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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

O Construtor e O Crítico: um encontro entre Nicolau Maquiavel e José Ortega y Gasset

Resumo: 

Este artigo propõe um diálogo filosófico entre Nicolau Maquiavel (1469–1527), autor de O Príncipe, e José Ortega y Gasset (1883–1955), autor da célebre máxima “o homem é ele mesmo e sua circunstância”. Embora distantes no tempo e no estilo, ambos compartilham a convicção de que a política é uma arte que exige adaptação à realidade concreta. No entanto, divergem profundamente quanto ao papel da moral, da tradição e da técnica na formação do homem político. Enquanto Maquiavel pensa em termos de fundação e ruptura, Ortega pensa em termos de continuidade e superação. O primeiro opera como arquiteto do poder; o segundo como crítico da decadência moderna. Neste contraste está o valor filosófico do encontro entre ambos

1. Introdução: o realismo como ponto de partida

Maquiavel e Ortega y Gasset partem do mesmo princípio: é preciso olhar a realidade como ela é, não como gostaríamos que fosse. Ambos rejeitam idealismos descolados da experiência histórica, e se colocam no campo do realismo político e antropológico.

No entanto, as semelhanças param por aí. Maquiavel escreve como quem busca fundar uma nova ordem política a partir da ruína da Itália. Ortega escreve como quem tenta salvar uma cultura decadente da anomia espiritual e da mediocridade da “massa”. O primeiro é o teórico da virtù fundadora; o segundo, o profeta da razão vital e da consciência histórica.

2. Maquiavel: o arquiteto do poder

Maquiavel acredita que o poder pode e deve ser moldado por um homem excepcional, que saiba ler os sinais do tempo e impor ordem sobre o caos. Sua noção de virtù é ativa, criadora, modeladora. Em O Príncipe e nos Discorsi, defende que:

  • O governante deve saber usar o bem e o mal segundo a necessidade;

  • A moral comum não é suficiente para preservar o Estado;

  • A política é o campo da ação estratégica e da manipulação da fortuna.

A história é, para Maquiavel, matéria-prima para a fundação política. Ele não quer apenas compreendê-la: quer usá-la para instruir o novo governante. O tempo exige ação. E o bom político é aquele que sabe o que deve ser feito, mesmo que isso custe sua alma.

3. Ortega y Gasset: o crítico da modernidade sem forma

Ortega, por sua vez, é herdeiro de uma crise de sentido, não de uma crise de poder. Ele escreve num contexto em que o Estado já está formado, mas o homem perdeu sua alma e seu projeto de vida superior. Sua máxima — yo soy yo y mi circunstancia — significa que o homem não é essência nem substância isolada, mas ser histórico, situado, condicionado e responsável.

Para Ortega:

  • A política deve ser a expressão de uma cultura consciente de sua missão histórica;

  • A decadência começa quando os homens renunciam à dificuldade e se acomodam;

  • O papel da elite é cultivar um projeto comum de vida superior, sem o qual a democracia degenera em massa amorfa.

Ortega não propõe um príncipe, mas uma educação das consciências, um renascimento do espírito histórico. A tarefa é cultural antes de ser política.

4. Diferenças fundamentais

Tema Maquiavel Ortega y Gasset
Fundamento da ação Virtù política, eficaz, amoral Circunstância histórica e razão vital
Relação com a moral A política exige separação da moral tradicional A política deve estar fundada em um projeto de vida superior
Relação com a tradição Ruptura com o passado para refundar a ordem Recuperação da tradição como continuidade criadora
Figura central O Príncipe O homem consciente de sua missão histórica
Função do pensamento Ensinar como manter e conquistar o poder Ensinar a viver com autenticidade e responsabilidade histórica

5. Maquiavel como engenheiro; Ortega como arquiteto do espírito

Podemos dizer que Maquiavel pensa como um engenheiro político: diante do colapso da Itália, desenha os mecanismos necessários para erguer um novo edifício estatal. Ele admira Roma, mas quer adaptar sua lógica aos tempos modernos. É um realista com alma construtora.

Já Ortega é um arquiteto do espírito, preocupado com os alicerces invisíveis da civilização: cultura, responsabilidade, fidelidade à vocação. Ele denuncia a massificação da vida, o esquecimento da tradição e a perda da verticalidade espiritual. É um realista com alma trágica.

Ambos reconhecem que a realidade é resistência, mas divergem quanto ao caminho de superação:

  • Maquiavel quer dobrar a realidade com astúcia.

  • Ortega quer penetrar a realidade com compreensão.

6. Pontos de cruzamento

Há, ainda assim, cruzamentos:

  • Ambos reconhecem a centralidade do tempo como fator da ação.

  • Ambos rejeitam abstrações metafísicas estéreis.

  • Ambos entendem que o mundo se transforma a partir do discernimento das circunstâncias.

A virtù de Maquiavel é, de certo modo, a coragem de agir na tempestade. A razão vital de Ortega é a sabedoria de saber quem se é dentro da tempestade.

7. Conclusão: entre o príncipe e o nobre

Se Maquiavel modela o arquétipo do príncipe fundador, Ortega esboça o perfil do nobre intelectual, alguém que vive sua missão como forma de fidelidade à verdade de sua circunstância. Ambos têm algo a ensinar:

  • Maquiavel, que o poder é uma necessidade a ser compreendida e manejada com firmeza.

