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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Entre a razão vital e a prudência histórica: o encontro de Francesco Guicciardini com José Ortega y Gasset

 Resumo: 

Este artigo propõe uma análise do vínculo filosófico e histórico entre Francesco Guicciardini (1483–1540), cronista político da Itália renascentista, e José Ortega y Gasset (1883–1955), filósofo espanhol da modernidade tardia. Embora separados por mais de três séculos, ambos convergem na compreensão do homem como ser situado, condicionado e responsável. Guicciardini, em sua Storia d’Italia, revela a complexidade das ações humanas na política concreta, enquanto Ortega, com sua fórmula “o homem é ele mesmo e sua circunstância”, oferece um quadro filosófico que dá releitura atualizada a esse mesmo princípio. O artigo explora essa afinidade e mostra como ambos podem contribuir para uma visão cristã e realista da história e da ação humana.

1. Introdução

Num tempo de colapsos institucionais e rupturas de sentido, é comum que os homens busquem refúgio em sistemas abstratos ou utopias ideológicas. No entanto, tanto Francesco Guicciardini quanto José Ortega y Gasset caminham em sentido contrário: propõem um mergulho na concretude da experiência humana. Em comum, compartilham o mesmo desconforto diante das generalizações filosóficas e das ilusões moralistas, preferindo o terreno movediço — porém real — da ação condicionada, das circunstâncias históricas e da responsabilidade individual.

2. Guicciardini: o político que escreveu a história

Francesco Guicciardini foi um diplomata, conselheiro papal e historiador. Viveu intensamente os conflitos do século XVI italiano: a desagregação das cidades-Estado, a invasão das potências estrangeiras e o declínio espiritual da Cristandade romana. Sua História da Itália é mais do que uma crônica política: é uma reflexão implícita sobre os limites da ação humana, sobre a complexidade das decisões políticas e sobre o papel do acaso (fortuna) na vida pública.

Guicciardini rejeita a tentativa de explicar os eventos por causas universais. Para ele, “nada é mais enganoso do que julgar a política com base em princípios absolutos”. Sua escrita revela um realismo radical, uma atenção quase cirúrgica aos detalhes particulares (il particulare), à prudência como virtude fundamental e à incapacidade humana de controlar plenamente os efeitos de suas ações.

3. Ortega y Gasset: o filósofo da circunstância

José Ortega y Gasset, em pleno século XX, sintetiza uma antropologia filosófica profundamente enraizada na experiência concreta. Sua máxima — “yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo” — aponta para a inseparabilidade entre o sujeito e seu mundo. Contra os idealismos e os racionalismos do século XIX, Ortega propõe a razão vital, isto é, uma razão que parte da vida, e não de abstrações.

A razão vital é uma razão situada, prática, histórica, tensionada pelo tempo e pela necessidade. O homem, para Ortega, é um projeto inacabado que só pode realizar-se compreendendo e enfrentando suas circunstâncias — com inteligência, adaptação e senso trágico.

4. A convergência entre Guicciardini e Ortega y Gasset

Apesar das diferenças de linguagem e de época, o diálogo entre Guicciardini e Ortega y Gasset revela afinidades notáveis:

Elemento Guicciardini Ortega y Gasset
Condição humana O homem é limitado por sua época, sua posição e seus interesses. O homem é inseparável de sua circunstância histórica.
Rejeição do universalismo abstrato A prudência rejeita máximas absolutas. A razão vital rejeita idealismos desvinculados da vida.
Ênfase na experiência Observação detalhada da política e dos fatos. A filosofia deve partir da experiência concreta.
Ceticismo político Desconfiança das reformas grandiosas e dos modelos rígidos. Desconfiança das ideologias que ignoram a vida real.

Ambos sustentam que agir é discernir, e discernir exige sensibilidade para o contexto. A política, para Guicciardini, e a vida, para Ortega, são tarefas trágicas que envolvem risco, prudência e adaptação constante.

5. O elo cristão: o tempo como kairos

Há ainda um terceiro plano possível nessa comparação: o plano teológico. Embora nem Guicciardini nem Ortega sejam teólogos sistemáticos, ambos reconhecem que há algo que transcende o homem, mas que o interroga nas entranhas do tempo.

Ortega, influenciado por Santo Agostinho e Pascal, vê o homem como ser histórico e dramático, chamado a realizar-se numa vocação singular. Guicciardini, mesmo cético, compreende que a história não é neutra: ela revela a corrupção dos costumes, a decadência das instituições religiosas e o esvaziamento da missão cristã da Itália.

Nesse sentido, ambos pressentem que o tempo histórico não é só cronos (sequência), mas kairos (tempo oportuno): o tempo da decisão moral, do juízo e da responsabilidade.

6. Conclusão: agir dentro do possível

A leitura conjunta de Guicciardini e Ortega y Gasset nos ajuda a recuperar uma antropologia da responsabilidade, que se afasta tanto dos idealismos utópicos quanto do niilismo cínico. Eles nos ensinam que:

  • O homem não é senhor absoluto de si, mas também não é escravo do destino.

