do Reino — daí a expressão “portugueses de além-mar”.

2. O Brasil como extensão do Reino de Portugal

No Brasil, desde a fundação das primeiras capitanias e vilas, foram instituídos cabildos lusitanos (as câmaras municipais), irmandades religiosas e universidades jesuíticas, à semelhança do que já existia no reino europeu. Essa replicação garantiu continuidade cultural e jurídica, formando uma população que se via portuguesa, ainda que em terras americanas.

A expressão “portugueses de além-mar” reforça o caráter de unidade política e cultural: a nação portuguesa não era definida apenas pelo território europeu, mas pela fidelidade ao rei e pela comunhão espiritual sob a Igreja Católica.

3. A transferência da Corte (1808) e o Brasil como centro do Império

Esse princípio de unidade atingiu sua expressão máxima com a vinda da família real portuguesa ao Brasil em 1808, fugindo das tropas napoleônicas. Pela primeira vez na história moderna, a cabeça do Reino deslocava-se para uma de suas partes ultramarinas. O que era “Portugal de além-mar” tornou-se, literalmente, Portugal central.

Entre as medidas de D. João VI, destacam-se:

  • Abertura dos portos às nações amigas (1808): o Brasil deixa de depender exclusivamente do comércio metropolitano.

  • Criação de instituições régias no Rio de Janeiro: Banco do Brasil, Escola Real de Ciências, Artes e Ofícios, Biblioteca Real, Tribunais Supremos.

  • Elevação do Brasil a Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves (1815): a consagração jurídica da ideia de que o Brasil não era mais “colônia”, mas parte essencial do Império.

Esse movimento confirmou que, desde o início, o Brasil era parte orgânica da monarquia portuguesa. Ao contrário das colônias britânicas da América do Norte, que se rebelaram contra a metrópole, o Brasil recebeu a metrópole em si — e, assim, herdou sua estrutura política completa.

4. Diferença em relação ao modelo britânico

O contraste é evidente:

  • Modelo ibérico: integração institucional, replicação de leis e reconhecimento dos súditos além-mar como membros do Reino.

  • Modelo britânico: separação jurídica, distinção rígida entre colonos e nativos, cidadania restrita.

Enquanto um indiano jamais poderia portar passaporte britânico, um luso-brasileiro era reconhecido como português. A independência de 1822 não foi uma ruptura total, mas a apropriação, em terras americanas, da mesma máquina de Estado que já funcionava em Lisboa.

5. Quadro comparativo dos modelos coloniais 

Aspecto Modelo Ibérico (Espanha/Portugal) Modelo Britânico Modelo Francês
Status jurídico Territórios integrados ao Reino; súditos do mesmo monarca Colônias juridicamente separadas; cidadania restrita Regime misto: colônias como prolongamento cultural, mas sem plena cidadania
Instituições Replicação de municípios, universidades, câmaras, irmandades Charter colonies, companhias privadas, autogoverno limitado Administração centralizada em Paris; códigos coloniais
Cidadania Inclusão formal (mesmo que desigual na prática) Exclusão dos nativos; distinção rígida Inclusão limitada; Código Napoleônico adaptado
Identidade “Portugueses/Espanhóis de além-mar” Colono = britânico; nativo ≠ britânico Sujeitos franceses de segunda ordem
Legado Unidades nacionais integradas (Brasil, Hispano-américa) Comunidades da Commonwealth Diversidade linguística e tensões pós-coloniais

6. Consequências históricas

  • Unidade linguística: Portugal assegurou o predomínio do português no Brasil.

  • Cultura política: O municipalismo e o direito régio moldaram a vida brasileira.

  • Centralidade atlântica: A instalação da Corte no Rio de Janeiro transformou o Brasil em cabeça do Império.

  • Independência peculiar: Quando rompeu com Portugal, o Brasil já possuía Estado, burocracia e identidade próprios — herança direta do Reino.

7. Conclusão

A leitura de Roca Barea ajuda a compreender que a colonização ibérica não foi simplesmente uma relação de exploração econômica. Foi também um projeto de replicação civilizacional, em que Portugal e Espanha expandiram seus mundos jurídicos, culturais e religiosos. O Brasil herdou de Portugal não só instituições, mas o próprio estatuto de parte essencial do Reino.