  • Ortega, que o poder sem espírito gera apenas forma sem substância.

Talvez, nos méritos de Cristo, a síntese verdadeira venha de outro lugar: nem só a virtù que domina, nem só a razão que compreende — mas a sabedoria que serve, que se faz pequena diante da vontade divina e paciente diante da história.

Referências:

  • MACHIAVELLI, Nicolò. Il Principe. Milão: Garzanti.

  • MACHIAVELLI, Nicolò. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio.

  • ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote. Madrid: Revista de Occidente, 1914.

  • ORTEGA Y GASSET, José. La rebelión de las masas. Madrid: Espasa-Calpe, 1930.

  • NELSON, Eric. The Hebrew Republic. Harvard University Press, 2010.

  • RÉMOND, René. Introduction à l’histoire de notre temps. Seuil.

Entre Roma e Florença: o tacitismo de Francesco Guicciardini

Resumo: 

Este artigo propõe uma leitura de Francesco Guicciardini (1483–1540) à luz da tradição do tacitismo, identificando nele um herdeiro moderno da consciência histórica de Públio Cornélio Tácito. Ambos observam a política a partir de uma posição trágica e desencantada, registrando com finura psicológica os efeitos do poder sobre os homens e as instituições. Guicciardini é, assim, o Tácito florentino: um analista da decadência da Cristandade e da degeneração das repúblicas italianas, que vê na história não um campo de ideais, mas de tensões entre ambição, acaso, prudência e corrupção.

1. Introdução: Tácito como mestre silencioso

Desde o Renascimento, Tácito voltou a ser lido como mestre da prudência política. Não só pela sua prosa condensada e incisiva, mas pela sua capacidade de descrever a decadência do império romano com olhos de quem conhecia o funcionamento íntimo do poder. Guicciardini, embora raramente o cite diretamente, compartilha com ele uma mesma perspectiva antropológica e histórica: o ceticismo diante da virtude pública e a convicção de que o poder tende a corromper, mesmo os melhores homens

2. A política como campo de forças corruptoras

Tácito escreve sob o jugo dos imperadores romanos, narrando a passagem de um regime republicano para um despotismo velado. Seu foco está na psicologia do poder, nas intrigas palacianas, no autoengano dos senadores, na hipocrisia do discurso público. A virtude romana degenera em ambição disfarçada, a liberdade se esvazia em bajulação, e o império se sustenta por uma combinação de terror e aparência.

Guicciardini vive sob a decomposição da Cristandade italiana, onde papas travam guerras como príncipes seculares, e as repúblicas não passam de sombras do passado. Em sua Storia d’Italia, descreve a política pontifícia com o mesmo realismo desencantado que Tácito usava para retratar Nero ou Tibério.

“O interesse próprio governa os homens mais do que qualquer virtude pública. Todos falam em nome do bem comum, mas poucos o servem.”
(Guicciardini, Ricordi)

3. A prudência como bússola na escuridão

Ambos os autores convergem na exaltação da prudência como virtude principal — não uma prudência moralista, mas uma prudência realista, fundada na experiência e na observação do comportamento humano.

Para Tácito, sobreviver sob imperadores instáveis exige dissimulação, silêncio oportuno e juízo correto do tempo político. Para Guicciardini, agir em um mundo instável como o da Itália renascentista exige adaptação, flexibilidade e recuo estratégico.

“Nunca vi coisa mais danosa que agir por princípios absolutos.”
(Guicciardini, Ricordi)

4. Diferenças de forma, afinidades de espírito

Elemento Tácito Guicciardini
Tempo histórico Império romano decadente Cristandade renascentista em crise
Forma literária Anais, biografia imperial, sátira indireta História narrativa, análise psicológica, aforismos
Estilo Lacônico, irônico, condensado Minucioso, argumentativo, analítico
Visão do poder O poder corrompe e exige máscara O poder é sempre pessoal, parcial e instável
Função da história Advertência moral indireta Instrução prática e prudente para o governante

Apesar das diferenças de forma — Tácito com seu estilo aforístico e cortante, Guicciardini com sua análise paciente e desdobrada — o que os une é o espírito cético e lúcido diante da natureza humana, a compreensão de que a história é menos um tribunal da razão do que um espelho das ambições. 

5. Um tacitismo cristão?

Tácito é pagão, Guicciardini é cristão (ainda que crítico da Igreja). No entanto, poderíamos falar de um tacitismo cristão em Guicciardini, pois sua análise do poder não é separada de uma consciência moral — ainda que esta moral não seja pregada, mas vivida no silêncio da prudência.

Se Maquiavel seculariza a política, Guicciardini não renuncia à ordem moral cristã — apenas admite que a política raramente se ajusta a ela. Sua história é, portanto, mais trágica, pois reconhece a distância entre o ideal divino e a ação humana.

6. Conclusão: O historiador da decadência

Guicciardini é o Tácito do seu tempo — um historiador da decadência, um observador frio da política, mas ao mesmo tempo movido por um amor silencioso à ordem que se perdeu. Sua obra não busca convencer com eloquência, mas alertar com discrição. Não grita como o profeta, mas murmura como o ancião que já viu tudo.

Tanto Tácito quanto Guicciardini compreendem que a história é feita por homens imperfeitos que agem sob circunstâncias instáveis. E que o verdadeiro sábio é aquele que, sem ilusão, segue fazendo o bem possível — mesmo sabendo que ele será provavelmente incompreendido.

