Nos últimos anos, o avanço da tecnologia e a crescente centralização do poder nas grandes plataformas digitais trouxeram à tona questões fundamentais sobre a liberdade de expressão e os direitos autorais. A crítica que, em 2007, defendi na minha monografia de conclusão de curso de Direito na Universidade Federal Fluminense, que questionava a inconstitucionalidade do ECAD (Escritório Central de Arrecadação e Distribuição), hoje se reflete com ainda mais força, na era do ECAD 2.0 — representado por sistemas automatizados como o Content ID do YouTube e outras tecnologias de monitoramento de conteúdo.
Esse “ECAD 2.0” não apenas ameaça a liberdade de criação e expressão, como também intensifica a censura econômica através de mecanismos que, ao invés de proteger os direitos autorais, acabam por restringir a disseminação livre de ideias, uma das bases essenciais para o funcionamento de uma verdadeira democracia.
O Contexto do ECAD
O ECAD, embora tenha sido criado com o objetivo de arrecadar direitos autorais em favor dos artistas, sempre foi alvo de críticas. A falta de transparência na distribuição dos valores arrecadados e a ausência de um sistema justo de cobrança prejudicaram especialmente os pequenos criadores, como rádios comunitárias, músicos independentes e artistas locais. Sua estrutura centralizada, quase monopolista, transformou-o em um órgão com enorme poder econômico, mas sem um controle real por parte de quem deveria ser beneficiado: os próprios artistas.
A inconstitucionalidade do ECAD, conforme defendido em minha pesquisa de 2007, estava em sua natureza não-democrática. Ele funcionava como uma imposição autoritária sobre o uso de obras musicais, sem uma análise sensível das diferentes realidades de uso, da criatividade no espaço público e, especialmente, da liberdade de expressão. O ECAD se tornou um exemplo de como a proteção de interesses corporativos pode, muitas vezes, restringir a liberdade artística e a inovação.
O ECAD 2.0: o caso do YouTube e a censura tecnológica
O que começou com um sistema de cobrança de direitos autorais no Brasil foi expandido, na era digital, para um fenômeno global, com o surgimento do YouTube Content ID e outras ferramentas automáticas de monetização e remoção de conteúdo. Essas tecnologias funcionam de maneira semelhante ao antigo ECAD, mas em uma escala muito mais ampla e global, afetando todos os tipos de conteúdo, não apenas o musical. A lógica por trás desses sistemas é a de proteger os direitos autorais, mas o que ocorre na prática é uma verdadeira censura econômica disfarçada.
Esses sistemas, que envolvem inteligência artificial e algoritmos automatizados, são extremamente imprecisos e podem gerar bloqueios injustos e desmonetizações automáticas, mesmo quando o conteúdo não infringe direitos autorais ou quando há um uso legítimo sob o princípio do uso justo. A consequência disso é um controle excessivo sobre o que pode ou não ser compartilhado no espaço digital, o que coloca em risco a diversidade de opiniões, o debate público e até a própria expressão artística.
A censura econômica: o impacto para criadores de conteúdo
A principal crítica ao ECAD 2.0 é o impacto econômico sobre os criadores de conteúdo. Criadores independentes de vídeos, músicos e artistas que, muitas vezes, vivem de suas produções digitais, são forçados a lidar com um sistema que desmonetiza ou remove seus vídeos sem uma avaliação humana ou imparcial. O uso de sistemas automatizados para “detectar” infrações de direitos autorais tem consequências devastadoras para aqueles que dependem da visibilidade e da monetização de seus conteúdos.
Mais ainda, a falta de transparência sobre os critérios usados para a análise de vídeos, a ausência de mecanismos adequados de contestação e a dificuldade de comunicação com as plataformas tornam essas ferramentas opacas e injustas. Por mais que existam argumentos de que isso protege o trabalho dos artistas, na prática, o que acontece é uma verdadeira imposição de censura econômica, onde grandes plataformas e corporations acabam por ditar o que pode ser falado e mostrado ao público.
A impossibilidade de uma “democracia relativa” em um cenário de censura tecnológica
O fenômeno do ECAD 2.0 ocorre em um contexto de democracia relativa — um regime onde as instituições ainda se proclamam democráticas, mas em que as liberdades fundamentais são progressivamente restringidas por mecanismos privados e tecnológicos. A liberdade de expressão, princípio central de qualquer sociedade democrática, se vê abalada pela imposição de regras privadas, que atuam de maneira mais impositiva e invisível do que qualquer órgão governamental. A censura tecnológica se torna uma ameaça silenciosa, difícil de ser combatida e invisível para o público, que muitas vezes sequer percebe os efeitos limitadores sobre sua própria liberdade de expressão.
conclusão: a necessidade de um novo marco regulatório
O surgimento do ECAD 2.0 é um reflexo da transformação das relações de poder no contexto digital, onde as grandes plataformas de internet, como YouTube, Facebook e outras, não só detêm um controle absoluto sobre o conteúdo, como também impondo regras próprias que dificultam a livre expressão de ideias.