A transferência da Corte em 1808 confirmou essa lógica: o Brasil não era periferia, mas um Portugal de além-mar tornado centro do Império. Essa singularidade explica tanto a unidade nacional brasileira após a Independência quanto a continuidade institucional que diferencia sua trajetória da maioria das ex-colônias modernas.

Bibliografia

  • BOXER, Charles R. O Império Marítimo Português (1415–1825). Lisboa: Edições 70, 2002.

  • ELLIOTT, John H. Empires of the Atlantic World: Britain and Spain in America 1492–1830. New Haven: Yale University Press, 2006.

  • HESPANHA, António Manuel. As Vésperas do Leviatã: Instituições e poder político em Portugal, séc. XVI–XVIII. Coimbra: Almedina, 1994.

  • MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal, 1750–1808. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977.

  • PRADO Jr., Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. São Paulo: Brasiliense, 1942.

  • ROCA BAREA, María Elvira. Imperiofobia y leyenda negra. Madrid: Siruela, 2016.

  • SCHWARTZ, Stuart B. Sovereignty and Society in Colonial Brazil. Berkeley: University of California Press, 1973.

  • VARNHAGEN, Francisco Adolfo de. História Geral do Brasil. 3 vols. São Paulo: Melhoramentos, 1948.

sábado, 25 de outubro de 2025

A promessa cristã: entre a imitação de Cristo e a fragilidade humana

1. A promessa diante do verdadeiro Deus e verdadeiro Homem

Para um cristão digno desse nome, prometer algo não é simples. Quando se contempla Cristo — verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, igual a nós em tudo, menos no pecado — percebe-se o abismo entre a perfeição d’Ele e a nossa limitação. Cristo, sendo onisciente, conhece o coração humano, antecipa as circunstâncias e nunca falha na palavra dada. Sua promessa é, ao mesmo tempo, ato de verdade e cumprimento. Já nós, frágeis e falíveis, ao prometer estamos expostos ao risco de não conhecer nem a nós mesmos, nem plenamente aqueles a quem prometemos.

2. A imitação como caminho árduo, mas possível

Seguir Cristo significa buscar imitá-Lo também no compromisso da palavra. Essa imitação, porém, não se trata de cópia mecânica, mas de participação na Sua vida pela graça. Santo Agostinho já dizia que o cristão é um “alter Christus”: alguém chamado a reproduzir, em sua limitação, a fidelidade do Filho ao Pai. Por isso, prometer não é apenas um gesto humano de boa vontade, mas um exercício de fé, esperança e caridade. Exige prudência para medir as próprias forças, justiça para respeitar o outro, fortaleza para perseverar e temperança para não assumir encargos impossíveis.

3. O mérito da promessa não está na grandeza, mas na fidelidade

O valor de uma promessa não reside em sua extensão, mas em sua lealdade. Cristo nos mostra isso ao prometer estar conosco “até o fim dos tempos” (Mt 28,20). Sua palavra se cumpre não porque Ele se limita ao que é pequeno, mas porque o Seu amor é eterno e fiel. Já o cristão, ao prometer, deve ter consciência da própria condição: não é onisciente, não sabe o futuro e nem sempre entende quem está diante de si. Isso não desvaloriza a promessa, mas a coloca na luz da humildade: ao prometer, o fiel precisa reconhecer sua dependência da graça de Deus.

4. Prometer como ato de fé e esperança

Toda promessa cristã é, portanto, feita sob o olhar de Deus. É um ato de fé, porque crê que o Senhor sustentará o prometente em sua fidelidade. É também um ato de esperança, pois, se houver falhas, sempre haverá espaço para arrependimento, reparação e recomeço. A dificuldade de prometer — justamente por não sermos iguais a Cristo — transforma-se, assim, em ocasião de crescimento espiritual. É no esforço de manter a palavra dada que a alma se purifica, aprende a perseverar e testemunha que a graça pode tornar possível o que parece impossível.

5. A promessa como escola da santidade

Prometer é, em última instância, um exercício de santidade. Ao fazê-lo, o cristão se coloca no caminho do Cristo que nunca faltou à Sua palavra. É um desafio árduo, mas não intransponível. A cada promessa cumprida, mesmo nas pequenas coisas, a vida do fiel vai se configurando à de Cristo, até que um dia se possa dizer com São Paulo: “Já não sou eu quem vivo, mas é Cristo que vive em mim” (Gl 2,20).