Referências:

  • TACITO, Públio Cornélio. Anais. Ed. Loeb Classical Library.

  • GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia. Ed. Sidney Alexander.

  • GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi politici e civili. Ed. Laterza.

  • SKINNER, Quentin. The Foundations of Modern Political Thought. Cambridge University Press, 1978.

  • LÉVY, Léon. Tacite et le tacitisme. Paris: Vrin, 1959.

Entre o sistema e o particular: as diferenças de pensamento entre Maquiavel e Francesco Guicciardini

Resumo: 

Embora amigos e contemporâneos, Nicolau Maquiavel e Francesco Guicciardini seguiram caminhos distintos na arte de pensar o poder. Maquiavel buscou compreender as leis gerais que regem a política e formulou um sistema dotado de lógica interna — como em O Príncipe ou nos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio. Guicciardini, por outro lado, evitou abstrações e preferiu o exame atento do particulare, dos eventos singulares e das ações condicionadas pelo tempo, espaço e interesse. Este artigo explora essa diferença fundamental, mostrando que Maquiavel é o arquétipo do político-fundador, enquanto Guicciardini é o crítico-prudente que vê na experiência concreta o único campo legítimo da ação.

1. Introdução

No coração do Renascimento italiano, dois nomes se destacam como espelhos e opostos: Nicolau Maquiavel (1469–1527) e Francesco Guicciardini (1483–1540). Ambos viveram os mesmos acontecimentos: as invasões estrangeiras, a crise das repúblicas italianas, a corrupção dos papas e o colapso da Cristandade. Ambos serviram ao Estado florentino e se corresponderam com estima mútua. No entanto, suas ideias políticas estão em tensão: onde Maquiavel constrói um sistema, Guicciardini suspeita das fórmulas; onde Maquiavel procura modelos universais, Guicciardini insiste no singular. 

2. Maquiavel: a política como ciência da fundação

Maquiavel é um teórico da virtù. Em O Príncipe, ele sustenta que o governante deve ser capaz de adaptar-se ao tempo, de manipular a fortuna, e de usar o bem e o mal segundo a necessidade do Estado. A virtude, para Maquiavel, é uma capacidade ativa e construtiva de impor ordem ao caos histórico.

Em suas Discorsi, propõe que a república deve ser pensada em termos de leis, instituições, ciclos históricos, controles mútuos. Cria uma ciência política baseada na observação da história antiga (sobretudo romana) e defende que os homens, sendo sempre os mesmos, podem ser compreendidos em padrões constantes.

Para Maquiavel:

  • A política tem leis próprias, distintas da moral comum.

  • A fundação de uma ordem política justifica o uso da violência inicial.

  • O político é um criador de formas, não apenas um administrador do existente.

3. Guicciardini: o ceticismo do homem prático

Guicciardini rejeita o ideal do político-fundador. Para ele, não há sistema que explique completamente a ação política. A política é feita de casos, de contingências, de forças contraditórias que escapam à previsão. O historiador deve observar, registrar e ponderar — não idealizar.

Sua Storia d’Italia e suas Ricordi politici e civili são exemplos de prudência empírica. Em vez de propor fórmulas, Guicciardini oferece advertências: os efeitos de uma ação quase nunca são os pretendidos; os homens raramente seguem os princípios que professam; o interesse pessoal governa o comportamento mesmo dos mais piedosos.

Para Guicciardini:

  • Cada situação exige uma resposta única: não há receita universal.

  • A política é uma arte de administração e prudência, não de fundação.

  • A moral e a política não são totalmente separadas: o cínico termina corrompido.

4. Principais diferenças

Tema Maquiavel Guicciardini
Relação com a moral Política autônoma em relação à moral tradicional. Ceticismo moral, mas sem ruptura com a moral cristã.
Natureza da política Arte de fundar e manter o poder. Arte de governar com base na experiência concreta.
Método Modelos universais e leis políticas. Estudo de casos singulares, sem generalizações.
Fortuna Deve ser dominada pela virtù. É imprevisível; prudência é o melhor escudo.
Estilo Aforismos sistemáticos, linguagem seca e dramática. Narrativa rica, analítica, cheia de nuances.

5. Um exemplo comum: César Bórgia

Ambos analisam a figura de César Bórgia. Maquiavel o exalta como o exemplo do príncipe ideal, que soube usar a força e a astúcia para consolidar poder — ainda que derrotado pela fortuna. Já Guicciardini o considera um exemplo da impossibilidade de controlar os efeitos da própria ação: César falhou porque não pôde prever a morte do papa Alexandre VI e o curso das alianças.

6. O peso da história: da fundação à decadência

Maquiavel escreve como um profeta da fundação republicana, desejando refundar Florença sobre bases romanas. Guicciardini escreve como testemunha da ruína, consciente de que não há mais energia cívica suficiente para recuperar a dignidade política. Seu olhar é mais melancólico, mais desiludido, e por isso mais atento aos sinais da decadência.

Ambos, porém, estão unidos por uma causa comum: o amor pela pátria e a repulsa ao domínio estrangeiro. Ainda que discordem sobre os meios, desejam o mesmo fim: a restauração da grandeza italiana.

