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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Let Them Trade como alegoria da tecnocivilização moderna: a transmutação do mercador em economista, através da figura do engenheiro imperial

Introdução

O jogo Let Them Trade simula uma rede de trocas comerciais e desenvolvimento urbano em um ambiente inspirado nos sistemas mercantis e logísticos europeus. À primeira vista, ele parece ser apenas um tycoon game — um passatempo econômico para gerir comércio. No entanto, se lido à luz de Meditação sobre a Técnica de José Ortega y Gasset e de Un Imperio de Ingenieros, de Felipe Fernández-Armesto e Manuel Lucena Giraldo, ele se revela como um microcosmo jogável da modernidade tecnocrática: o cenário onde o mercador se torna engenheiro, o engenheiro vira economista, e o mundo se transforma em sistema técnico global.

1. O mercador como engenheiro do valor

No alvorecer da modernidade europeia, o mercador surge como figura central da expansão e ordenação do mundo. Seu papel ultrapassa a simples intermediação de bens: ele domina o tempo e o espaço por meio do cálculo, da negociação e do risco. O mercador transforma a geografia em geopolítica, pois cada rota comercial é também uma rota de influência.

Nesse sentido, o mercador é o arquétipo do engenheiro: ele constrói pontes entre mundos, cria conexões, antecipa fluxos. O comércio torna-se forma técnica de domínio, e o domínio, por sua vez, requer uma visão estratégica que antecipa a própria engenharia estatal moderna.

Em Let Them Trade, o jogador encarna esse papel: começa por decidir o que trocar, onde investir, mas logo precisa intervir na malha de infraestrutura, desenvolvendo entrepostos, rotas e sistemas — e isso o aproxima da figura do engenheiro imperial.

2. O engenheiro como mediador do império

Felipe Fernández-Armesto e Manuel Lucena Giraldo, em Un Imperio de Ingenieros, mostram que o verdadeiro arquiteto do império moderno não é o soldado nem o rei, mas o engenheiro: aquele que transforma um projeto político em estrutura física, racional, técnica e permanente. A engenharia da Monarquia Católica Ibérica não era apenas militar, mas civil, cultural e espiritual. Cada estrada aberta, cada cidade planejada, cada fortaleza construída participava de uma missão de ordenação do mundo à imagem da Cristandade.

No jogo, o engenheiro aparece não como um avatar, mas como a lógica interna do sistema: não basta acumular riquezas; é preciso racionalizar o crescimento. O progresso só ocorre se as rotas forem eficazes, os fluxos otimizados, os nós comerciais interligados. O jogo exige, implicitamente, que o jogador torne-se um planejador tecnocrata do império comercial.

3. O economista como abstração da engenharia

À medida que o mundo moderno avança, a figura do engenheiro dá lugar ao economista — o técnico do valor abstrato. Se o engenheiro desenha pontes, o economista desenha gráficos; se o primeiro traça estradas, o segundo calcula curvas de oferta e demanda.

A economia política nasce como uma tentativa de teorizar e racionalizar os fluxos da vida social à imagem das ciências naturais. O valor se desvincula do objeto, a riqueza se torna capital, o trabalho vira fator de produção. O economista, então, não apenas governa a técnica, mas governa a própria vida social por meio da técnica.

Em Let Them Trade, essa transição se dá quando o jogador deixa de "atuar" no mundo concreto e passa a administrar um sistema abstrato de recursos e dados. A realidade desaparece sob os números. O jogo é vencido não por quem mais interage com o mundo, mas por quem melhor entende a lógica invisível do sistema.

4. Técnica, império e biopolítica

José Ortega y Gasset adverte, em sua Meditação sobre a Técnica, que quando a técnica se autonomiza e deixa de servir à vida, ela se converte em ameaça: barbárie do especialista, redução do mundo à função.

Michel Foucault descreve esse processo como biopolítica: a técnica deixa de servir à vida para governar a vida. A economia moderna é a nova teologia, e o economista, seu sacerdote. As decisões políticas são subordinadas a cálculos técnicos — e a vida é mensurada em termos de custo, eficiência, risco.

Giorgio Agamben, por sua vez, mostra que esse governo técnico da vida culmina em um estado de exceção permanente, onde o homo sacer — o homem excluído da ordem jurídica — é gerado como produto inevitável do império técnico-econômico.

Let Them Trade, nesse contexto, revela-se como alegoria da civilização que transformou o mundo em máquina. E ao fazer isso de maneira lúdica, suaviza o impacto moral da crítica — mas não a neutraliza.

5. Retomando nos méritos de Cristo: o valor como ordenação

Ao longo dessa genealogia — do mercador ao engenheiro e deste ao economista —, vemos a progressiva separação da técnica em relação ao espírito que lhe dava sentido. Para o cristianismo tradicional, a técnica era instrumento de ordenação do mundo conforme o Logos. O valor das coisas não vinha do mercado, mas do seu lugar na Criação.

Olavo de Carvalho advertia que o homem moderno se perdeu ao fazer do saber técnico um substituto da sabedoria, e do cálculo uma religião. O mundo perdeu sua orientação metafísica — e a economia tornou-se o novo absoluto.

Um retorno à ordem exige, então, a reconfiguração do papel do mercador como servo de Cristo, e não como agente autônomo do capital. O mercador, nesse novo espírito, seria um engenheiro do bem comum, e o economista, um administrador da justiça distributiva, submisso à lei natural e à autoridade de Deus.

Conclusão: do jogo à contemplação

Let Them Trade não é apenas um jogo: é um espelho técnico da modernidade, que encena silenciosamente a história do poder técnico-econômico que domina o Ocidente. Ele mostra, ainda que inconscientemente, o itinerário de uma civilização que passou:

  • do mercador construtor de pontes culturais,

  • ao engenheiro imperial que ordena o mundo com precisão cartesiana,

  • até o economista que governa os vivos como se fossem variáveis de um sistema abstrato.

Só ao recuperar o eixo espiritual da técnica — nos méritos de Cristo — é que poderemos transformar novamente o comércio, a engenharia e a economia em vias de santificação da vida e de serviço ao bem comum, e não em ídolos da eficiência desumanizada.

Referências bibliográficas (ABNT):

FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; LUCENA GIRALDO, Manuel. Un Imperio de Ingenieros: Una historia del poder técnico en la España imperial. Barcelona: Taurus, 2021.

ORTEGA Y GASSET, José. Meditação sobre a Técnica. Lisboa: Relógio D’Água, 1999.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995.

STRAY FAWN STUDIO. Let Them Trade [jogo eletrônico]. Suíça: Stray Fawn, 2024.

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