Ovos de Páscoa, economia da dádiva e o lar que se estende além das fronteiras

Introdução

A Páscoa, para os cristãos, é o centro da história: o mistério da Morte e Ressurreição de Cristo, fundamento da vida nova e da esperança universal. Nas diversas culturas, esse mistério é celebrado com símbolos que, embora diferentes, expressam a mesma verdade: a vitória da vida sobre a morte. No Brasil, esse símbolo é o ovo de chocolate; na Ucrânia, o pysanka, ovo pintado com cores e símbolos ancestrais. Quando esses mundos se encontram, surge não apenas uma curiosidade cultural, mas uma possibilidade mais profunda: o surgimento de uma economia da dádiva cristã que conecta lares e nações.

A economia da dádiva: dar, receber, retribuir

A noção de economia da dádiva é antiga: ela não se reduz ao mercado, mas funda-se no ato de oferecer algo gratuitamente, criando vínculos de confiança e reciprocidade. No horizonte cristão, essa economia encontra sua plenitude no próprio Cristo, que se entrega como dom perfeito, dando a vida “em favor de muitos”. Assim, todo ato de doação — seja um ovo pintado, seja um gesto de acolhimento — é participação nos méritos de Cristo, que tornam fecunda toda caridade.

Dois países como um mesmo lar em Cristo

Quando um lar brasileiro e um lar ucraniano se unem através da tradição pascal — por exemplo, com ovos de chocolate decorados à maneira ucraniana —, algo mais profundo acontece: não se trata apenas de uma fusão de sabores e artes, mas da criação de um lar ampliado. Dois países passam a ser vividos como um só espaço doméstico em Cristo.

Esse gesto testemunha a catolicidade da fé: o que é local (o chocolate brasileiro, a arte ucraniana) se abre ao universal (a Igreja que é uma só em todas as nações).

O ovo como dom pascal

Um ovo de chocolate pintado com motivos do pysanka é mais que sobremesa: é um dom simbólico. Ao oferecê-lo, a família diz: “partilhamos contigo a alegria da Ressurreição”. Ao recebê-lo, o outro lar acolhe não só um presente, mas um pedaço da história e da espiritualidade de quem o deu. E ao retribuir, completa-se o ciclo da dádiva: não por obrigação contratual, mas por amor. Assim, cada ovo se torna um pequeno sacramento cultural, um sinal visível da graça invisível da comunhão.

Favores em Cristo, para Cristo e por Cristo

Na prática, isso cria uma rede de lares unidos por Cristo. Cada favor prestado — hospedar um viajante, enviar um presente, oferecer uma refeição — torna-se serviço a Cristo, pois “tudo o que fizestes a um desses meus pequeninos irmãos, foi a mim que o fizestes” (Mt 25,40). Dessa forma, a dádiva pascal conecta o ordinário (um doce, uma tradição) ao extraordinário (a missão de servir a Cristo em terras distantes).

Conclusão

Unir a tradição ucraniana do pysanka à criatividade brasileira do chocolate é mais que inovação gastronômica: é profecia cultural. É proclamar, em gestos concretos, que a Páscoa não é apenas memória de um evento passado, mas força viva que transforma lares, une povos e cria uma verdadeira economia da graça.

Nesse horizonte, cada ovo pascal artesanal pode ser um pequeno evangelho material: um anúncio da Ressurreição, um elo entre culturas e um dom que, nos méritos de Cristo, conecta dois países em um mesmo lar — em Cristo, por Cristo e para Cristo.

Bibliografia mínima

  • MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 2008.

  • JOÃO PAULO II. Memória e Identidade. São Paulo: Objetiva, 2005.

  • BENTO XVI. Caritas in Veritate. São Paulo: Paulinas, 2009.

  • KASPER, Walter. A Igreja Católica: essência, realidade, missão. São Paulo: Loyola, 2012.

  • KÜNG, Hans. Cristianismo: essência e história. Petrópolis: Vozes, 1999.