  • A liberdade nasce do discernimento das circunstâncias, e da capacidade de agir dentro do possível.

  • A prudência histórica e a razão vital são, em última instância, formas de sabedoria — uma sabedoria que prepara o terreno para a fé, o serviço e a verdadeira liberdade, nos méritos de Cristo.

Referências:

  • GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia. Edição comentada por Sidney Alexander.

  • ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote. Madrid: Revista de Occidente, 1914.

  • ORTEGA Y GASSET, José. La rebelión de las masas. Madrid: Espasa-Calpe, 1930.

  • BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Brasília: UNB, 1987.

  • GILSON, Étienne. O Realismo Metafísico. São Paulo: É Realizações, 2011.

Let Them Trade como alegoria da tecnocivilização moderna: a transmutação do mercador em economista, através da figura do engenheiro imperial

Introdução

O jogo Let Them Trade simula uma rede de trocas comerciais e desenvolvimento urbano em um ambiente inspirado nos sistemas mercantis e logísticos europeus. À primeira vista, ele parece ser apenas um tycoon game — um passatempo econômico para gerir comércio. No entanto, se lido à luz de Meditação sobre a Técnica de José Ortega y Gasset e de Un Imperio de Ingenieros, de Felipe Fernández-Armesto e Manuel Lucena Giraldo, ele se revela como um microcosmo jogável da modernidade tecnocrática: o cenário onde o mercador se torna engenheiro, o engenheiro vira economista, e o mundo se transforma em sistema técnico global.

1. O mercador como engenheiro do valor

No alvorecer da modernidade europeia, o mercador surge como figura central da expansão e ordenação do mundo. Seu papel ultrapassa a simples intermediação de bens: ele domina o tempo e o espaço por meio do cálculo, da negociação e do risco. O mercador transforma a geografia em geopolítica, pois cada rota comercial é também uma rota de influência.

Nesse sentido, o mercador é o arquétipo do engenheiro: ele constrói pontes entre mundos, cria conexões, antecipa fluxos. O comércio torna-se forma técnica de domínio, e o domínio, por sua vez, requer uma visão estratégica que antecipa a própria engenharia estatal moderna.

Em Let Them Trade, o jogador encarna esse papel: começa por decidir o que trocar, onde investir, mas logo precisa intervir na malha de infraestrutura, desenvolvendo entrepostos, rotas e sistemas — e isso o aproxima da figura do engenheiro imperial.

2. O engenheiro como mediador do império

Felipe Fernández-Armesto e Manuel Lucena Giraldo, em Un Imperio de Ingenieros, mostram que o verdadeiro arquiteto do império moderno não é o soldado nem o rei, mas o engenheiro: aquele que transforma um projeto político em estrutura física, racional, técnica e permanente. A engenharia da Monarquia Católica Ibérica não era apenas militar, mas civil, cultural e espiritual. Cada estrada aberta, cada cidade planejada, cada fortaleza construída participava de uma missão de ordenação do mundo à imagem da Cristandade.

No jogo, o engenheiro aparece não como um avatar, mas como a lógica interna do sistema: não basta acumular riquezas; é preciso racionalizar o crescimento. O progresso só ocorre se as rotas forem eficazes, os fluxos otimizados, os nós comerciais interligados. O jogo exige, implicitamente, que o jogador torne-se um planejador tecnocrata do império comercial.

3. O economista como abstração da engenharia

À medida que o mundo moderno avança, a figura do engenheiro dá lugar ao economista — o técnico do valor abstrato. Se o engenheiro desenha pontes, o economista desenha gráficos; se o primeiro traça estradas, o segundo calcula curvas de oferta e demanda.

A economia política nasce como uma tentativa de teorizar e racionalizar os fluxos da vida social à imagem das ciências naturais. O valor se desvincula do objeto, a riqueza se torna capital, o trabalho vira fator de produção. O economista, então, não apenas governa a técnica, mas governa a própria vida social por meio da técnica.

Em Let Them Trade, essa transição se dá quando o jogador deixa de "atuar" no mundo concreto e passa a administrar um sistema abstrato de recursos e dados. A realidade desaparece sob os números. O jogo é vencido não por quem mais interage com o mundo, mas por quem melhor entende a lógica invisível do sistema.

4. Técnica, império e biopolítica

José Ortega y Gasset adverte, em sua Meditação sobre a Técnica, que quando a técnica se autonomiza e deixa de servir à vida, ela se converte em ameaça: barbárie do especialista, redução do mundo à função.

Michel Foucault descreve esse processo como biopolítica: a técnica deixa de servir à vida para governar a vida. A economia moderna é a nova teologia, e o economista, seu sacerdote. As decisões políticas são subordinadas a cálculos técnicos — e a vida é mensurada em termos de custo, eficiência, risco.