A solução para esse problema não pode ser simplesmente a eliminação de direitos autorais ou o desregulamento total dessas plataformas, mas sim a criação de um novo marco regulatório que consiga equilibrar os direitos autorais com a preservação das liberdades digitais, especialmente a liberdade de expressão. A regulação deve ser feita de forma transparente, democrática e que não favoreça unicamente as grandes empresas, mas também proteja o direito dos indivíduos a se expressarem livremente na esfera pública digital.
A reflexão sobre o ECAD e sua versão 2.0 deve ser não apenas uma crítica às ferramentas de controle, mas uma convocação para repensarmos como as plataformas digitais devem se comportar em um mundo cada vez mais interconectado, onde a liberdade de expressão não pode ser o preço do lucro ou da concentração de poder. A democracia digital deve ser verdadeira, transparente e acessível a todos, sem que as ferramentas de monitoramento sejam usadas para censurar ou limitar as vozes mais alternativas.
Bibliografia
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DETTMANN, José Octavio Viégas. ECAD: uma análise constitucional. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Direito) – Universidade Federal Fluminense, 2007.
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LESSIG, Lawrence. Free Culture: The Nature and Future of Creativity. Penguin Press, 2004.
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O trabalho de Lawrence Lessig, um dos maiores defensores da liberdade de criação na era digital, questiona o papel das leis de direitos autorais na restrição à inovação cultural e à livre expressão. Em Free Culture, Lessig argumenta que os direitos autorais, se mal regulados, podem se transformar em um instrumento de censura econômica e obstrução da criatividade.
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LESSIG, Lawrence. Remix: Making Art and Commerce Thrive in the Hybrid Economy. Penguin Press, 2008.
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Neste livro, Lessig examina como as novas formas de cultura digital, como os remixes, podem ser prejudicadas pela legislação de direitos autorais excessivamente rígida, e como a censura tecnológica nas plataformas digitais, como as que encontramos no YouTube, pode inibir a liberdade de expressão e a inovação.
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BOYLE, James. The Public Domain: Enclosing the Commons of the Mind. Yale University Press, 2008.
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Boyle argumenta que, à medida que os direitos autorais são estendidos e ampliados, a cultura comum (o que ele chama de "domínio público") é restringida, limitando a capacidade de criação coletiva e a circulação livre de ideias. O conceito de encerramento do domínio público é crucial para entender como o ECAD 2.0 também acaba limitando o uso criativo de obras.
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CARR, Nicholas. The Shallows: What the Internet Is Doing to Our Brains. W.W. Norton & Company, 2010.
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Embora o foco principal deste livro seja sobre o impacto da internet na cognição humana, a reflexão de Carr sobre como a internet está mudando a forma como acessamos e consumimos cultura tem implicações importantes para a análise das plataformas digitais que controlam o conteúdo, como o ECAD 2.0.
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Teoria crítica dos direitos autorais: Um conjunto de textos que examina a legislação de direitos autorais não apenas do ponto de vista legal, mas também como um fenômeno cultural e político que pode prejudicar a livre expressão e a criatividade. Os estudos de autores como Yochai Benkler e Peter Jaszi também são relevantes para essa discussão.
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BENKLER, Yochai. The Wealth of Networks: How Social Production Transforms Markets and Freedom. Yale University Press, 2006.
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JASZI, Peter. Copyright and the Public Domain: A Legal History of American Ideas. University of Chicago Press, 2000.
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Jaszi oferece uma análise crítica de como a legislação de direitos autorais evoluiu nos Estados Unidos, e suas implicações para as liberdades de expressão e criação. A expansão do copyright, como ele discute, tem implicações para o controle que plataformas como o YouTube têm sobre a produção cultural.
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LESSIG, Lawrence. The Code: And Other Laws of Cyberspace. Basic Books, 1999.
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Este é um dos trabalhos fundadores na teoria da regulação da internet, onde Lessig argumenta que as leis do ciberespaço não são apenas definidas pela legislação, mas também pela arquitetura tecnológica. O controle sobre o que pode ou não ser publicado nas plataformas é uma forma de regulação invisível que afeta a liberdade de expressão.