 

Uma revolução pascal: Do pysanka ucraniano ao ovo de chocolate brasileiro

Ovo de páscoa brasileiro decorado à maneira ucraniana

A Páscoa é um momento em que diferentes culturas se expressam com símbolos de renovação, vida e fé. No Brasil, o costume dominante é o dos ovos de chocolate, vendidos em larga escala, coloridos e industrializados. Já em países como a Ucrânia, a tradição mais marcante é a dos pysanky — ovos pintados à mão com símbolos geométricos, florais e religiosos, cada qual carregando significados profundos.

E se essas duas tradições se encontrassem?

O encontro de culturas

Imagine um lar brasileiro onde uma esposa ucraniana, inspirada por sua herança, pintasse ovos de chocolate à maneira do pysanka. Não seriam apenas doces, mas obras de arte comestíveis, combinando o sabor do cacau brasileiro com a riqueza simbólica da tradição ucraniana.

Esse gesto transformaria o consumo pascal em algo muito maior: um ato cultural, onde o alimento é ao mesmo tempo presente, oração e arte.

O papel do chocolate Harald

No Brasil, marcas como a Harald oferecem chocolate de confeiteiro de alta qualidade, usado por profissionais e artesãos. Ao comprar um pacote de chocolate Harald para essa produção, você não estaria apenas garantindo sabor e textura perfeitos, mas também criando a base para uma tradição artesanal.

Assim como os ovos pintados ucranianos exigem cuidado e paciência, derreter, moldar e decorar o chocolate é uma arte. O Harald, nesse contexto, seria não apenas um ingrediente, mas o elo entre a indústria brasileira e a tradição artesanal importada do Leste Europeu.

Uma revolução na Páscoa brasileira

Essa fusão representaria uma verdadeira revolução:

  • Do consumo ao artesanato – menos foco no ovo pronto de supermercado, mais no ovo feito em casa, com amor.

  • Do visual ao simbólico – cada ovo decorado teria uma mensagem: esperança, vida, ressurreição, prosperidade.

  • Do passageiro ao duradouro – em vez de uma embalagem descartada, ficaria a memória da criação conjunta, que poderia se tornar tradição familiar e até comunitária.

Oportunidade de legado

Mais do que uma simples inovação culinária, esse gesto poderia fundar um novo costume pascal brasileiro. Ao unir chocolate e pysanka, criar-se-ia um produto que é ao mesmo tempo delícia, arte e símbolo religioso. Para além da família, poderia até se tornar um empreendimento cultural e gastronômico, abrindo um mercado para ovos artesanais com identidade própria.

Conclusão

A ideia de comprar chocolate Harald e transformá-lo em ovos pascais decorados à maneira ucraniana vai muito além da cozinha: é um ato de amor cultural, que une povos, resgata símbolos e reinventa tradições. No futuro, quem sabe, essa iniciativa não poderia se tornar um movimento maior — um marco na história da Páscoa no Brasil, onde o doce e o sagrado se encontram na mais bela harmonia.

Debate imaginário entre Adam Ferguson e Adam B. Seligman sobre sociedade civil

1.Sobre a origem da sociedade civil

Ferguson:

A sociedade civil não é uma criação artificial, mas resultado da vida em comum. O homem é um ser naturalmente social, e da convivência nasce a moralidade, a lei e as instituições. A sociedade civil é o estágio em que os homens, buscando o bem comum, superam a barbárie e se organizam em ordem.

Seligman:

Concordo com a sua ênfase na natureza social do homem, mas vejo um problema: na modernidade, o conceito de sociedade civil foi reinterpretado e muitas vezes separado do Estado. Hoje ela é vista como um espaço intermediário entre Estado e indivíduo, e não como a totalidade da vida em comum. Isso gerou tensões: será que sociedade civil é ainda um conceito unívoco?

2. Sobre moralidade e virtude

Ferguson:

A sociedade civil só floresce quando há virtude cívica. Sem isso, ela degenera em facções ou corrupção. O comércio e a prosperidade material são importantes, mas podem enfraquecer a solidariedade se não forem guiados pela moral.

Seligman:

Essa é uma das minhas preocupações também. Eu destaco que a sociedade civil exige confiança, normas éticas compartilhadas e, muitas vezes, elementos religiosos que mantenham a coesão social. Sem essa base moral, o conceito se torna vazio, reduzido a um agregado de ONGs ou associações de interesse.