Giorgio Agamben, por sua vez, mostra que esse governo técnico da vida culmina em um estado de exceção permanente, onde o homo sacer — o homem excluído da ordem jurídica — é gerado como produto inevitável do império técnico-econômico.

Let Them Trade, nesse contexto, revela-se como alegoria da civilização que transformou o mundo em máquina. E ao fazer isso de maneira lúdica, suaviza o impacto moral da crítica — mas não a neutraliza.

5. Retomando nos méritos de Cristo: o valor como ordenação

Ao longo dessa genealogia — do mercador ao engenheiro e deste ao economista —, vemos a progressiva separação da técnica em relação ao espírito que lhe dava sentido. Para o cristianismo tradicional, a técnica era instrumento de ordenação do mundo conforme o Logos. O valor das coisas não vinha do mercado, mas do seu lugar na Criação.

Olavo de Carvalho advertia que o homem moderno se perdeu ao fazer do saber técnico um substituto da sabedoria, e do cálculo uma religião. O mundo perdeu sua orientação metafísica — e a economia tornou-se o novo absoluto.

Um retorno à ordem exige, então, a reconfiguração do papel do mercador como servo de Cristo, e não como agente autônomo do capital. O mercador, nesse novo espírito, seria um engenheiro do bem comum, e o economista, um administrador da justiça distributiva, submisso à lei natural e à autoridade de Deus.

Conclusão: do jogo à contemplação

Let Them Trade não é apenas um jogo: é um espelho técnico da modernidade, que encena silenciosamente a história do poder técnico-econômico que domina o Ocidente. Ele mostra, ainda que inconscientemente, o itinerário de uma civilização que passou:

  • do mercador construtor de pontes culturais,

  • ao engenheiro imperial que ordena o mundo com precisão cartesiana,

  • até o economista que governa os vivos como se fossem variáveis de um sistema abstrato.

Só ao recuperar o eixo espiritual da técnica — nos méritos de Cristo — é que poderemos transformar novamente o comércio, a engenharia e a economia em vias de santificação da vida e de serviço ao bem comum, e não em ídolos da eficiência desumanizada.

Referências bibliográficas (ABNT):

FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; LUCENA GIRALDO, Manuel. Un Imperio de Ingenieros: Una historia del poder técnico en la España imperial. Barcelona: Taurus, 2021.

ORTEGA Y GASSET, José. Meditação sobre a Técnica. Lisboa: Relógio D’Água, 1999.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995.

STRAY FAWN STUDIO. Let Them Trade [jogo eletrônico]. Suíça: Stray Fawn, 2024.

O mercador como príncipe: quando Let Them Trade encontra Machiavelli The Prince

Resumo: 

Este artigo propõe a fusão conceitual entre dois jogos de estratégia e simulação econômica/política: Let Them Trade (2024) e Machiavelli The Prince (1995). Embora separados por quase trinta anos, ambos expressam, cada um a seu modo, a figura histórica do mercador como arquétipo político. Partindo da análise de suas mecânicas centrais, propõe-se o esboço de um novo simulador civilizacional, onde o poder comercial conduz à autoridade política e à fundação de novos impérios. O artigo é também uma meditação sobre o papel do comércio na transição da Cristandade medieval para a modernidade ocidental.

Palavras-chave: estratégia histórica, comércio medieval, Maquiavel, jogos de simulação, poder civilizacional.

1. Introdução: da rota ao trono

A civilização ocidental não foi construída apenas por imperadores e exércitos. Por trás dos tratados, das reformas e das cruzadas, operava silenciosamente uma elite comercial que movia o mundo com moedas, navios, alianças e informações. De Veneza a Lübeck, de Lisboa a Gdansk, o mercador medieval e renascentista não apenas financiava a política — ele era política. Como mostra a experiência de jogos como Let Them Trade e Machiavelli The Prince, o comércio é, ao mesmo tempo, ordem técnica, intriga diplomática e horizonte de poder.

Este artigo propõe a fusão simbólica desses dois jogos como forma de visualizar a ascensão do mercador-príncipe, figura histórica cuja importância permanece negligenciada, mas que representa o elo entre a espiritualidade da Cristandade e o pragmatismo da modernidade.

2. A ordem logística em Let Them Trade

Lançado em 2024 pela Spaceflower Studio, Let Them Trade é um jogo de estratégia e simulação econômica ambientado na Europa medieval. Nele, o jogador controla uma casa mercantil que constrói rotas comerciais, investe em infraestrutura logística e estabelece uma rede de distribuição entre cidades e feiras.

Seu diferencial está na ênfase na logística automática e no fluxo entrepostos, onde o jogador observa uma rede dinâmica de consumo, produção e redistribuição. Não há guerra direta, apenas competição econômica^1^. A cidade é uma entidade viva: cresce, adoece, floresce e decai conforme o abastecimento, os impostos e a estabilidade geral.