7. Conclusão: sistema e sabedoria

Se Maquiavel nos ensina que há leis na política e que a virtude deve moldar o tempo, Guicciardini nos adverte que nenhuma lei substitui a prudência. A verdadeira sabedoria política talvez esteja em saber quando agir como Maquiavel — com ousadia e visão — e quando escutar Guicciardini — com prudência e resignação.

Ambos, a seu modo, servem à verdade e à liberdade política. Ambos, de maneira trágica, testemunham o colapso da Cristandade e a fragmentação da Itália. Mas é Guicciardini quem talvez mais se aproxime de uma filosofia cristã da história, ao reconhecer os limites do homem, o peso do tempo e a imprevisibilidade da vida.

Referências:

  • GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi politici e civili. Ed. Laterza.

  • GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia. Ed. Alexander.

  • MACHIAVELLI, Nicolò. Il Principe. Milão: Garzanti.

  • MACHIAVELLI, Nicolò. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio. Roma: Biblioteca Italiana.

  • CHABOD, Federico. Scritti su Machiavelli. Einaudi.

  • POCock, J.G.A. The Machiavellian Moment. Princeton University Press.

Entre a razão vital e a prudência histórica: o encontro de Francesco Guicciardini com José Ortega y Gasset

 Resumo: 

Este artigo propõe uma análise do vínculo filosófico e histórico entre Francesco Guicciardini (1483–1540), cronista político da Itália renascentista, e José Ortega y Gasset (1883–1955), filósofo espanhol da modernidade tardia. Embora separados por mais de três séculos, ambos convergem na compreensão do homem como ser situado, condicionado e responsável. Guicciardini, em sua Storia d’Italia, revela a complexidade das ações humanas na política concreta, enquanto Ortega, com sua fórmula “o homem é ele mesmo e sua circunstância”, oferece um quadro filosófico que dá releitura atualizada a esse mesmo princípio. O artigo explora essa afinidade e mostra como ambos podem contribuir para uma visão cristã e realista da história e da ação humana.

1. Introdução

Num tempo de colapsos institucionais e rupturas de sentido, é comum que os homens busquem refúgio em sistemas abstratos ou utopias ideológicas. No entanto, tanto Francesco Guicciardini quanto José Ortega y Gasset caminham em sentido contrário: propõem um mergulho na concretude da experiência humana. Em comum, compartilham o mesmo desconforto diante das generalizações filosóficas e das ilusões moralistas, preferindo o terreno movediço — porém real — da ação condicionada, das circunstâncias históricas e da responsabilidade individual.

2. Guicciardini: o político que escreveu a história

Francesco Guicciardini foi um diplomata, conselheiro papal e historiador. Viveu intensamente os conflitos do século XVI italiano: a desagregação das cidades-Estado, a invasão das potências estrangeiras e o declínio espiritual da Cristandade romana. Sua História da Itália é mais do que uma crônica política: é uma reflexão implícita sobre os limites da ação humana, sobre a complexidade das decisões políticas e sobre o papel do acaso (fortuna) na vida pública.

Guicciardini rejeita a tentativa de explicar os eventos por causas universais. Para ele, “nada é mais enganoso do que julgar a política com base em princípios absolutos”. Sua escrita revela um realismo radical, uma atenção quase cirúrgica aos detalhes particulares (il particulare), à prudência como virtude fundamental e à incapacidade humana de controlar plenamente os efeitos de suas ações.

3. Ortega y Gasset: o filósofo da circunstância

José Ortega y Gasset, em pleno século XX, sintetiza uma antropologia filosófica profundamente enraizada na experiência concreta. Sua máxima — “yo soy yo y mi circunstancia, y si no la salvo a ella no me salvo yo” — aponta para a inseparabilidade entre o sujeito e seu mundo. Contra os idealismos e os racionalismos do século XIX, Ortega propõe a razão vital, isto é, uma razão que parte da vida, e não de abstrações.

A razão vital é uma razão situada, prática, histórica, tensionada pelo tempo e pela necessidade. O homem, para Ortega, é um projeto inacabado que só pode realizar-se compreendendo e enfrentando suas circunstâncias — com inteligência, adaptação e senso trágico.

4. A convergência entre Guicciardini e Ortega y Gasset

Apesar das diferenças de linguagem e de época, o diálogo entre Guicciardini e Ortega y Gasset revela afinidades notáveis:

Elemento Guicciardini Ortega y Gasset
Condição humana O homem é limitado por sua época, sua posição e seus interesses. O homem é inseparável de sua circunstância histórica.
Rejeição do universalismo abstrato A prudência rejeita máximas absolutas. A razão vital rejeita idealismos desvinculados da vida.
Ênfase na experiência Observação detalhada da política e dos fatos. A filosofia deve partir da experiência concreta.
Ceticismo político Desconfiança das reformas grandiosas e dos modelos rígidos. Desconfiança das ideologias que ignoram a vida real.

Ambos sustentam que agir é discernir, e discernir exige sensibilidade para o contexto. A política, para Guicciardini, e a vida, para Ortega, são tarefas trágicas que envolvem risco, prudência e adaptação constante.

5. O elo cristão: o tempo como kairos

Há ainda um terceiro plano possível nessa comparação: o plano teológico. Embora nem Guicciardini nem Ortega sejam teólogos sistemáticos, ambos reconhecem que há algo que transcende o homem, mas que o interroga nas entranhas do tempo.

