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sexta-feira, 1 de agosto de 2025

A hipótese de uma Flórida sem imposto sobre vendas: implicações geopolíticas e econômicas para o comércio triangular Brasil–EUA–Espanha

Resumo

Este artigo propõe uma reflexão sobre os possíveis impactos geopolíticos, logísticos e comerciais da adoção de uma política de no sales tax no estado da Flórida, à semelhança do estado de Delaware. A análise considera a posição estratégica da Flórida entre o Brasil e a Europa (especialmente a Espanha), seus portos e aeroportos internacionais, sua infraestrutura turística e o impacto do sistema europeu de reembolso do IVA (detaxe) sobre o consumo global. A conclusão sugere que a Flórida, isenta de imposto sobre vendas, poderia superar Delaware como paraíso de compras e se transformar em uma zona franca natural de alcance intercontinental

1. Introdução

A competitividade fiscal entre os estados norte-americanos é um fenômeno bem documentado, sobretudo nas políticas de impostos sobre consumo e atração de empresas. Delaware é reconhecido como um paraíso fiscal interno nos Estados Unidos, sobretudo por não cobrar sales tax e por sua legislação societária favorável. Porém, este artigo propõe uma hipótese alternativa: e se a Flórida adotasse o mesmo modelo fiscal de isenção de imposto sobre vendas?

Dadas suas vantagens geográficas e logísticas, a Flórida não apenas replicaria o sucesso de Delaware, mas potencialmente o superaria em escala global, transformando-se em um entreposto comercial estratégico entre a América Latina, os Estados Unidos e a Europa ibérica.

2. O modelo de Delaware

Delaware mantém uma política de isenção de imposto sobre vendas (sales tax) que o torna um destino atrativo para empresas e consumidores. Está próximo a dois grandes aeroportos internacionais — Philadelphia e Washington — e conta com um ambiente jurídico favorável à constituição de empresas. Apesar disso, Delaware não é um estado com apelo turístico ou comercial internacional e sua atratividade limita-se, em grande parte, ao mercado interno americano¹.

3. A localização estratégica da Flórida

A Flórida, por outro lado, possui:

  • Proximidade geográfica com o Brasil e outros países latino-americanos;

  • Conectividade aérea com as principais capitais europeias, como Madri, Lisboa e Barcelona;

  • Portos de grande capacidade (PortMiami, Port Everglades) com infraestrutura de zonas francas;

  • Uma indústria de turismo altamente desenvolvida, com infraestrutura comercial voltada ao consumo global².

Segundo o Florida Department of Economic Opportunity, o estado já lidera em volume de turistas internacionais nos EUA, mesmo cobrando sales tax³. A eliminação deste imposto poderia amplificar esse papel, criando um efeito centrípeto de consumo global.

4. O sistema europeu de detaxe como vantagem adicional

Na União Europeia, o sistema de reembolso do imposto sobre valor agregado (IVA), conhecido como detaxe, permite que turistas extracomunitários solicitem o reembolso do imposto pago em compras realizadas durante sua estada. Em países como a Espanha, o Tax-Free Shopping pode ser solicitado independentemente do valor da compra, o que representa um forte incentivo ao turismo de compras⁴.

Se a Flórida se tornasse um estado com no sales tax, os consumidores brasileiros, por exemplo, poderiam utilizar a triangulação entre Espanha e EUA para obter benefícios fiscais de ambos os lados: compras sem IVA na Europa, e compras sem sales tax na Flórida.

5. Implicações econômicas e políticas

A adoção de uma política de no sales tax pela Flórida teria diversas implicações:

  • Boom turístico e comercial: a Flórida já é um destino preferencial para turistas sul-americanos. Com o fim do sales tax, a vantagem se consolidaria ainda mais.

  • Aumento da competitividade logística: com portos e aeroportos em funcionamento pleno, a Flórida se transformaria em uma zona franca natural.

  • Concorrência fiscal interestadual: os demais estados americanos provavelmente veriam essa medida como uma ameaça à arrecadação interna.

  • Descentralização do consumo internacional: consumidores passariam a evitar destinos tradicionais como Nova Iorque ou Califórnia, optando por Miami e Orlando.

6. Considerações finais

A hipótese de uma Flórida sem sales tax não é apenas um exercício teórico, mas uma proposição com alto grau de impacto econômico, político e geopolítico. Em um mundo cada vez mais interconectado por cadeias logísticas, fluxos migratórios e incentivos fiscais globais, o estado da Flórida apresenta todas as condições para se transformar em um hub trinacional de consumo e comércio internacional entre o Brasil, os Estados Unidos e a Espanha.

Notas de rodapé

  1. COSTA, Edmar. Estados fiscais: a competição tributária entre as unidades federativas americanas. São Paulo: Lumen Juris, 2020, p. 97.