O jogo atualiza, em termos gráficos e de interface, a tradição de The Patrician e Hanse, reforçando uma ética objetiva da técnica, como propôs Ortega y Gasset em sua célebre Meditação sobre a Técnica, ao dizer que "a técnica é o esforço para economizar esforço"^2^.

3. A ética da astúcia em Machiavelli The Prince

Lançado em 1995 pela MicroProse, Machiavelli The Prince é um jogo ambientado na Itália renascentista. O jogador é o líder de uma casa florentina ou veneziana que busca ascender na política local por meios lícitos ou ilícitos. Subornos, assassinatos, alianças matrimoniais e manipulação religiosa são ferramentas disponíveis ao jogador.

Ao contrário de Let Them Trade, onde a racionalidade econômica é o eixo da ação, aqui o jogo gira em torno da moral política maquiavélica, inspirada diretamente na obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel. Como escreveu o autor florentino, "é necessário ao príncipe, se quiser manter-se, aprender a poder não ser bom"^3^.

Machiavell antecipava muitos elementos que seriam popularizados anos depois em Crusader Kings, Europa Universalis e Colonization. Sua riqueza moral, contudo, permanece insuperada: o jogador aprende, na prática, que toda ação política é uma negociação entre aparência e essência, entre o útil e o justo.

4. Uma fusão conceitual: The Merchant Prince – From Republic to Empire

A proposta é imaginar um jogo que una as qualidades logísticas de Let Them Trade com as decisões morais e políticas de Machiavell The Prince. O resultado seria um simulador completo da transição da economia medieval para o sistema colonial e capitalista moderno. A estrutura do jogo seguiria três atos:

Ato I – República Comercial (1350–1450)

  • Construção de rotas mercantis e entrepostos;

  • Influência nos conselhos urbanos e guildas;

  • Combate à peste, inflação, carestia.

Ato II – Intriga e Poder (1450–1500)

  • Manipulação de cardeais e eleições papais;

  • Controle sobre cidades e repúblicas;

  • Uso de diplomacia secreta e propaganda.

Ato III – Novo Mundo (1500–1600)

  • Obtenção de cartas régias para colonização;

  • Fundação de entrepostos ultramarinos;

  • Transição para estruturas imperiais;

  • Possível modo expansionista em estilo Colonization.

Essa fusão não apenas seria lúdica, mas também pedagógica, pois ensinaria o papel fundamental do comércio como fermento político e cultural da Cristandade tardia.

5. O Princeps Mercator: figura civilizacional

O "príncipe-mercador" proposto neste artigo não é uma figura fantasiosa, mas histórica. Homens como Cosimo de’ Medici, Jakob Fugger, Francisco de Almeida e Bartolomeu de Gusmão — ainda que em funções distintas — exemplificam o elo entre comércio, técnica, poder político e fé.

Como escreveu Felipe Fernández-Armesto, "a civilização é a capacidade de transformar o ambiente segundo valores humanos"^4^. E, como mostra Josiah Royce, a lealdade verdadeira exige sacrifício por uma causa duradoura^5^. O príncipe-mercador é fiel a essa causa: a criação de ordem e abundância onde havia caos e carência, a custo de sua própria honra.

6. Considerações finais

Ao imaginar um jogo que une Let Them Trade e Machiavell The Prince, vislumbramos uma pedagogia civilizacional que vai além do entretenimento. Trata-se de um retorno àquilo que o mundo contemporâneo esqueceu: que o poder não nasce apenas do canhão ou da cruz, mas também do contrato e da moeda, instrumentos legítimos da criação de ordem.

O mercador, quando virtuoso, não é apenas um acumulador de riquezas. Ele é o arquiteto invisível da paz entre os povos, o agente silencioso da civilização.

Referências Bibliográficas 

  1. SPACEFLOWER. Let Them Trade [jogo eletrônico]. Steam: Spaceflower Studio, 2024.

  2. ORTEGA Y GASSET, José. Meditações sobre a técnica. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.

  3. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2010.

  4. FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Civilization: Culture, Ambition, and the Transformation of Nature. New York: Scribner, 2001.

  5. ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.

  6. MICROPROSE. Machiavelli The Prince [jogo eletrônico]. PC-DOS: MicroProse Software, 1995. Disponível em: https://www.gog.com.

  7. MEIER, Sid. Colonization [jogo eletrônico]. PC-DOS: MicroProse Software, 1994. 

A engenharia como expressão civilizacional: entre a ordem cristã e a mentalidade revolucionária

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre a função civilizacional da engenharia quando integrada à ordem transcendente, em contraste com sua deformação técnica e política sob a mentalidade revolucionária moderna. Com base na tradição romano-cristã e nos fundamentos do Direito Natural, argumenta-se que a técnica deve estar subordinada à ética e à verdade. Quando ocorre o divórcio entre ambas, surgem formas de engenharia social e deformações profissionais como o lobismo jurídico. Autores como Romano Guardini, Christopher Dawson, Alasdair MacIntyre e outros são mobilizados para mostrar essa ruptura entre técnica e transcendência.