Ortega, influenciado por Santo Agostinho e Pascal, vê o homem como ser histórico e dramático, chamado a realizar-se numa vocação singular. Guicciardini, mesmo cético, compreende que a história não é neutra: ela revela a corrupção dos costumes, a decadência das instituições religiosas e o esvaziamento da missão cristã da Itália.

Nesse sentido, ambos pressentem que o tempo histórico não é só cronos (sequência), mas kairos (tempo oportuno): o tempo da decisão moral, do juízo e da responsabilidade.

6. Conclusão: agir dentro do possível

A leitura conjunta de Guicciardini e Ortega y Gasset nos ajuda a recuperar uma antropologia da responsabilidade, que se afasta tanto dos idealismos utópicos quanto do niilismo cínico. Eles nos ensinam que:

  • O homem não é senhor absoluto de si, mas também não é escravo do destino.

  • A liberdade nasce do discernimento das circunstâncias, e da capacidade de agir dentro do possível.

  • A prudência histórica e a razão vital são, em última instância, formas de sabedoria — uma sabedoria que prepara o terreno para a fé, o serviço e a verdadeira liberdade, nos méritos de Cristo.

Referências:

  • GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia. Edição comentada por Sidney Alexander.

  • ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote. Madrid: Revista de Occidente, 1914.

  • ORTEGA Y GASSET, José. La rebelión de las masas. Madrid: Espasa-Calpe, 1930.

  • BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. Brasília: UNB, 1987.

  • GILSON, Étienne. O Realismo Metafísico. São Paulo: É Realizações, 2011.

Let Them Trade como alegoria da tecnocivilização moderna: a transmutação do mercador em economista, através da figura do engenheiro imperial

Introdução

O jogo Let Them Trade simula uma rede de trocas comerciais e desenvolvimento urbano em um ambiente inspirado nos sistemas mercantis e logísticos europeus. À primeira vista, ele parece ser apenas um tycoon game — um passatempo econômico para gerir comércio. No entanto, se lido à luz de Meditação sobre a Técnica de José Ortega y Gasset e de Un Imperio de Ingenieros, de Felipe Fernández-Armesto e Manuel Lucena Giraldo, ele se revela como um microcosmo jogável da modernidade tecnocrática: o cenário onde o mercador se torna engenheiro, o engenheiro vira economista, e o mundo se transforma em sistema técnico global.

1. O mercador como engenheiro do valor

No alvorecer da modernidade europeia, o mercador surge como figura central da expansão e ordenação do mundo. Seu papel ultrapassa a simples intermediação de bens: ele domina o tempo e o espaço por meio do cálculo, da negociação e do risco. O mercador transforma a geografia em geopolítica, pois cada rota comercial é também uma rota de influência.

Nesse sentido, o mercador é o arquétipo do engenheiro: ele constrói pontes entre mundos, cria conexões, antecipa fluxos. O comércio torna-se forma técnica de domínio, e o domínio, por sua vez, requer uma visão estratégica que antecipa a própria engenharia estatal moderna.

Em Let Them Trade, o jogador encarna esse papel: começa por decidir o que trocar, onde investir, mas logo precisa intervir na malha de infraestrutura, desenvolvendo entrepostos, rotas e sistemas — e isso o aproxima da figura do engenheiro imperial.

2. O engenheiro como mediador do império

Felipe Fernández-Armesto e Manuel Lucena Giraldo, em Un Imperio de Ingenieros, mostram que o verdadeiro arquiteto do império moderno não é o soldado nem o rei, mas o engenheiro: aquele que transforma um projeto político em estrutura física, racional, técnica e permanente. A engenharia da Monarquia Católica Ibérica não era apenas militar, mas civil, cultural e espiritual. Cada estrada aberta, cada cidade planejada, cada fortaleza construída participava de uma missão de ordenação do mundo à imagem da Cristandade.

No jogo, o engenheiro aparece não como um avatar, mas como a lógica interna do sistema: não basta acumular riquezas; é preciso racionalizar o crescimento. O progresso só ocorre se as rotas forem eficazes, os fluxos otimizados, os nós comerciais interligados. O jogo exige, implicitamente, que o jogador torne-se um planejador tecnocrata do império comercial.

3. O economista como abstração da engenharia

À medida que o mundo moderno avança, a figura do engenheiro dá lugar ao economista — o técnico do valor abstrato. Se o engenheiro desenha pontes, o economista desenha gráficos; se o primeiro traça estradas, o segundo calcula curvas de oferta e demanda.

A economia política nasce como uma tentativa de teorizar e racionalizar os fluxos da vida social à imagem das ciências naturais. O valor se desvincula do objeto, a riqueza se torna capital, o trabalho vira fator de produção. O economista, então, não apenas governa a técnica, mas governa a própria vida social por meio da técnica.

Em Let Them Trade, essa transição se dá quando o jogador deixa de "atuar" no mundo concreto e passa a administrar um sistema abstrato de recursos e dados. A realidade desaparece sob os números. O jogo é vencido não por quem mais interage com o mundo, mas por quem melhor entende a lógica invisível do sistema.

4. Técnica, império e biopolítica

José Ortega y Gasset adverte, em sua Meditação sobre a Técnica, que quando a técnica se autonomiza e deixa de servir à vida, ela se converte em ameaça: barbárie do especialista, redução do mundo à função.