3. Sobre Estado e sociedade civil

Ferguson:

Eu não separava Estado e sociedade civil como alguns pensadores posteriores. Para mim, ambos fazem parte da mesma ordem da convivência. O governo é uma extensão da sociedade civil, necessário para organizar os interesses e manter a justiça.

Seligman:

A modernidade, no entanto, marcou essa separação. Para Hegel, por exemplo, a sociedade civil é um estágio do espírito antes de chegar ao Estado. Já o liberalismo a vê como contrapeso ao poder estatal. Meu livro mostra que essa ambiguidade nos deixa sem clareza: afinal, sociedade civil é parte do Estado ou seu limite?

4. Sobre crise e modernidade

Ferguson:

O perigo que eu via no meu tempo era a perda da virtude republicana diante do avanço do luxo e da comodidade. A sociedade civil poderia enfraquecer se as pessoas vivessem apenas para seus interesses privados.

Seligman:

Eu diria que esse perigo se realizou. Hoje o termo “sociedade civil” é usado de forma inflacionada e contraditória. Alguns o usam para promover solidariedade, outros para justificar mercados ou mesmo resistências políticas. Minha crítica é que o conceito se tornou um símbolo normativo sem unidade.

5. Síntese

  • Ferguson defende que a sociedade civil é fruto natural da sociabilidade humana e depende da virtude cívica para não decair.

  • Seligman ressalta que, na modernidade, o conceito se fragmentou: ora parte do Estado, ora oposição a ele, ora símbolo normativo vazio — mas sempre dependente de confiança e moralidade.

📌 Conclusão do debate

O diálogo entre Ferguson e Seligman mostra uma linha de continuidade: ambos percebem que a sociedade civil só existe de verdade se houver um cimento moral que una os indivíduos. A diferença está no contexto:

  • Ferguson fala do século XVIII, preocupado com a decadência republicana e os efeitos do comércio.

  • Seligman fala do século XX, preocupado com a fragmentação conceitual e a perda de substância moral da sociedade civil na democracia contemporânea.

O cajueiro, a dação em pagamento e os limites entre a dádiva e o comércio

1. Introdução

O simples ato de plantar uma árvore frutífera, como o cajueiro, pode parecer apenas um gesto cotidiano. Contudo, quando pensamos no valor simbólico de seus frutos — transformados em doces, conservas ou lembranças —, percebemos que estamos diante de um fenômeno que transcende o campo da botânica ou da culinária. Trata-se de uma intersecção entre memória, afeto e economia, onde os frutos não são apenas alimento, mas também bens privados carregados de significados sociais e culturais.

2. O bem privado como lembrança

O cajueiro plantado na terra natal gera frutos que podem ser consumidos localmente ou enviados para parentes e amigos. Ao serem transformados em doces e remetidos a alguém distante, esses frutos deixam de ser apenas produtos naturais: tornam-se lembranças vivas. Nesse gesto, a família envia não só alimento, mas também a presença da terra e dos vínculos afetivos.

A frase simbólica “Ele te manda lembranças!” confere à árvore uma dimensão quase humana. É como se a natureza fosse também parte da família, mediando a relação entre os ausentes.

3. A economia da dádiva (Marcel Mauss)

Na clássica obra Ensaio sobre a Dádiva (1925), Marcel Mauss mostrou que presentes nunca são “gratuitos”: eles carregam obrigações de dar, receber e retribuir. O doce de caju enviado ao migrante, ou oferecido como presente a alguém, insere-se nesse circuito da dádiva. Ele não é uma mercadoria vendida, mas também não é um bem sem valor. Seu valor é simbólico e social, capaz de construir e reforçar vínculos.

4. A dação em pagamento e o capital relacional

No campo jurídico, o conceito de dação em pagamento aparece quando um bem é entregue em substituição ao dinheiro para saldar uma dívida. No caso do doce artesanal, ele pode compensar favores, simbolizar gratidão ou até funcionar como um “pagamento relacional”. Aqui, a moeda não é o real nem o dólar, mas sim o capital social que se acumula e se redistribui nas relações.