1. Introdução

A engenharia, enquanto saber técnico aplicado, pode ser expressão tanto de uma civilização ordenada ao bem comum quanto de uma sociedade dominada pela instrumentalização da razão. A distinção entre essas duas ordens — uma conectada à transcendência e outra à ideologia revolucionária — define não apenas o uso da técnica, mas o destino dos povos. Tal distinção encontra ecos nos grandes debates filosóficos sobre ética, civilização e verdade.

2. Técnica e Civilização na Tradição Romano-Cristã

A herança romana, integrada à Revelação cristã, conferiu à técnica um lugar na estrutura da civilização. A engenharia de estradas, aquedutos, pontes e edifícios não era apenas uma aplicação prática, mas um reflexo do ordo que permeava o cosmos. Como afirmava Christopher Dawson, a verdadeira civilização se define não apenas por seu nível técnico, mas por sua fidelidade a um princípio espiritual comum (DAWSON, 2015).

Nessa tradição, a técnica participa de uma ordem sacramental: cada ponte construída é também um símbolo de união entre mundos, uma metáfora do acesso à transcendência. A engenharia, assim como o Direito e a Arquitetura, eram expressões práticas de uma realidade moral e espiritual que antecede o indivíduo.

O Direito Romano, que moldou o Ocidente, não era apenas um sistema de normas, mas uma tentativa de espelhar no mundo visível uma ordem superior e natural. Nesse sentido, o engenheiro e o jurista participam da mesma missão: tornar visível a ordem do ser no mundo das ações humanas.

3. A técnica no horizonte da revolução

A modernidade, especialmente sob a influência da Reforma e da Revolução Francesa, operou uma mutação: rompeu a subordinação da técnica à moral. Romano Guardini, em O Fim da Era Moderna, denuncia a emergência de uma razão puramente instrumental, que se volta contra o próprio homem (GUARDINI, 1998). A técnica, agora autônoma, tende à hipertrofia: desenvolve-se por si, sem freios éticos.

Essa mutação tem raízes germânicas no sentido amplo, pois foi no seio das culturas reformadas, industrializadas e racionalistas da Europa do Norte que a técnica se autonomizou. Em vez de servir à civilização, ela passa a reformulá-la: nasce a engenharia social.

Alasdair MacIntyre, em After Virtue, explica como a modernidade substituiu a ética das virtudes por um sistema técnico de gestão. O mundo passa a ser compreendido como um conjunto de problemas a serem resolvidos por especialistas — engenheiros, juristas, planejadores. Mas, sem um fim último compartilhado, toda profissão degenera (MACINTYRE, 2007).

4. O jurista como engenheiro moral: a degradação do Direito

No mundo moderno, o jurista deixa de ser um sacerdote da justiça e se transforma em lobista. Ele já não defende o direito natural, mas interesses negociáveis. Como os engenheiros sociais, ele participa da reengenharia da sociedade, ajustando leis conforme pressões de grupos de poder.

A semelhança entre o engenheiro, o arquiteto e o advogado está em que todos deveriam ser intérpretes do real, conforme uma ordem anterior à vontade humana. Contudo, na ausência de um fundamento metafísico, todos eles se tornam operadores de sistemas — e sistemas manipuláveis.

Nesse sentido, a figura do lobista jurídico é emblemática: trata-se de um operador técnico da norma, sem qualquer conexão com o bem, a justiça ou a verdade. Um engenheiro do poder, cujo saber é neutro e cuja moral é flexível.

5. A crítica de Ortega y Gasset e a morte do homem técnico

Em Meditações sobre a Técnica, José Ortega y Gasset já antevia o problema: quando a técnica perde sua conexão com o ser, ela deixa de ser humana. O técnico moderno já não se interroga sobre o "por quê", mas apenas sobre o "como". Ele se torna funcional, não contemplativo.

Ortega observa que a técnica se hipertrofia quando perde seu lugar na escala dos valores. O técnico moderno vive num mundo fechado, repetitivo, incapaz de imaginar uma finalidade última. A especialização o aliena da totalidade, e sua ação se torna cega. Quando essa cegueira é aplicada ao Direito, temos a morte da justiça; quando aplicada à política, temos a tirania.

6. Conclusão: o retorno ao fundamento

A crise da técnica, do direito e da arquitetura civilizacional é, no fundo, uma crise de fundamento metafísico. Toda profissão perde seu sentido quando não se orienta a uma verdade que transcende o indivíduo. Como advertia Christopher Dawson, sem um princípio religioso comum, toda civilização decai.

O engenheiro deve retornar à sua vocação originária: ser um servidor da ordem do ser. O jurista, igualmente, deve advogar pela justiça e não por interesses. E o arquiteto, mais do que desenhar formas, deve encarnar valores.

Como nos ensina a tradição romana-cristã, a técnica deve ser serva da verdade, e não senhora da vontade. O futuro da civilização depende da restauração dessa hierarquia.