  2. PORTMIAMI. Trade & Logistics Report 2023. Miami: PortMiami Authority, 2023.

  3. FLORIDA DEPARTMENT OF ECONOMIC OPPORTUNITY. Annual Tourism Data Report. Tallahassee, FL: FDEO, 2023.

  4. AGENCIA TRIBUTARIA ESPAÑOLA. VAT Refund for Non-EU Tourists. Madrid: Ministerio de Hacienda, 2023. Disponível em: https://www.agenciatributaria.es.

Referências bibliográficas

COSTA, Edmar. Estados fiscais: a competição tributária entre as unidades federativas americanas. São Paulo: Lumen Juris, 2020.

FLORIDA DEPARTMENT OF ECONOMIC OPPORTUNITY. Annual Tourism Data Report. Tallahassee: FDEO, 2023.

PORTMIAMI. Trade & Logistics Report 2023. Miami: PortMiami Authority, 2023.

AGENCIA TRIBUTARIA ESPAÑOLA. VAT Refund for Non-EU Tourists. Madrid: Ministerio de Hacienda, 2023. Disponível em: https://www.agenciatributaria.es.

Diálogo imaginário: João Cabral de Melo Neto encontra Felipe Fernández-Armesto e Manuel Lucena Giraldo

 Cena: 

À beira do Rio Capibaribe, em um entardecer seco, três homens se encontram. Um poeta magro de olhar cortante; dois historiadores de olhos atentos e espírito enciclopédico. Ao fundo, uma ponte antiga feita por engenheiros portugueses.

João Cabral de Melo Neto:
Não gosto da palavra “inspiração”.
Prefiro o barro. A cal. O suor.
A poesia nasce da pedra
que sangra quando a mão insiste.
O engenheiro e o poeta: irmãos.

Felipe Fernández-Armesto:
Concordo, Cabral. A civilização nasce
quando o homem ousa domar a natureza —
não submeter-se, mas transformar.
A cultura é um gesto de ambição:
dar à terra o que ela não quer dar.

Manuel Lucena Giraldo:
Exatamente.
Na Espanha imperial, isso se chamou “engenharia”.
Era construir onde não havia nada:
pontes, cidades, impérios de pedra,
redes de conhecimento e controle.
O engenheiro não sonha: executa.

João Cabral:
O sertanejo também.
Não sonha: executa.
A seca é uma engenharia ao contrário:
ela esculpe a ausência.
E o homem do Nordeste,
com sua enxada, é poeta de chão.

Fernández-Armesto:
Essa luta é o próprio motor da civilização.
No meu livro, chamo isso de “ambição”:
não apenas viver, mas moldar o mundo.
A civilização não se mede por monumentos,
mas pela persistência em tornar o impossível — possível.

Lucena Giraldo:
E o engenheiro ibérico foi isso:
um artífice da teologia terrestre.
O império era evangelho em pedra,
fé em forma de estrada.
Espanha e Portugal plantaram Deus
com régua, esquadro e pólvora.

João Cabral:
Mas eu digo:
no Nordeste, o engenheiro falha.
Ali, o rio não obedece
e o sol castiga o cálculo.
Por isso, o poeta é mais útil:
com palavras, se rega um pouco
o que o concreto não alcança.

Fernández-Armesto:
Por isso estudo culturas —
não como estéticas, mas como engenharias de sobrevivência.
Tua poesia constrói uma civilização no avesso:
uma arte que não consola, mas denuncia
e, ao denunciar, também constrói.

Lucena Giraldo:
Em Un Imperio de Ingenieros, dizemos isso:
os impérios não foram apenas espada —
foram papel, água, madeira, cálculo.
E tu, Cabral, és engenheiro do verbo.
Não desenhas pontes: desenhas silêncios.

João Cabral:
Porque o silêncio também é engenharia.
Entre duas palavras, o vazio
pode sustentar um mundo.

Comentário final

Este diálogo evoca um encontro entre o espírito técnico dos engenheiros imperiais e o espírito árido e preciso da poesia cabralina. Enquanto Civilizations e Un Imperio de Ingenieros abordam a civilização como esforço técnico de moldar a natureza, João Cabral vê esse esforço sob o ângulo da terra ressecada e da vida difícil — onde a poesia se torna uma técnica de sobrevivência e a civilização não é luxo, mas resistência. Assim, o que une os três autores é a ideia de que a cultura, longe de ser mero ornamento, é sempre trabalho — árduo, calculado, implacável.

Se quiser, posso expandir isso como ensaio, aula, peça teatral, poema coral ou artigo acadêmico com citações em ABNT. Deseja que prossigamos nesse caminho?

