Resumo:
Este artigo propõe uma análise do vínculo filosófico e histórico entre Francesco Guicciardini (1483–1540), cronista político da Itália renascentista, e José Ortega y Gasset (1883–1955), filósofo espanhol da modernidade tardia. Embora separados por mais de três séculos, ambos convergem na compreensão do homem como ser situado, condicionado e responsável. Guicciardini, em sua Storia d’Italia, revela a complexidade das ações humanas na política concreta, enquanto Ortega, com sua fórmula “o homem é ele mesmo e sua circunstância”, oferece um quadro filosófico que dá releitura atualizada a esse mesmo princípio. O artigo explora essa afinidade e mostra como ambos podem contribuir para uma visão cristã e realista da história e da ação humana.
1. Introdução
Num tempo de colapsos institucionais e rupturas de sentido, é comum que os homens busquem refúgio em sistemas abstratos ou utopias ideológicas. No entanto, tanto Francesco Guicciardini quanto José Ortega y Gasset caminham em sentido contrário: propõem um mergulho na concretude da experiência humana. Em comum, compartilham o mesmo desconforto diante das generalizações filosóficas e das ilusões moralistas, preferindo o terreno movediço — porém real — da ação condicionada, das circunstâncias históricas e da responsabilidade individual.
2. Guicciardini: o político que escreveu a história
Francesco Guicciardini foi um diplomata, conselheiro papal e historiador. Viveu intensamente os conflitos do século XVI italiano: a desagregação das cidades-Estado, a invasão das potências estrangeiras e o declínio espiritual da Cristandade romana. Sua História da Itália é mais do que uma crônica política: é uma reflexão implícita sobre os limites da ação humana, sobre a complexidade das decisões políticas e sobre o papel do acaso (fortuna) na vida pública.
Guicciardini rejeita a tentativa de explicar os eventos por causas universais. Para ele, “nada é mais enganoso do que julgar a política com base em princípios absolutos”. Sua escrita revela um realismo radical, uma atenção quase cirúrgica aos detalhes particulares (il particulare), à prudência como virtude fundamental e à incapacidade humana de controlar plenamente os efeitos de suas ações.
3. Ortega y Gasset: o filósofo da circunstância
José Ortega y Gasset, em pleno século XX, sintetiza uma antropologia filosófica profundamente enraizada na experiência concreta. Sua máxima — “yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo” — aponta para a inseparabilidade entre o sujeito e seu mundo. Contra os idealismos e os racionalismos do século XIX, Ortega propõe a razão vital, isto é, uma razão que parte da vida, e não de abstrações.
A razão vital é uma razão situada, prática, histórica, tensionada pelo tempo e pela necessidade. O homem, para Ortega, é um projeto inacabado que só pode realizar-se compreendendo e enfrentando suas circunstâncias — com inteligência, adaptação e senso trágico.
4. A convergência entre Guicciardini e Ortega y Gasset
Apesar das diferenças de linguagem e de época, o diálogo entre Guicciardini e Ortega y Gasset revela afinidades notáveis:
| Elemento | Guicciardini | Ortega y Gasset |
|---|---|---|
| Condição humana | O homem é limitado por sua época, sua posição e seus interesses. | O homem é inseparável de sua circunstância histórica. |
| Rejeição do universalismo abstrato | A prudência rejeita máximas absolutas. | A razão vital rejeita idealismos desvinculados da vida. |
| Ênfase na experiência | Observação detalhada da política e dos fatos. | A filosofia deve partir da experiência concreta. |
| Ceticismo político | Desconfiança das reformas grandiosas e dos modelos rígidos. | Desconfiança das ideologias que ignoram a vida real. |
Ambos sustentam que agir é discernir, e discernir exige sensibilidade para o contexto. A política, para Guicciardini, e a vida, para Ortega, são tarefas trágicas que envolvem risco, prudência e adaptação constante.
5. O elo cristão: o tempo como kairos
Há ainda um terceiro plano possível nessa comparação: o plano teológico. Embora nem Guicciardini nem Ortega sejam teólogos sistemáticos, ambos reconhecem que há algo que transcende o homem, mas que o interroga nas entranhas do tempo.
Ortega, influenciado por Santo Agostinho e Pascal, vê o homem como ser histórico e dramático, chamado a realizar-se numa vocação singular. Guicciardini, mesmo cético, compreende que a história não é neutra: ela revela a corrupção dos costumes, a decadência das instituições religiosas e o esvaziamento da missão cristã da Itália.
Nesse sentido, ambos pressentem que o tempo histórico não é só cronos (sequência), mas kairos (tempo oportuno): o tempo da decisão moral, do juízo e da responsabilidade.
6. Conclusão: agir dentro do possível
A leitura conjunta de Guicciardini e Ortega y Gasset nos ajuda a recuperar uma antropologia da responsabilidade, que se afasta tanto dos idealismos utópicos quanto do niilismo cínico. Eles nos ensinam que:
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O homem não é senhor absoluto de si, mas também não é escravo do destino.
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A liberdade nasce do discernimento das circunstâncias, e da capacidade de agir dentro do possível.
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A prudência histórica e a razão vital são, em última instância, formas de sabedoria — uma sabedoria que prepara o terreno para a fé, o serviço e a verdadeira liberdade, nos méritos de Cristo.
Referências:
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GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia. Edição comentada por Sidney Alexander.
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ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote. Madrid: Revista de Occidente, 1914.
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ORTEGA Y GASSET, José. La rebelión de las masas. Madrid: Espasa-Calpe, 1930.
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BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Brasília: UNB, 1987.
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GILSON, Étienne. O Realismo Metafísico. São Paulo: É Realizações, 2011.
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