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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

Entre o sistema e o particular: as diferenças de pensamento entre Maquiavel e Francesco Guicciardini

Resumo: 

Embora amigos e contemporâneos, Nicolau Maquiavel e Francesco Guicciardini seguiram caminhos distintos na arte de pensar o poder. Maquiavel buscou compreender as leis gerais que regem a política e formulou um sistema dotado de lógica interna — como em O Príncipe ou nos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio. Guicciardini, por outro lado, evitou abstrações e preferiu o exame atento do particulare, dos eventos singulares e das ações condicionadas pelo tempo, espaço e interesse. Este artigo explora essa diferença fundamental, mostrando que Maquiavel é o arquétipo do político-fundador, enquanto Guicciardini é o crítico-prudente que vê na experiência concreta o único campo legítimo da ação.

1. Introdução

No coração do Renascimento italiano, dois nomes se destacam como espelhos e opostos: Nicolau Maquiavel (1469–1527) e Francesco Guicciardini (1483–1540). Ambos viveram os mesmos acontecimentos: as invasões estrangeiras, a crise das repúblicas italianas, a corrupção dos papas e o colapso da Cristandade. Ambos serviram ao Estado florentino e se corresponderam com estima mútua. No entanto, suas ideias políticas estão em tensão: onde Maquiavel constrói um sistema, Guicciardini suspeita das fórmulas; onde Maquiavel procura modelos universais, Guicciardini insiste no singular. 

2. Maquiavel: a política como ciência da fundação

Maquiavel é um teórico da virtù. Em O Príncipe, ele sustenta que o governante deve ser capaz de adaptar-se ao tempo, de manipular a fortuna, e de usar o bem e o mal segundo a necessidade do Estado. A virtude, para Maquiavel, é uma capacidade ativa e construtiva de impor ordem ao caos histórico.

Em suas Discorsi, propõe que a república deve ser pensada em termos de leis, instituições, ciclos históricos, controles mútuos. Cria uma ciência política baseada na observação da história antiga (sobretudo romana) e defende que os homens, sendo sempre os mesmos, podem ser compreendidos em padrões constantes.

Para Maquiavel:

  • A política tem leis próprias, distintas da moral comum.

  • A fundação de uma ordem política justifica o uso da violência inicial.

  • O político é um criador de formas, não apenas um administrador do existente.

3. Guicciardini: o ceticismo do homem prático

Guicciardini rejeita o ideal do político-fundador. Para ele, não há sistema que explique completamente a ação política. A política é feita de casos, de contingências, de forças contraditórias que escapam à previsão. O historiador deve observar, registrar e ponderar — não idealizar.

Sua Storia d’Italia e suas Ricordi politici e civili são exemplos de prudência empírica. Em vez de propor fórmulas, Guicciardini oferece advertências: os efeitos de uma ação quase nunca são os pretendidos; os homens raramente seguem os princípios que professam; o interesse pessoal governa o comportamento mesmo dos mais piedosos.

Para Guicciardini:

  • Cada situação exige uma resposta única: não há receita universal.

  • A política é uma arte de administração e prudência, não de fundação.

  • A moral e a política não são totalmente separadas: o cínico termina corrompido.

4. Principais diferenças

Tema Maquiavel Guicciardini
Relação com a moral Política autônoma em relação à moral tradicional. Ceticismo moral, mas sem ruptura com a moral cristã.
Natureza da política Arte de fundar e manter o poder. Arte de governar com base na experiência concreta.
Método Modelos universais e leis políticas. Estudo de casos singulares, sem generalizações.
Fortuna Deve ser dominada pela virtù. É imprevisível; prudência é o melhor escudo.
Estilo Aforismos sistemáticos, linguagem seca e dramática. Narrativa rica, analítica, cheia de nuances.

5. Um exemplo comum: César Bórgia

Ambos analisam a figura de César Bórgia. Maquiavel o exalta como o exemplo do príncipe ideal, que soube usar a força e a astúcia para consolidar poder — ainda que derrotado pela fortuna. Já Guicciardini o considera um exemplo da impossibilidade de controlar os efeitos da própria ação: César falhou porque não pôde prever a morte do papa Alexandre VI e o curso das alianças.

6. O peso da história: da fundação à decadência

Maquiavel escreve como um profeta da fundação republicana, desejando refundar Florença sobre bases romanas. Guicciardini escreve como testemunha da ruína, consciente de que não há mais energia cívica suficiente para recuperar a dignidade política. Seu olhar é mais melancólico, mais desiludido, e por isso mais atento aos sinais da decadência.

Ambos, porém, estão unidos por uma causa comum: o amor pela pátria e a repulsa ao domínio estrangeiro. Ainda que discordem sobre os meios, desejam o mesmo fim: a restauração da grandeza italiana.

7. Conclusão: sistema e sabedoria

Se Maquiavel nos ensina que há leis na política e que a virtude deve moldar o tempo, Guicciardini nos adverte que nenhuma lei substitui a prudência. A verdadeira sabedoria política talvez esteja em saber quando agir como Maquiavel — com ousadia e visão — e quando escutar Guicciardini — com prudência e resignação.

Ambos, a seu modo, servem à verdade e à liberdade política. Ambos, de maneira trágica, testemunham o colapso da Cristandade e a fragmentação da Itália. Mas é Guicciardini quem talvez mais se aproxime de uma filosofia cristã da história, ao reconhecer os limites do homem, o peso do tempo e a imprevisibilidade da vida.

Referências:

  • GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi politici e civili. Ed. Laterza.

  • GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia. Ed. Alexander.

  • MACHIAVELLI, Nicolò. Il Principe. Milão: Garzanti.

  • MACHIAVELLI, Nicolò. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio. Roma: Biblioteca Italiana.

  • CHABOD, Federico. Scritti su Machiavelli. Einaudi.

  • POCock, J.G.A. The Machiavellian Moment. Princeton University Press.

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