Entre Platão, Maquiavel e Popper: engenharia social e os fundamentos filosóficos da Nova Ordem Mundial

Resumo

Este artigo investiga a genealogia da engenharia social moderna a partir das críticas de Karl Popper a Platão em A sociedade aberta e seus inimigos. Argumenta-se que Popper, sob o pretexto de defender a liberdade e combater o totalitarismo, absorve a técnica política de Maquiavel, esvaziando a política de seus fundamentos éticos e transcendentes. Essa transição prepara o terreno para a aplicação global de práticas de controle social, tal como promovido por George Soros, configurando uma engenharia social tecnocrática, secularizante e funcional à dissolução da ordem cristã.

Palavras-chave: Platão; Maquiavel; Popper; engenharia social; sociedade aberta; George Soros; Nova Ordem Mundial.

1. Introdução

Karl Popper, em sua obra seminal A sociedade aberta e seus inimigos, acusa Platão de ser o fundador do totalitarismo por propor uma organização social rígida e hierarquizada, subordinada ao ideal metafísico do Bem1. No entanto, essa crítica encobre um projeto alternativo de engenharia social gradualista, profundamente influenciado pela racionalidade instrumental de Maquiavel. Neste artigo, propõe-se que Popper substitui o ideal platônico por uma tecnocracia liberal secularizada, cujo efeito histórico pode ser rastreado nas práticas contemporâneas de reorganização social promovidas por atores como George Soros.

2. Platão e a engenharia social filosófica

Em A República, Platão propõe uma estrutura social tripartida — governantes, guardiões e produtores — que reflete a harmonia da alma humana quando submetida à ideia do Bem2. Essa engenharia social parte de um princípio metafísico: a justiça consiste na ordenação correta das partes da alma e da pólis, guiada por aqueles que contemplam o inteligível.

A proposta platônica é normativamente fechada, mas ontologicamente fundada: busca modelar a cidade à imagem da alma justa, submetendo a política à filosofia e esta à verdade. Popper interpreta esse projeto como antidemocrático e imobilista3, ignorando que a estabilidade visada por Platão repousa na conformidade com um princípio transcendente — algo que falta tanto à modernidade maquiavélica quanto ao liberalismo popperiano.

3. Maquiavel e a técnica do possível

Maquiavel, ao contrário de Platão, separa a política da moral tradicional e propõe uma nova racionalidade do poder, baseada na virtù, na fortuna e na arte de governar pelas aparências4. A verdade deixa de ser critério; o êxito político passa a justificar os meios.

Em O Príncipe, o governante deve “saber bem usar a besta e o homem”5; em Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, a república deve estruturar-se em torno da luta entre nobres e povo. Maquiavel é o pai da engenharia social pragmática, que instrumentaliza a religião, o medo e o conflito em nome da estabilidade e da eficácia.

4. Popper: entre a crítica ao totalitarismo e o tecnocratismo liberal

Embora Popper se posicione como crítico do historicismo e do totalitarismo, sua defesa da “engenharia social fragmentária” traduz-se em um modelo de racionalidade tecnocrática, que substitui princípios éticos por procedimentos experimentais6.

“A única política racional é a de pequenas reformas graduais, testáveis e reversíveis.” — Popper7

Essa racionalidade — oriunda da virada maquiavélica — transforma a política em administração científica de erros, promovendo a substituição do Bem comum por critérios técnicos de eficiência e controle. Assim, sob a aparência da modéstia epistemológica, Popper perpetua o mesmo impulso de dominação social que critica em Platão — mas sem o lastro metafísico da justiça.

5. George Soros e a aplicação prática da sociedade aberta

George Soros, discípulo confesso de Karl Popper, assume a missão de realizar concretamente os princípios da sociedade aberta. Sua fundação (Open Society Foundations) atua em centenas de países promovendo mudanças legislativas, sociais e culturais sob a bandeira dos “direitos humanos” e da “democracia global”.

“A sociedade aberta é aquela onde ninguém detém a verdade definitiva.” — Soros8

Essa negação da verdade absoluta é o solo fértil para uma engenharia social que reprograma os comportamentos humanos por meio de ONGs, mídia, tribunais internacionais e campanhas educativas, dissolvendo os vínculos naturais da cultura, da religião e da soberania. A sociedade aberta torna-se, assim, o nome liberal para uma nova forma de tirania técnica, onde tudo é permitido exceto a verdade.

6. Crítica católica: verdade como fundamento da liberdade

A tradição católica sempre sustentou que a liberdade só é verdadeira quando orientada pela verdade9. Ao recusar todo fundamento absoluto, Popper e Soros inauguram uma “liberdade sem forma”, vulnerável à manipulação dos meios técnicos.