Michel Foucault descreve esse processo como biopolítica: a técnica deixa de servir à vida para governar a vida. A economia moderna é a nova teologia, e o economista, seu sacerdote. As decisões políticas são subordinadas a cálculos técnicos — e a vida é mensurada em termos de custo, eficiência, risco.

Giorgio Agamben, por sua vez, mostra que esse governo técnico da vida culmina em um estado de exceção permanente, onde o homo sacer — o homem excluído da ordem jurídica — é gerado como produto inevitável do império técnico-econômico.

Let Them Trade, nesse contexto, revela-se como alegoria da civilização que transformou o mundo em máquina. E ao fazer isso de maneira lúdica, suaviza o impacto moral da crítica — mas não a neutraliza.

5. Retomando nos méritos de Cristo: o valor como ordenação

Ao longo dessa genealogia — do mercador ao engenheiro e deste ao economista —, vemos a progressiva separação da técnica em relação ao espírito que lhe dava sentido. Para o cristianismo tradicional, a técnica era instrumento de ordenação do mundo conforme o Logos. O valor das coisas não vinha do mercado, mas do seu lugar na Criação.

Olavo de Carvalho advertia que o homem moderno se perdeu ao fazer do saber técnico um substituto da sabedoria, e do cálculo uma religião. O mundo perdeu sua orientação metafísica — e a economia tornou-se o novo absoluto.

Um retorno à ordem exige, então, a reconfiguração do papel do mercador como servo de Cristo, e não como agente autônomo do capital. O mercador, nesse novo espírito, seria um engenheiro do bem comum, e o economista, um administrador da justiça distributiva, submisso à lei natural e à autoridade de Deus.

Conclusão: do jogo à contemplação

Let Them Trade não é apenas um jogo: é um espelho técnico da modernidade, que encena silenciosamente a história do poder técnico-econômico que domina o Ocidente. Ele mostra, ainda que inconscientemente, o itinerário de uma civilização que passou:

  • do mercador construtor de pontes culturais,

  • ao engenheiro imperial que ordena o mundo com precisão cartesiana,

  • até o economista que governa os vivos como se fossem variáveis de um sistema abstrato.

Só ao recuperar o eixo espiritual da técnica — nos méritos de Cristo — é que poderemos transformar novamente o comércio, a engenharia e a economia em vias de santificação da vida e de serviço ao bem comum, e não em ídolos da eficiência desumanizada.

Referências bibliográficas (ABNT):

FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe; LUCENA GIRALDO, Manuel. Un Imperio de Ingenieros: Una historia del poder técnico en la España imperial. Barcelona: Taurus, 2021.

ORTEGA Y GASSET, José. Meditação sobre a Técnica. Lisboa: Relógio D’Água, 1999.

FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população. São Paulo: Martins Fontes, 2008.

AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002.

CARVALHO, Olavo de. O Jardim das Aflições. Rio de Janeiro: Record, 1995.

STRAY FAWN STUDIO. Let Them Trade [jogo eletrônico]. Suíça: Stray Fawn, 2024.

O mercador como príncipe: quando Let Them Trade encontra Machiavelli The Prince

Resumo: 

Este artigo propõe a fusão conceitual entre dois jogos de estratégia e simulação econômica/política: Let Them Trade (2024) e Machiavelli The Prince (1995). Embora separados por quase trinta anos, ambos expressam, cada um a seu modo, a figura histórica do mercador como arquétipo político. Partindo da análise de suas mecânicas centrais, propõe-se o esboço de um novo simulador civilizacional, onde o poder comercial conduz à autoridade política e à fundação de novos impérios. O artigo é também uma meditação sobre o papel do comércio na transição da Cristandade medieval para a modernidade ocidental.

Palavras-chave: estratégia histórica, comércio medieval, Maquiavel, jogos de simulação, poder civilizacional.

1. Introdução: da rota ao trono

A civilização ocidental não foi construída apenas por imperadores e exércitos. Por trás dos tratados, das reformas e das cruzadas, operava silenciosamente uma elite comercial que movia o mundo com moedas, navios, alianças e informações. De Veneza a Lübeck, de Lisboa a Gdansk, o mercador medieval e renascentista não apenas financiava a política — ele era política. Como mostra a experiência de jogos como Let Them Trade e Machiavelli The Prince, o comércio é, ao mesmo tempo, ordem técnica, intriga diplomática e horizonte de poder.

Este artigo propõe a fusão simbólica desses dois jogos como forma de visualizar a ascensão do mercador-príncipe, figura histórica cuja importância permanece negligenciada, mas que representa o elo entre a espiritualidade da Cristandade e o pragmatismo da modernidade.

2. A ordem logística em Let Them Trade

Lançado em 2024 pela Spaceflower Studio, Let Them Trade é um jogo de estratégia e simulação econômica ambientado na Europa medieval. Nele, o jogador controla uma casa mercantil que constrói rotas comerciais, investe em infraestrutura logística e estabelece uma rede de distribuição entre cidades e feiras.

Seu diferencial está na ênfase na logística automática e no fluxo entrepostos, onde o jogador observa uma rede dinâmica de consumo, produção e redistribuição. Não há guerra direta, apenas competição econômica^1^. A cidade é uma entidade viva: cresce, adoece, floresce e decai conforme o abastecimento, os impostos e a estabilidade geral.