Referências Bibliográficas

  • DAWSON, Christopher. A Criação de uma Civilização Cristã. São Paulo: Ecclesiae, 2015.

  • GUARDINI, Romano. O Fim da Era Moderna. São Paulo: É Realizações, 1998.

  • MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2007.

  • ORTEGA Y GASSET, José. Meditações sobre a Técnica e Outros Ensaios. Lisboa: Relógio d’Água, 1993.

  • ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.

  • FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe & LUCENA GIRALDO, Manuel. Un Imperio de Ingenieros. Madrid: Taurus, 2012.

A técnica como expressão civilizacional: um diálogo entre as obras Meditación sobre la técnica (José Ortega y Gasset) e Un Imperio de Ingenieros (Felipe Fernández-Armesto e Manuel Lucena Girialdo)

Resumo

Este artigo busca estabelecer um diálogo crítico entre Meditação da Técnica (1933), de José Ortega y Gasset, e Un Imperio de Ingenieros (2022), de Felipe Fernández-Armesto e Manuel Lucena Giraldo. Ambas as obras, embora distintas em escopo e método, convergem na compreensão da técnica como expressão cultural e não como mero instrumento. Enquanto Ortega propõe uma reinterpretação filosófica da técnica como projeção do projeto vital humano, os autores de Un Imperio de Ingenieros exploram o papel dos engenheiros na construção do império espanhol como missão civilizadora e católica. A análise conjunta revela a singularidade da tradição hispânica ao lidar com a técnica: longe de reduzi-la ao utilitarismo moderno, ela é vista como veículo de valores espirituais, culturais e políticos.

Palavras-chave: técnica; império; cultura hispânica; Ortega y Gasset; engenharia; civilização.

1. Introdução

A técnica, desde o século XIX, passou a ser pensada sobretudo sob o prisma do progresso material e da eficiência. Contudo, filósofos e historiadores vinculados à tradição hispânica propõem uma abordagem mais profunda, que reconhece na técnica um elemento central da cultura e da espiritualidade. Nesse contexto, o presente artigo propõe um diálogo entre José Ortega y Gasset e os autores de Un Imperio de Ingenieros, argumentando que ambos oferecem visões complementares da técnica como expressão de um destino civilizacional.

2. Ortega y Gasset: A técnica como projeção do projeto vital

No ensaio Meditação da Técnica, Ortega y Gasset rejeita a concepção materialista que reduz a técnica à mera ferramenta de adaptação ao meio. Para ele, a técnica nasce da liberdade do ser humano de não se conformar com o dado:

“A técnica é o esforço para fazer possível o impossível” (ORTEGA Y GASSET, 2014, p. 33).

Dessa forma, a técnica é uma criação histórica, que reflete o modo como o homem escolhe viver. Ortega denuncia o perigo da técnica moderna, que se autonomiza da vida e do pensamento, tornando-se um sistema autossuficiente que ameaça dominar o homem.

3. Un Imperio de Ingenieros: a engenharia como forma de governo e missão

Na obra Un Imperio de Ingenieros, Fernández-Armesto e Lucena Giraldo traçam o perfil de uma elite de engenheiros ao serviço do Império Espanhol entre os séculos XVI e XVIII. Esses profissionais eram mais do que técnicos: eram cartógrafos, arquitetos, juristas, religiosos e artistas. A técnica, nesse contexto, era:

“um saber totalizante que integrava ciência, fé, administração e cultura” (FERNÁNDEZ-ARMESTO; LUCENA GIRALDO, 2022, p. 57).

O engenheiro do império não apenas edificava fortificações e cidades, mas também fundava uma ordem cristã no território. A técnica se convertia, assim, em instrumento de governo e missão espiritual.

4. Convergências: Técnica como cultura

Ortega e os autores de Un Imperio de Ingenieros partem da mesma premissa: a técnica não é neutra. Em ambos os casos, ela é uma forma de cultura, ou seja, uma forma de ordenar o mundo conforme um sentido. A técnica hispânica não se confunde com o maquinismo anglo-saxão. Ela nasce de um horizonte teleológico e transcendente — no qual a ação técnica se insere dentro de uma ordem maior, seja ela filosófica (Ortega) ou imperial-cristã (Fernández-Armesto e Lucena Giraldo).

5. Tensões: O indivíduo e o império

A principal tensão entre os autores está na ênfase: Ortega escreve a partir do drama do indivíduo moderno, angustiado diante da hipertrofia da técnica; os historiadores espanhóis, por outro lado, celebram o engenheiro como figura orgânica da ordem imperial. Ortega teme que o tecnicismo destrua o projeto vital; os autores de Un Imperio de Ingenieros mostram uma técnica integrada a um projeto coletivo — o do Império Católico.

