Pesquisar este blog

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O mercador como príncipe: quando Let Them Trade encontra Machiavelli The Prince

Resumo: 

Este artigo propõe a fusão conceitual entre dois jogos de estratégia e simulação econômica/política: Let Them Trade (2024) e Machiavelli The Prince (1995). Embora separados por quase trinta anos, ambos expressam, cada um a seu modo, a figura histórica do mercador como arquétipo político. Partindo da análise de suas mecânicas centrais, propõe-se o esboço de um novo simulador civilizacional, onde o poder comercial conduz à autoridade política e à fundação de novos impérios. O artigo é também uma meditação sobre o papel do comércio na transição da Cristandade medieval para a modernidade ocidental.

Palavras-chave: estratégia histórica, comércio medieval, Maquiavel, jogos de simulação, poder civilizacional.

1. Introdução: da rota ao trono

A civilização ocidental não foi construída apenas por imperadores e exércitos. Por trás dos tratados, das reformas e das cruzadas, operava silenciosamente uma elite comercial que movia o mundo com moedas, navios, alianças e informações. De Veneza a Lübeck, de Lisboa a Gdansk, o mercador medieval e renascentista não apenas financiava a política — ele era política. Como mostra a experiência de jogos como Let Them Trade e Machiavelli The Prince, o comércio é, ao mesmo tempo, ordem técnica, intriga diplomática e horizonte de poder.

Este artigo propõe a fusão simbólica desses dois jogos como forma de visualizar a ascensão do mercador-príncipe, figura histórica cuja importância permanece negligenciada, mas que representa o elo entre a espiritualidade da Cristandade e o pragmatismo da modernidade.

2. A ordem logística em Let Them Trade

Lançado em 2024 pela Spaceflower Studio, Let Them Trade é um jogo de estratégia e simulação econômica ambientado na Europa medieval. Nele, o jogador controla uma casa mercantil que constrói rotas comerciais, investe em infraestrutura logística e estabelece uma rede de distribuição entre cidades e feiras.

Seu diferencial está na ênfase na logística automática e no fluxo entrepostos, onde o jogador observa uma rede dinâmica de consumo, produção e redistribuição. Não há guerra direta, apenas competição econômica^1^. A cidade é uma entidade viva: cresce, adoece, floresce e decai conforme o abastecimento, os impostos e a estabilidade geral.

O jogo atualiza, em termos gráficos e de interface, a tradição de The Patrician e Hanse, reforçando uma ética objetiva da técnica, como propôs Ortega y Gasset em sua célebre Meditação sobre a Técnica, ao dizer que "a técnica é o esforço para economizar esforço"^2^.

3. A ética da astúcia em Machiavelli The Prince

Lançado em 1995 pela MicroProse, Machiavelli The Prince é um jogo ambientado na Itália renascentista. O jogador é o líder de uma casa florentina ou veneziana que busca ascender na política local por meios lícitos ou ilícitos. Subornos, assassinatos, alianças matrimoniais e manipulação religiosa são ferramentas disponíveis ao jogador.

Ao contrário de Let Them Trade, onde a racionalidade econômica é o eixo da ação, aqui o jogo gira em torno da moral política maquiavélica, inspirada diretamente na obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel. Como escreveu o autor florentino, "é necessário ao príncipe, se quiser manter-se, aprender a poder não ser bom"^3^.

Machiavell antecipava muitos elementos que seriam popularizados anos depois em Crusader Kings, Europa Universalis e Colonization. Sua riqueza moral, contudo, permanece insuperada: o jogador aprende, na prática, que toda ação política é uma negociação entre aparência e essência, entre o útil e o justo.

4. Uma fusão conceitual: The Merchant Prince – From Republic to Empire

A proposta é imaginar um jogo que una as qualidades logísticas de Let Them Trade com as decisões morais e políticas de Machiavell The Prince. O resultado seria um simulador completo da transição da economia medieval para o sistema colonial e capitalista moderno. A estrutura do jogo seguiria três atos:

Ato I – República Comercial (1350–1450)

  • Construção de rotas mercantis e entrepostos;

  • Influência nos conselhos urbanos e guildas;

  • Combate à peste, inflação, carestia.

Ato II – Intriga e Poder (1450–1500)

  • Manipulação de cardeais e eleições papais;

  • Controle sobre cidades e repúblicas;

  • Uso de diplomacia secreta e propaganda.

Ato III – Novo Mundo (1500–1600)

  • Obtenção de cartas régias para colonização;

  • Fundação de entrepostos ultramarinos;

  • Transição para estruturas imperiais;

  • Possível modo expansionista em estilo Colonization.

Essa fusão não apenas seria lúdica, mas também pedagógica, pois ensinaria o papel fundamental do comércio como fermento político e cultural da Cristandade tardia.

5. O Princeps Mercator: figura civilizacional

O "príncipe-mercador" proposto neste artigo não é uma figura fantasiosa, mas histórica. Homens como Cosimo de’ Medici, Jakob Fugger, Francisco de Almeida e Bartolomeu de Gusmão — ainda que em funções distintas — exemplificam o elo entre comércio, técnica, poder político e fé.

Como escreveu Felipe Fernández-Armesto, "a civilização é a capacidade de transformar o ambiente segundo valores humanos"^4^. E, como mostra Josiah Royce, a lealdade verdadeira exige sacrifício por uma causa duradoura^5^. O príncipe-mercador é fiel a essa causa: a criação de ordem e abundância onde havia caos e carência, a custo de sua própria honra.

6. Considerações finais

Ao imaginar um jogo que une Let Them Trade e Machiavell The Prince, vislumbramos uma pedagogia civilizacional que vai além do entretenimento. Trata-se de um retorno àquilo que o mundo contemporâneo esqueceu: que o poder não nasce apenas do canhão ou da cruz, mas também do contrato e da moeda, instrumentos legítimos da criação de ordem.

O mercador, quando virtuoso, não é apenas um acumulador de riquezas. Ele é o arquiteto invisível da paz entre os povos, o agente silencioso da civilização.

Referências Bibliográficas 

  1. SPACEFLOWER. Let Them Trade [jogo eletrônico]. Steam: Spaceflower Studio, 2024.

  2. ORTEGA Y GASSET, José. Meditações sobre a técnica. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.

  3. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2010.

  4. FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Civilization: Culture, Ambition, and the Transformation of Nature. New York: Scribner, 2001.

  5. ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.

  6. MICROPROSE. Machiavelli The Prince [jogo eletrônico]. PC-DOS: MicroProse Software, 1995. Disponível em: https://www.gog.com.

  7. MEIER, Sid. Colonization [jogo eletrônico]. PC-DOS: MicroProse Software, 1994. 

Nenhum comentário:

Postar um comentário