O jogo atualiza, em termos gráficos e de interface, a tradição de The Patrician e Hanse, reforçando uma ética objetiva da técnica, como propôs Ortega y Gasset em sua célebre Meditação sobre a Técnica, ao dizer que "a técnica é o esforço para economizar esforço"^2^.

3. A ética da astúcia em Machiavelli The Prince

Lançado em 1995 pela MicroProse, Machiavelli The Prince é um jogo ambientado na Itália renascentista. O jogador é o líder de uma casa florentina ou veneziana que busca ascender na política local por meios lícitos ou ilícitos. Subornos, assassinatos, alianças matrimoniais e manipulação religiosa são ferramentas disponíveis ao jogador.

Ao contrário de Let Them Trade, onde a racionalidade econômica é o eixo da ação, aqui o jogo gira em torno da moral política maquiavélica, inspirada diretamente na obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel. Como escreveu o autor florentino, "é necessário ao príncipe, se quiser manter-se, aprender a poder não ser bom"^3^.

Machiavell antecipava muitos elementos que seriam popularizados anos depois em Crusader Kings, Europa Universalis e Colonization. Sua riqueza moral, contudo, permanece insuperada: o jogador aprende, na prática, que toda ação política é uma negociação entre aparência e essência, entre o útil e o justo.

4. Uma fusão conceitual: The Merchant Prince – From Republic to Empire

A proposta é imaginar um jogo que una as qualidades logísticas de Let Them Trade com as decisões morais e políticas de Machiavell The Prince. O resultado seria um simulador completo da transição da economia medieval para o sistema colonial e capitalista moderno. A estrutura do jogo seguiria três atos:

Ato I – República Comercial (1350–1450)

  • Construção de rotas mercantis e entrepostos;

  • Influência nos conselhos urbanos e guildas;

  • Combate à peste, inflação, carestia.

Ato II – Intriga e Poder (1450–1500)

  • Manipulação de cardeais e eleições papais;

  • Controle sobre cidades e repúblicas;

  • Uso de diplomacia secreta e propaganda.

Ato III – Novo Mundo (1500–1600)

  • Obtenção de cartas régias para colonização;

  • Fundação de entrepostos ultramarinos;

  • Transição para estruturas imperiais;

  • Possível modo expansionista em estilo Colonization.

Essa fusão não apenas seria lúdica, mas também pedagógica, pois ensinaria o papel fundamental do comércio como fermento político e cultural da Cristandade tardia.

5. O Princeps Mercator: figura civilizacional

O "príncipe-mercador" proposto neste artigo não é uma figura fantasiosa, mas histórica. Homens como Cosimo de’ Medici, Jakob Fugger, Francisco de Almeida e Bartolomeu de Gusmão — ainda que em funções distintas — exemplificam o elo entre comércio, técnica, poder político e fé.

Como escreveu Felipe Fernández-Armesto, "a civilização é a capacidade de transformar o ambiente segundo valores humanos"^4^. E, como mostra Josiah Royce, a lealdade verdadeira exige sacrifício por uma causa duradoura^5^. O príncipe-mercador é fiel a essa causa: a criação de ordem e abundância onde havia caos e carência, a custo de sua própria honra.

6. Considerações finais

Ao imaginar um jogo que une Let Them Trade e Machiavell The Prince, vislumbramos uma pedagogia civilizacional que vai além do entretenimento. Trata-se de um retorno àquilo que o mundo contemporâneo esqueceu: que o poder não nasce apenas do canhão ou da cruz, mas também do contrato e da moeda, instrumentos legítimos da criação de ordem.

O mercador, quando virtuoso, não é apenas um acumulador de riquezas. Ele é o arquiteto invisível da paz entre os povos, o agente silencioso da civilização.

Referências Bibliográficas 

  1. SPACEFLOWER. Let Them Trade [jogo eletrônico]. Steam: Spaceflower Studio, 2024.

  2. ORTEGA Y GASSET, José. Meditações sobre a técnica. Lisboa: Relógio D’Água, 1998.

  3. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. São Paulo: Penguin & Companhia das Letras, 2010.

  4. FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe. Civilization: Culture, Ambition, and the Transformation of Nature. New York: Scribner, 2001.

  5. ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.

  6. MICROPROSE. Machiavelli The Prince [jogo eletrônico]. PC-DOS: MicroProse Software, 1995. Disponível em: https://www.gog.com.

  7. MEIER, Sid. Colonization [jogo eletrônico]. PC-DOS: MicroProse Software, 1994. 

A engenharia como expressão civilizacional: entre a ordem cristã e a mentalidade revolucionária

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre a função civilizacional da engenharia quando integrada à ordem transcendente, em contraste com sua deformação técnica e política sob a mentalidade revolucionária moderna. Com base na tradição romano-cristã e nos fundamentos do Direito Natural, argumenta-se que a técnica deve estar subordinada à ética e à verdade. Quando ocorre o divórcio entre ambas, surgem formas de engenharia social e deformações profissionais como o lobismo jurídico. Autores como Romano Guardini, Christopher Dawson, Alasdair MacIntyre e outros são mobilizados para mostrar essa ruptura entre técnica e transcendência.

1. Introdução

A engenharia, enquanto saber técnico aplicado, pode ser expressão tanto de uma civilização ordenada ao bem comum quanto de uma sociedade dominada pela instrumentalização da razão. A distinção entre essas duas ordens — uma conectada à transcendência e outra à ideologia revolucionária — define não apenas o uso da técnica, mas o destino dos povos. Tal distinção encontra ecos nos grandes debates filosóficos sobre ética, civilização e verdade.