6. A tradição hispânica e a redenção da técnica

Em tempos em que a técnica se autonomiza da ética, ambas as obras oferecem lições. Ortega propõe uma reorientação filosófica da técnica a partir da vida humana concreta. Já Fernández-Armesto e Lucena Giraldo demonstram como uma tradição espiritual e política conseguiu integrar técnica e transcendência. A técnica, para ambos, deve ser recolocada a serviço de um fim humano superior — e não meramente produtivista.

7. Considerações finais

O diálogo entre Ortega y Gasset e os autores de Un Imperio de Ingenieros revela uma visão alternativa ao paradigma tecnocrático dominante. Ao compreender a técnica como expressão de um destino histórico e espiritual, essas obras resgatam a possibilidade de uma cultura técnica enraizada na verdade, na justiça e na missão. Trata-se de uma contribuição valiosa da tradição hispânica para o pensamento contemporâneo.

Referências

FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; LUCENA GIRALDO, Manuel. Un Imperio de Ingenieros: Una historia del saber al servicio del poder. Madrid: Taurus, 2022.

ORTEGA Y GASSET, José. Meditação da Técnica e outros ensaios. Tradução de Helena Silveira. São Paulo: Editora Globo, 2014.

Diálogo imaginário entre Felipe Fernández-Armesto e Manuel Lucena Giraldo

 [Local: Sala de conferências da Real Academia de la Historia, Madri. Público acadêmico presente. Após a palestra, os dois autores conversam sentados frente a frente, com copos de água à mão.]

FELIPE FERNÁNDEZ-ARMESTO:
Manuel, você percebe como os engenheiros da Monarquia Hispânica ilustram quase à perfeição a minha tese de que civilização é uma forma de imposição cultural sobre a natureza? Em Civilization, argumentei que a civilização é menos um estado de ser e mais um ato contínuo de transformação — uma ambição humana de moldar o mundo. Os engenheiros do Império faziam exatamente isso: domavam rios, erguiam fortalezas, redesenhavam paisagens.

MANUEL LUCENA GIRALDO:
Concordo, Felipe. Mas veja: em Un Imperio de Ingenieros, procuramos mostrar que essa transformação não é apenas ambição, mas também cálculo, formação, método. A engenharia imperial é, antes de tudo, uma escola de racionalidade técnica posta a serviço do poder político e espiritual da Monarquia Católica. Os engenheiros eram soldados da fé e da ciência. Não se tratava apenas de transformar a natureza, mas de ordená-la segundo um plano providencial — talvez até espiritual.

FERNÁNDEZ-ARMESTO:
Justamente! E é aí que nossas obras se encontram. Quando escrevi que civilização é “a tentativa humana de fazer do mundo um lugar mais confortável e inteligível para nós mesmos”, não excluí o papel das instituições — apenas as vi como expressões culturais. Os engenheiros espanhóis, com sua formação rigorosa em matemática, desenho e cosmografia, encarnam essa vontade civilizatória com sotaque ibérico.

LUCENA GIRALDO:
E com sotaque cristão, Felipe. Porque não podemos esquecer que muitos desses engenheiros viam sua missão como continuação do mandato espiritual de Ourique: servir a Cristo em terras distantes. A engenharia não era apenas ciência aplicada, mas também evangelização materializada. Ao construir pontes, fortes, aquedutos, eles levavam consigo o símbolo de uma ordem católica universal. A técnica a serviço da transcendência.

FERNÁNDEZ-ARMESTO (sorrindo):
Uma bela maneira de dizer que a civilização hispânica era uma civilização da fidelidade. O Ocidente moderno esqueceu isso — e com isso, perdeu o sentido de finalidade. Em vez de transformar a natureza para glorificar o Criador, passamos a subjugá-la para engrandecer o ego. E aqui está o contraste com os engenheiros que você tão bem descreve.

LUCENA GIRALDO:
É o que tento sempre lembrar aos meus alunos: o engenheiro imperial não era um tecnocrata moderno, mas um homem universal — militar, cartógrafo, matemático, teólogo prático. A fronteira entre cultura e técnica, entre ciência e missão, era porosa. Essa é a lição maior: o império não foi apenas uma estrutura política, mas uma pedagogia histórica.

FERNÁNDEZ-ARMESTO:
Pedagogia, sim — e também drama. Porque toda civilização carrega o germe de sua autocrítica. A civilização hispânica transformou continentes, mas também colheu resistências. Talvez a maior lição seja esta: que nenhuma civilização se sustenta apenas pela técnica, se não houver imaginação moral e fidelidade a algo maior que si mesma.

LUCENA GIRALDO:
Então, Felipe, talvez devamos escrever juntos um novo livro. Que tal: Un Imperio de Civilizadores?

