“A tradição que falsifica o passado destrói o futuro.”
— Gustavo Corção, A Descoberta do Outro
“O encobrimento do outro é o mito fundacional da modernidade.”
— Enrique Dussel, 1492: O Encobrimento do Outro
“Muitas das tradições que parecem ou são apresentadas como antigas são frequentemente bastante recentes em sua origem e, às vezes, inventadas.”
— Eric Hobsbawm, A Invenção das Tradições
Introdução
Servir a Cristo em terras distantes, como foi vislumbrado no Milagre de Ourique¹, é descobrir o outro na verdade — não manipulá-lo para finalidades ideológicas. A missão cristã não se funda em uma política de identidade ou em um projeto histórico-ficcional, mas na obediência ao Todo que vem de Deus. A crise moderna, no entanto, transforma essa vocação em sua negação: ela promove o encobrimento do outro, sustentado por comunidades imaginadas, tradições inventadas e o horror metafísico à verdade transcendental.
A fusão entre os diagnósticos de Enrique Dussel, Benedict Anderson, Eric Hobsbawm, Leszek Kołakowski e Gustavo Corção nos permite compreender a profundidade do fenômeno. O Brasil — mais do que outros países latino-americanos — tornou-se laboratório desse encobrimento, onde mitos modernos substituem a história verdadeira e onde a evangelização é substituída pela ideologização.
Este artigo examina, portanto, a articulação entre o encobrimento do outro, a fabricação de comunidades e a invenção de tradições, como expressão última do horror metafísico moderno à realidade e à missão cristã.
1. A missão como descoberta do outro
Gustavo Corção denuncia, em A Descoberta do Outro, o fechamento do homem moderno em si mesmo, como causa da solidão e da ideologia. Descobrir o outro é aceitar que a verdade está fora de nós, que há uma ordem no ser que nos precede e a qual devemos obedecer. Isso é o oposto do que faz a mentalidade moderna, que instrumentaliza o outro para validar o eu:
“O próximo não é aquele que eu invento, mas aquele que Deus me revela. E só quem é revelado pode ser amado de verdade.” (CORÇÃO, 1965, p. 35).
A missão cristã, especialmente em terras distantes, realiza essa descoberta. Não é conquista, mas revelação. Não é colonização cultural, mas participação no Todo.
2. O Encobrimento do Outro e a Ideologia do Mesmo
Para Enrique Dussel, a modernidade não começou com Descartes, mas com Colombo: foi em 1492 que a Europa, ao encontrar o outro, recusou reconhecê-lo como sujeito, optando por reconfigurá-lo como objeto de dominação:
“O indígena é calado, empurrado para o silêncio. Sua presença é reconfigurada como ausência.” (DUSSEL, 1992, p. 44).
Esse processo não é apenas político. É ontológico: trata-se de um projeto de apagamento da alteridade, sustentado por uma negação da verdade como transcendência. Dizer que o Brasil “colonizou Portugal” — como aparece em alguns discursos acadêmicos atuais — é efeito desse encobrimento, que inverte o eixo da história em nome de mitos revolucionários.
3. Horror Metafísico: O Solo Espiritual do Encobrimento
Leszek Kołakowski, em Horror Metafísico, alerta para o desespero moderno diante da ordem metafísica. Recusar a verdade como transcendência implica eliminar toda alteridade real. O outro só é tolerável se for funcional — e, se possível, fabricado. O encobrimento é, pois, a aplicação cultural desse horror espiritual:
“O homem moderno considera a dependência em relação ao ser como servidão, e não como verdade.” (KOŁAKOWSKI, 2004, p. 17).
A comunidade cristã, que nasce da comunhão no Logos, é substituída por comunidades ideológicas que compartilham narrativas — não verdades. A verdade é sacrificada em nome da conveniência.
4. Comunidades Imaginadas e Tradições Inventadas
A construção moderna de nações se dá, como mostrou Benedict Anderson, pela formação de comunidades imaginadas: realidades simbólicas, fundadas em mitos comuns, e não em vínculos reais de comunhão. Eric Hobsbawm, por sua vez, mostra como esses mitos são reforçados por tradições inventadas:
“A invenção de tradições é um processo central na consolidação dos Estados-nação modernos.” (HOBSBAWM, 1984, p. 7).
No Brasil, essa fabricação toma contornos grotescos, como os “quilombos contemporâneos”, sustentados por narrativas étnico-ideológicas, muitas vezes sem correspondência histórica.² É um tipo de engenharia social que se alimenta do encobrimento e da mentira, e que visa instalar uma nova ordem moral e cultural a partir da ruptura com a tradição verdadeira.
5. A Nova Ordem Mundial e o Aggiornamento como Instrumentos do Encobrimento
O aggiornamento, entendido como abertura ao “espírito do tempo”, torna-se perigoso quando se separa do Espírito de Cristo. A adaptação à Nova Ordem Mundial — que reconfigura a missão em nome da tolerância — termina por encobrir o Cristo e desfigurar a própria Igreja.
Em vez de revelar o outro à luz da verdade, fabricam-se novas tradições que o mantêm na obscuridade. Essa operação cultural resulta em senzalas ideológicas e identidades enlatadas — projetos de “salvação” que substituem a verdadeira Redenção.
Conclusão
Servir a Cristo em terras distantes é tarefa de amor e de verdade. Não há como amar o outro sem revelá-lo. Não há como revelá-lo sem reconhecer a verdade que nos ultrapassa. O horror metafísico moderno, ao negar essa verdade, fabrica tradições, comunidades e histórias falsas que encobrem — em vez de descobrir — o outro.
Restaurar a missão cristã é restaurar a coragem metafísica, é redescobrir o outro como mistério e dom, não como alvo de engenharia social. Só assim haverá verdadeira comunhão e verdadeira liberdade.
Notas de rodapé
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O Milagre de Ourique (1139) marca simbolicamente a origem espiritual de Portugal como nação consagrada a Cristo Rei, e funda a missão ultramarina como extensão da fé e da cultura cristã.
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Conforme apontado por estudiosos como José Carlos Reis e Ricardo Vélez Rodríguez, grande parte das "comunidades quilombolas" reconhecidas oficialmente não possuem comprovação histórica de origem escrava, sendo muitas vezes produto de ativismo político.
Referências:
ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: Reflexões sobre a Origem e a Difusão do Nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
CORÇÃO, Gustavo. A Descoberta do Outro. Rio de Janeiro: Agir, 1965.
DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro – A Origem do Mito da Modernidade. Petrópolis: Vozes, 1992.
HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (orgs.). A Invenção das Tradições. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
KOŁAKOWSKI, Leszek. Horror Metafísico. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
SILVA, Marina. Confusão e Ordem: Políticas Identitárias no Brasil Contemporâneo. Salvador: Editora Bahiana, 2020.
REIS, José Carlos. A Invenção do Brasil Moderno: Identidade Nacional e Ideal Civilizacional. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.