Resumo:
Este artigo propõe um diálogo filosófico entre Nicolau Maquiavel (1469–1527), autor de O Príncipe, e José Ortega y Gasset (1883–1955), autor da célebre máxima “o homem é ele mesmo e sua circunstância”. Embora distantes no tempo e no estilo, ambos compartilham a convicção de que a política é uma arte que exige adaptação à realidade concreta. No entanto, divergem profundamente quanto ao papel da moral, da tradição e da técnica na formação do homem político. Enquanto Maquiavel pensa em termos de fundação e ruptura, Ortega pensa em termos de continuidade e superação. O primeiro opera como arquiteto do poder; o segundo como crítico da decadência moderna. Neste contraste está o valor filosófico do encontro entre ambos
1. Introdução: o realismo como ponto de partida
Maquiavel e Ortega y Gasset partem do mesmo princípio: é preciso olhar a realidade como ela é, não como gostaríamos que fosse. Ambos rejeitam idealismos descolados da experiência histórica, e se colocam no campo do realismo político e antropológico.
No entanto, as semelhanças param por aí. Maquiavel escreve como quem busca fundar uma nova ordem política a partir da ruína da Itália. Ortega escreve como quem tenta salvar uma cultura decadente da anomia espiritual e da mediocridade da “massa”. O primeiro é o teórico da virtù fundadora; o segundo, o profeta da razão vital e da consciência histórica.
2. Maquiavel: o arquiteto do poder
Maquiavel acredita que o poder pode e deve ser moldado por um homem excepcional, que saiba ler os sinais do tempo e impor ordem sobre o caos. Sua noção de virtù é ativa, criadora, modeladora. Em O Príncipe e nos Discorsi, defende que:
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O governante deve saber usar o bem e o mal segundo a necessidade;
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A moral comum não é suficiente para preservar o Estado;
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A política é o campo da ação estratégica e da manipulação da fortuna.
A história é, para Maquiavel, matéria-prima para a fundação política. Ele não quer apenas compreendê-la: quer usá-la para instruir o novo governante. O tempo exige ação. E o bom político é aquele que sabe o que deve ser feito, mesmo que isso custe sua alma.
3. Ortega y Gasset: o crítico da modernidade sem forma
Ortega, por sua vez, é herdeiro de uma crise de sentido, não de uma crise de poder. Ele escreve num contexto em que o Estado já está formado, mas o homem perdeu sua alma e seu projeto de vida superior. Sua máxima — yo soy yo y mi circunstancia — significa que o homem não é essência nem substância isolada, mas ser histórico, situado, condicionado e responsável.
Para Ortega:
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A política deve ser a expressão de uma cultura consciente de sua missão histórica;
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A decadência começa quando os homens renunciam à dificuldade e se acomodam;
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O papel da elite é cultivar um projeto comum de vida superior, sem o qual a democracia degenera em massa amorfa.
Ortega não propõe um príncipe, mas uma educação das consciências, um renascimento do espírito histórico. A tarefa é cultural antes de ser política.
4. Diferenças fundamentais
| Tema | Maquiavel | Ortega y Gasset |
|---|---|---|
| Fundamento da ação | Virtù política, eficaz, amoral | Circunstância histórica e razão vital |
| Relação com a moral | A política exige separação da moral tradicional | A política deve estar fundada em um projeto de vida superior |
| Relação com a tradição | Ruptura com o passado para refundar a ordem | Recuperação da tradição como continuidade criadora |
| Figura central | O Príncipe | O homem consciente de sua missão histórica |
| Função do pensamento | Ensinar como manter e conquistar o poder | Ensinar a viver com autenticidade e responsabilidade histórica |
5. Maquiavel como engenheiro; Ortega como arquiteto do espírito
Podemos dizer que Maquiavel pensa como um engenheiro político: diante do colapso da Itália, desenha os mecanismos necessários para erguer um novo edifício estatal. Ele admira Roma, mas quer adaptar sua lógica aos tempos modernos. É um realista com alma construtora.
Já Ortega é um arquiteto do espírito, preocupado com os alicerces invisíveis da civilização: cultura, responsabilidade, fidelidade à vocação. Ele denuncia a massificação da vida, o esquecimento da tradição e a perda da verticalidade espiritual. É um realista com alma trágica.
Ambos reconhecem que a realidade é resistência, mas divergem quanto ao caminho de superação:
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Maquiavel quer dobrar a realidade com astúcia.
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Ortega quer penetrar a realidade com compreensão.
6. Pontos de cruzamento
Há, ainda assim, cruzamentos:
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Ambos reconhecem a centralidade do tempo como fator da ação.
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Ambos rejeitam abstrações metafísicas estéreis.
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Ambos entendem que o mundo se transforma a partir do discernimento das circunstâncias.
A virtù de Maquiavel é, de certo modo, a coragem de agir na tempestade. A razão vital de Ortega é a sabedoria de saber quem se é dentro da tempestade.
7. Conclusão: entre o príncipe e o nobre
Se Maquiavel modela o arquétipo do príncipe fundador, Ortega esboça o perfil do nobre intelectual, alguém que vive sua missão como forma de fidelidade à verdade de sua circunstância. Ambos têm algo a ensinar:
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Maquiavel, que o poder é uma necessidade a ser compreendida e manejada com firmeza.
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Ortega, que o poder sem espírito gera apenas forma sem substância.
Talvez, nos méritos de Cristo, a síntese verdadeira venha de outro lugar: nem só a virtù que domina, nem só a razão que compreende — mas a sabedoria que serve, que se faz pequena diante da vontade divina e paciente diante da história.
Referências:
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MACHIAVELLI, Nicolò. Il Principe. Milão: Garzanti.
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MACHIAVELLI, Nicolò. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio.
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ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote. Madrid: Revista de Occidente, 1914.
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ORTEGA Y GASSET, José. La rebelión de las masas. Madrid: Espasa-Calpe, 1930.
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NELSON, Eric. The Hebrew Republic. Harvard University Press, 2010.
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RÉMOND, René. Introduction à l’histoire de notre temps. Seuil.