FERNÁNDEZ-ARMESTO (rindo):
Ou Civilización y Cruz. Vamos conversar com o editor… 

Civilização da Santa Cruz: a técnica como missão no Império Católico

 

“Los imperios se levantan sobre mapas, se sostienen con palabras, pero se perpetúan con obras.”
— Manuel Lucena Giraldo

“Civilização é a arte de impor um propósito moral ao caos da natureza.”
— Felipe Fernández-Armesto

I. A ambição civilizatória e sua vontade de forma

A história da civilização é a história da forma imposta à matéria. Esta afirmação — aparentemente simples — carrega o peso de séculos de ambição humana, espiritualidade e conflito. Quando estudamos a expansão ibérica dos séculos XVI e XVII, não podemos vê-la apenas como um movimento político, econômico ou militar. Ela foi, acima de tudo, um projeto civilizatório integral, cuja força estava no cruzamento entre cultura, fé e técnica.

Felipe Fernández-Armesto já havia demonstrado, em Civilization: Culture, Ambition and the Transformation of Nature (2000), que a marca fundamental das civilizações é o esforço humano para moldar o ambiente, transcendendo seus limites naturais. É nesse sentido que o autor propõe uma definição de civilização como “controle ambiental” — não no sentido destrutivo da modernidade industrial, mas como vocação de ordenação e significação.

É precisamente nesse espírito que se inserem os engenheiros da Monarquia Hispânica.

II. O engenheiro como missionário técnico

Em Un Imperio de Ingenieros (2023), Manuel Lucena Giraldo, ao lado de Fernández-Armesto, dá voz a uma figura muitas vezes esquecida nas narrativas tradicionais do império: o engenheiro. Mas não qualquer engenheiro. Estamos falando de homens como Cristóbal de Rojas, Juan de Herrera, Pedro de Esquivel e tantos outros que, com régua, compasso e tratados técnicos, moldaram a paisagem do mundo hispânico nos quatro cantos do globo.

Mais do que construtores, eles eram intelectuais militares e artífices de um plano providencial. O Real Corpo de Engenheiros, criado formalmente em 1711, era herdeiro de uma tradição iniciada nos séculos anteriores, sob o comando de mestres formados em matemática, fortificação, hidrologia, náutica e cosmografia. Suas obras — fortalezas, pontes, cidades inteiras como Manila ou Cartagena de Indias — não apenas asseguravam o controle territorial, mas ensinavam uma lógica cristã de organização social e espacial.

O engenheiro não apenas subjugava a natureza. Ele catequizava o espaço.

III. O espírito de Ourique em terras distantes

Esse ethos civilizatório tem raízes profundas. Como recorda Fernández-Armesto, o imaginário da missão ibérica remonta à própria fundação de Portugal, no Milagre de Ourique (1139), onde o rei Afonso Henriques teria recebido a visão de Cristo que o legitimaria como defensor da fé e da ordem cristã. Esta visão da história como cumprimento de uma missão divina está presente, séculos depois, nos projetos de colonização e engenharia na América, na África e na Ásia.

A frase “servir a Cristo em terras distantes” não era mera retórica. Era vontade operante, traduzida em plantas urbanas, cálculos de declividade, canais, bastiões e escadarias. O engenheiro não era apenas um tecnocrata: ele era um servo da Cruz com instrumentos geométricos.

IV. Técnica e Redenção: A cristandade como forma

Enquanto o mundo moderno se afasta cada vez mais da ideia de uma técnica orientada por fins morais, a experiência do Império Católico nos oferece uma alternativa: a técnica como parte de um processo de redenção. O engenheiro imperial não era neutro. Sua neutralidade seria uma traição. Como argumentamos neste capítulo, as obras públicas da Monarquia Hispânica não eram apenas funcionalmente eficientes: elas eram belas, proporcionais, simbólicas.

Essa convergência entre forma técnica e forma espiritual pode ser vista nos traçados das cidades coloniais, organizadas segundo o modelo da “plaza mayor” (praça central), como expressão do centro cósmico e social, onde a Igreja e o poder civil se encontram.

Essa estética não era apenas urbanística, mas teológica.

V. Epílogo: por uma engenharia da civilização

O mundo atual parece fascinado com a técnica desligada do espírito, com a inovação sem fidelidade. Em nome do progresso, constrói-se o que é funcional, mas não o que é justo. Desenha-se o que é eficiente, mas não o que é belo. Planeja-se o que é lucrativo, mas não o que é verdadeiro.

Recuperar o exemplo dos engenheiros da Cristandade ibérica é um convite à integração entre cultura, fé e ciência. Não se trata de um retorno ao passado, mas de uma retomada de propósito: entender que nenhuma civilização perdura sem um eixo moral. E que a Cruz não se opõe ao cálculo, mas o orienta.

Referências:

FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Civilization: Culture, Ambition and the Transformation of Nature. London: Pan Macmillan, 2000.

FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; LUCENA GIRALDO, Manuel. Un Imperio de Ingenieros: una historia del saber al servicio de la Monarquía. Barcelona: Taurus, 2023.

ROJAS, Cristóbal de. Teórica y práctica de fortificación. Madrid: Real Imprenta, 1598.

HERRERA, Juan de. Tratado de Arquitectura. Manuscrito inédito, Biblioteca Nacional de España.