Esse raciocínio ecoa a tese de Karl Polanyi, em A Grande Transformação (1944), segundo a qual nem todas as trocas humanas podem ou devem ser absorvidas pela lógica de mercado. Há bens e vínculos que pertencem a outra ordem — a ordem da reciprocidade e do enraizamento cultural.

5. O impacto no exterior

Quando transposto para o cenário internacional, o valor desses bens cresce. Um doce artesanal de caju, enviado do Brasil para alguém no exterior, adquire um caráter de raridade e identidade cultural. Ele se torna um pedaço da pátria, um elo com as raízes.

  • Como lembrança, traz consigo a memória e o afeto da terra natal.

  • Como moeda social, funciona como presente de prestígio, capaz de abrir portas e consolidar relações.

Mas esse mesmo bem encontra limites claros quando tenta entrar no mercado formal.

6. O peso da alfândega e da vigilância

O Estado impõe barreiras quando se tenta transformar a lembrança em mercadoria. Frutos e doces enviados para fins comerciais estão sujeitos a:

  • Fiscalização alfandegária, com cobrança de tributos e registro formal;

  • Fiscalização fitossanitária, para prevenir pragas e garantir padrões de saúde pública;

  • Controle de escala, que impede que pequenos envios informais se convertam em atividade comercial sem regulamentação.

Aqui se traça a fronteira entre o bem privado da dádiva e a mercadoria regulada do comércio internacional.

7. Conclusão

O exemplo do cajueiro mostra como a economia não se resume ao mercado. Existe uma esfera afetiva e relacional, onde os frutos de uma árvore podem ser lembranças ou moeda simbólica de troca. Essa esfera, contudo, esbarra na regulação do comércio formal quando se tenta transformá-la em atividade lucrativa.

Como ensinou Mauss, a dádiva é portadora de uma força que transcende o cálculo monetário, e como lembrou Polanyi, o mercado não é a única nem a mais antiga forma de organizar a vida econômica. Assim, o cajueiro nos ensina que a dádiva pertence ao mundo da liberdade e da memória, enquanto o comércio pertence ao mundo da lei e da fiscalização.

Bibliografia

  • MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a Dádiva. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

  • POLANYI, Karl. A Grande Transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.

  • SELIGMAN, Adam. The Problem of Trust. Princeton: Princeton University Press, 1997.

  • BOURDIEU, Pierre. O Poder Simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

Dívidas em nome de pessoa falecida: como lidar quando o banco dá informações contraditórias

1. O que acontece com as dívidas após o falecimento?

Quando alguém falece, seu CPF é automaticamente vinculado ao espólio. Isso significa que:

  • O falecido não pode contrair novas dívidas;

  • As dívidas existentes permanecem válidas e precisam ser quitadas até onde alcançam os bens deixados;

  • Os herdeiros não respondem com patrimônio próprio pelas dívidas do falecido (art. 1.997 do Código Civil).

Assim, todas as obrigações passam a ser centralizadas no espólio, administrado pelo inventariante no processo de inventário (judicial ou extrajudicial).

2. O problema das informações contraditórias

É muito comum que familiares recebam orientações diferentes de canais do banco:

  • Na agência, dizem que a dívida será consolidada, com possibilidade de desconto em caso de quitação integral;

  • No SAC, informam que os pagamentos devem continuar mensalmente, como se a pessoa ainda estivesse viva.

Essas informações conflitantes geram insegurança jurídica e podem levar a erros: pagar mais do que o devido, perder o direito a desconto ou até comprometer o inventário.

3. Direitos do consumidor e transparência

O Código de Defesa do Consumidor (CDC) garante:

  • Direito à informação adequada e clara (art. 6º, III);

  • Boa-fé e equilíbrio contratual (art. 4º, III);

  • Proteção contra práticas abusivas (art. 6º, IV).

Portanto, quando o banco não se posiciona de forma inequívoca, há risco de lesão aos direitos do consumidor, e a família pode recorrer a mecanismos de proteção.