2. Técnica e Civilização na Tradição Romano-Cristã

A herança romana, integrada à Revelação cristã, conferiu à técnica um lugar na estrutura da civilização. A engenharia de estradas, aquedutos, pontes e edifícios não era apenas uma aplicação prática, mas um reflexo do ordo que permeava o cosmos. Como afirmava Christopher Dawson, a verdadeira civilização se define não apenas por seu nível técnico, mas por sua fidelidade a um princípio espiritual comum (DAWSON, 2015).

Nessa tradição, a técnica participa de uma ordem sacramental: cada ponte construída é também um símbolo de união entre mundos, uma metáfora do acesso à transcendência. A engenharia, assim como o Direito e a Arquitetura, eram expressões práticas de uma realidade moral e espiritual que antecede o indivíduo.

O Direito Romano, que moldou o Ocidente, não era apenas um sistema de normas, mas uma tentativa de espelhar no mundo visível uma ordem superior e natural. Nesse sentido, o engenheiro e o jurista participam da mesma missão: tornar visível a ordem do ser no mundo das ações humanas.

3. A técnica no horizonte da revolução

A modernidade, especialmente sob a influência da Reforma e da Revolução Francesa, operou uma mutação: rompeu a subordinação da técnica à moral. Romano Guardini, em O Fim da Era Moderna, denuncia a emergência de uma razão puramente instrumental, que se volta contra o próprio homem (GUARDINI, 1998). A técnica, agora autônoma, tende à hipertrofia: desenvolve-se por si, sem freios éticos.

Essa mutação tem raízes germânicas no sentido amplo, pois foi no seio das culturas reformadas, industrializadas e racionalistas da Europa do Norte que a técnica se autonomizou. Em vez de servir à civilização, ela passa a reformulá-la: nasce a engenharia social.

Alasdair MacIntyre, em After Virtue, explica como a modernidade substituiu a ética das virtudes por um sistema técnico de gestão. O mundo passa a ser compreendido como um conjunto de problemas a serem resolvidos por especialistas — engenheiros, juristas, planejadores. Mas, sem um fim último compartilhado, toda profissão degenera (MACINTYRE, 2007).

4. O jurista como engenheiro moral: a degradação do Direito

No mundo moderno, o jurista deixa de ser um sacerdote da justiça e se transforma em lobista. Ele já não defende o direito natural, mas interesses negociáveis. Como os engenheiros sociais, ele participa da reengenharia da sociedade, ajustando leis conforme pressões de grupos de poder.

A semelhança entre o engenheiro, o arquiteto e o advogado está em que todos deveriam ser intérpretes do real, conforme uma ordem anterior à vontade humana. Contudo, na ausência de um fundamento metafísico, todos eles se tornam operadores de sistemas — e sistemas manipuláveis.

Nesse sentido, a figura do lobista jurídico é emblemática: trata-se de um operador técnico da norma, sem qualquer conexão com o bem, a justiça ou a verdade. Um engenheiro do poder, cujo saber é neutro e cuja moral é flexível.

5. A crítica de Ortega y Gasset e a morte do homem técnico

Em Meditações sobre a Técnica, José Ortega y Gasset já antevia o problema: quando a técnica perde sua conexão com o ser, ela deixa de ser humana. O técnico moderno já não se interroga sobre o "por quê", mas apenas sobre o "como". Ele se torna funcional, não contemplativo.

Ortega observa que a técnica se hipertrofia quando perde seu lugar na escala dos valores. O técnico moderno vive num mundo fechado, repetitivo, incapaz de imaginar uma finalidade última. A especialização o aliena da totalidade, e sua ação se torna cega. Quando essa cegueira é aplicada ao Direito, temos a morte da justiça; quando aplicada à política, temos a tirania.

6. Conclusão: o retorno ao fundamento

A crise da técnica, do direito e da arquitetura civilizacional é, no fundo, uma crise de fundamento metafísico. Toda profissão perde seu sentido quando não se orienta a uma verdade que transcende o indivíduo. Como advertia Christopher Dawson, sem um princípio religioso comum, toda civilização decai.

O engenheiro deve retornar à sua vocação originária: ser um servidor da ordem do ser. O jurista, igualmente, deve advogar pela justiça e não por interesses. E o arquiteto, mais do que desenhar formas, deve encarnar valores.

Como nos ensina a tradição romana-cristã, a técnica deve ser serva da verdade, e não senhora da vontade. O futuro da civilização depende da restauração dessa hierarquia.

Referências Bibliográficas

  • DAWSON, Christopher. A Criação de uma Civilização Cristã. São Paulo: Ecclesiae, 2015.

  • GUARDINI, Romano. O Fim da Era Moderna. São Paulo: É Realizações, 1998.

  • MACINTYRE, Alasdair. After Virtue. Notre Dame: University of Notre Dame Press, 2007.

  • ORTEGA Y GASSET, José. Meditações sobre a Técnica e Outros Ensaios. Lisboa: Relógio d’Água, 1993.

  • ROYCE, Josiah. The Philosophy of Loyalty. New York: Macmillan, 1908.

  • FERNÁNDEZ-ARMESTO, Felipe & LUCENA GIRALDO, Manuel. Un Imperio de Ingenieros. Madrid: Taurus, 2012.