4. Caminhos possíveis para resolver

Diante da dúvida, o consumidor pode seguir três vias principais:

a) Via administrativa

  • Registrar reclamação no SAC, na Ouvidoria do banco e no Banco Central;

  • Solicitar por escrito que o banco informe como pretende cobrar a dívida do espólio.

b) No inventário

  • O inventariante pode pedir que o juiz oficie o banco para apresentar planilha consolidada da dívida, evitando divergências.

c) Interpelação judicial

  • A família pode ingressar com interpelação judicial (art. 726 do CPC/2015);

  • É uma medida de jurisdição voluntária, sem litígio, em que o juiz notifica o banco para esclarecer oficialmente como será o cumprimento da obrigação;

  • Serve para prevenir conflito futuro e proteger os herdeiros de cobranças abusivas.

5. Por que a interpelação judicial pode ser útil?

  • Garante segurança jurídica: o banco terá que se manifestar de forma clara e documentada;

  • Previne litígios: evita que a família pague em duplicidade ou perca descontos;

  • Protege os herdeiros: assegura que a dívida só será paga até o limite do espólio.

6. Conclusão

Se o seu familiar faleceu e o banco apresenta informações contraditórias sobre as dívidas, não aceite orientações apenas de boca. Peça tudo por escrito e, se necessário, recorra ao Judiciário.

A interpelação judicial é uma ferramenta preventiva, que coloca ordem na relação e impede que a falta de clareza do banco cause prejuízos aos herdeiros.

👉 Em resumo: Dívidas de falecidos devem ser pagas com os bens do espólio, nunca com os bens pessoais dos herdeiros. Se o banco não esclarece a forma de cobrança, cabe ao consumidor exigir formalmente essa definição — e, se preciso, buscar o Judiciário.

quinta-feira, 23 de outubro de 2025

Diálogo Imaginário entre Frederick Jackson Turner e Josiah Royce

 Cenário: 

Uma sala de conferências em uma universidade americana no início do século XX. O ambiente é austero, com estantes repletas de livros, um grande mapa dos Estados Unidos na parede e uma mesa de madeira no centro. Frederick Jackson Turner e Josiah Royce estão sentados frente a frente, cercados por estudantes atentos.

Turner (com entusiasmo, apontando para o mapa):

Professor Royce, é uma honra dialogar com o senhor. Veja bem: a história dos Estados Unidos só pode ser entendida a partir da fronteira. Foi esse movimento constante rumo ao Oeste, essa conquista de terras, que formou nosso caráter nacional: individualista, prático, inventivo e, sobretudo, democrático. A fronteira moldou nossa democracia!

Royce (calmo, cruzando as mãos sobre a mesa):

Professor Turner, também é uma honra. Mas permita-me advertir: se a fronteira for vista apenas como espaço físico de expansão, temo que produza mais dispersão do que união. A verdadeira força de uma comunidade não está em avançar territórios, mas em cultivar lealdade. É a lealdade que liga o indivíduo a uma causa maior do que ele mesmo. Sem isso, o espírito da fronteira pode se reduzir a mero egoísmo aventureiro.

Turner (inclinando-se para frente, em tom conciliador):

Compreendo sua preocupação, professor. Mas veja: na marcha para o Oeste, os colonos precisavam uns dos outros. Reuniam-se em assembleias locais, ajudavam-se nas colheitas e se defendiam juntos. A fronteira exigia cooperação. Talvez o que o senhor chama de lealdade já estivesse presente nesse pacto entre pioneiros, ainda que eles não lhe dessem esse nome.

Royce (erguendo a voz com firmeza, mas sem perder a serenidade):

Exato! O que o senhor descreve como pacto, eu chamaria de lealdade comunitária. A lealdade é essa consciência de que só crescemos quando nos dedicamos a um bem maior. Se a fronteira for apenas uma oportunidade de enriquecimento individual, ela se corrompe. Mas se for vivida como missão comum — educar, civilizar, integrar — ela se transforma em serviço a uma causa.

Turner (reflexivo, olhando para o mapa):

Interessante… Então, para o senhor, a fronteira não é só um processo histórico, mas também uma escola moral. Meu argumento histórico ganha uma dimensão ética. Afinal, o espírito americano não se explica apenas pela conquista da terra, mas também pela fidelidade a ideais que sustentam a comunidade.

Royce (com olhar firme, apontando para os estudantes):

Exatamente. A expansão territorial chega ao fim quando não há mais terras virgens. Mas a lealdade nunca se esgota, pois é o princípio vital de qualquer comunidade. Onde a fronteira termina, a lealdade mantém a nação de pé.

Turner (sorri, convencido):

Então nossas ideias se complementam. A fronteira deu aos Estados Unidos a oportunidade de se reinventar. A lealdade, por sua vez, garante que essa energia não se perca, mas seja direcionada para a união e o futuro comum.

Royce (com solenidade, quase como quem encerra uma aula):

Perfeitamente, professor Turner. A fronteira explica o passado. A lealdade prepara o futuro. 

Supermercados, cashback e a filosofia da lealdade: um encontro entre Turner e Royce

1. A fronteira como laboratório de inovações

No Velho Oeste, a vida comunitária dependia de instituições simples, mas vitais: os general stores. Esses armazéns gerais forneciam tudo — de comida básica a ferramentas — num mesmo espaço.

  • Turner, em sua tese do "Frontier in American History" (1893), argumentava que a fronteira moldava o caráter americano: autossuficiência, pragmatismo e espírito comunitário.

  • Nesse ambiente, surgiu a prática do store credit (crédito na loja), uma forma primitiva de cashback: o cliente recebia vales ou tinha descontos futuros em troca da fidelidade.

Aqui vemos que, antes mesmo do “supermercado moderno”, havia já a ideia de conveniência e retorno ao cliente, marcada pela necessidade de sobrevivência em regiões isoladas.

2. Do general store ao supermercado moderno

  • Em 1916, Clarence Saunders fundou o Piggly Wiggly, considerado o primeiro supermercado de autoatendimento.

  • A inovação não foi apenas tecnológica, mas cultural: o consumidor ganhou confiança para escolher seus produtos sem intermediários.

  • A refrigeração, que se expandiu nas décadas seguintes, consolidou o modelo.

Esse movimento se insere na lógica de Turner: a fronteira não é só geográfica, mas também comercial e social — cada avanço amplia o horizonte de liberdade e eficiência.

3. Cashback e a lealdade na cultura americana

O cashback, ainda que em formas rudimentares, é expressão de um princípio mais profundo: a fidelização baseada na confiança.

  • Josiah Royce, em sua Philosophy of Loyalty (1908), via a lealdade como fundamento ético e comunitário. Ser leal é colocar o indivíduo a serviço de uma causa maior, criando vínculos de confiança.

  • O cashback, nessa perspectiva, é mais que uma estratégia de mercado: é uma retribuição que reforça a lealdade do cliente à comunidade comercial.

Assim como a lealdade, o cashback só funciona porque há confiança recíproca: o cliente volta à loja, e a loja reconhece sua fidelidade com benefícios.

4. O encontro entre Turner e Royce

  • Para Turner, a fronteira formou o caráter nacional, criando um povo empreendedor e inovador.

  • Para Royce, a lealdade dá solidez moral a esse mesmo povo, tornando-o capaz de se organizar em comunidades de sentido.

Os supermercados e o cashback, vistos sob essa lente, não são apenas inovações econômicas. São expressões concretas de uma filosofia de fronteira, em que a comunidade se organiza pela confiança, pela inovação e pela lealdade mútua.

5. Conclusão

A cultura americana transformou práticas simples do Velho Oeste — crédito, descontos, conveniência — em instituições globais como o supermercado e o cashback. Ao mesmo tempo, tais práticas refletem uma filosofia mais profunda:

  • Turner mostra como a fronteira expandiu os horizontes da vida comunitária.

  • Royce revela que a lealdade cimenta esses laços, tornando a comunidade viável.

Assim, supermercados e cashback não são apenas símbolos de consumo, mas parte de uma tradição cultural que une pragmatismo econômico e filosofia moral, própria de um povo moldado pela experiência de fronteira.

Bibliografia

  • Turner, Frederick Jackson. The Frontier in American History. New York: Henry Holt, 1920.

  • Royce, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.

  • Tedlow, Richard S. New and Improved: The Story of Mass Marketing in America. Basic Books, 1996.

  • Strasser, Susan. Satisfaction Guaranteed: The Making of the American Mass Market. Pantheon, 1989.

  • Leach, William. Land of Desire: Merchants, Power, and the Rise of a New American Culture. Vintage, 1994.