A doutrina social da Igreja insiste na dignidade da pessoa humana fundada na lei natural e na soberania de Deus sobre os povos10. Qualquer engenharia social que ignore esse fundamento prepara o terreno para uma nova forma de escravidão — agora, não mais econômica ou política, mas espiritual e cultural.

7. Conclusão

A crítica de Popper a Platão revela-se, no fim, uma manobra para legitimar uma nova forma de engenharia social — não filosófica, mas técnica. Se Platão busca organizar a cidade à imagem do Bem, Popper — como Maquiavel — prefere moldá-la segundo os interesses de uma razão instrumental e fluida. George Soros herda e aplica esse projeto como um grande engenheiro social global, realizando, sob a máscara da tolerância e da democracia, uma verdadeira reorganização da ordem mundial.

A alternativa cristã, por sua vez, propõe uma liberdade fundada na verdade e no Bem, única capaz de proteger o homem da manipulação e da servidão moderna.

Notas de Rodapé

  1. POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. Milton Amado. São Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1980. v. 1.

  2. PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.

  3. POPPER, Karl. Op. cit., p. 141-165.

  4. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

  5. Idem, p. 92-93.

  6. POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos, v. 2, p. 189-203.

  7. Idem, v. 1, p. 147.

  8. SOROS, George. The Age of Fallibility: Consequences of the War on Terror. New York: PublicAffairs, 2006.

  9. RATZINGER, Joseph. Verdade e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2005.

  10. BENTO XVI. Caritas in Veritate. Vaticano, 2009. Ver também: LEÃO XIII. Rerum Novarum, 1891.

Bibliografia

  • BENTO XVI. Caritas in Veritate. Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2009.

  • LEÃO XIII. Rerum Novarum. Vaticano, 1891.

  • MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

  • MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Martins Fontes, 2009.

  • PLATÃO. A República. Trad. Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2006.

  • POPPER, Karl. A sociedade aberta e seus inimigos. Trad. Milton Amado. São Paulo: Itatiaia/EdUSP, 1980. 2 vols.

  • RATZINGER, Joseph. Verdade e Tolerância. São Paulo: Loyola, 2005.

  • SOROS, George. The Age of Fallibility: Consequences of the War on Terror. New York: PublicAffairs, 2006.

Maquiavel como pai da política fundacional ou a arte de tornar o impossível possível através da engenharia social

Resumo

Este artigo propõe uma leitura de Nicolau Maquiavel como o pai da política fundacional, entendendo-a como a origem da política moderna enquanto prática de engenharia social. Ao rejeitar as estruturas fixas do pensamento político medieval e propor uma visão dinâmica e técnica do poder, Maquiavel inaugura um paradigma em que o político é capaz de fundar novas ordens e transformar utopias em realidades possíveis. Essa leitura se relaciona diretamente com noções modernas de “comunidades imaginadas” e com a própria lógica das revoluções políticas posteriores. Ao final, sugere-se que Maquiavel seja não apenas o precursor do realismo político, mas também o engenheiro originário da modernidade política.

1. Introdução

Na tradição clássica, a política era vista como arte da prudência, voltada à manutenção de uma ordem estabelecida — natural ou divina. Com Nicolau Maquiavel (1469–1527), essa concepção sofre uma ruptura radical. Ao invés de preservar, o político passa a ser convocado a fundar. Neste artigo, argumenta-se que Maquiavel deve ser compreendido como pai da política fundacional, entendida aqui como a arte de criar novas ordens sociais mediante a manipulação de forças históricas, símbolos e instituições. Esta prática o aproxima do conceito moderno de engenharia social e inaugura a possibilidade de converter projetos utópicos em realidades concretas.

2. A política como fundação

Em O Príncipe, Maquiavel apresenta a figura do fundador como alguém dotado de virtù, isto é, força, sagacidade e domínio da ocasião (kairós) para transformar a realidade histórica. Como ele escreve:

“A fundação de um Estado novo pressupõe a destruição do anterior.”¹

Em lugar da ordem eterna e estável proposta pela escolástica medieval, Maquiavel apresenta o mundo como instável, sujeito ao movimento cíclico da fortuna, que deve ser dominada pelo agente político. Em sua análise dos fundadores (Rômulo, Moisés, Teseu), está implícita a admiração por aqueles que souberam forjar comunidades estáveis do caos inicial. Essa fundação não é espontânea nem orgânica: ela requer arte, violência, cálculo.

3. Da prudência à engenharia social

Ao conferir à política esse caráter fundacional e técnico, Maquiavel antecipa a noção moderna de engenharia social. Tal termo, em sua origem, refere-se à aplicação de técnicas sociológicas e psicológicas para organizar sociedades de acordo com fins desejados². Contudo, já em Maquiavel vemos a estruturação do político como agente que modela o social com base em princípios utilitários, e não transcendentais.

A célebre recomendação maquiavélica de que “os fins justificam os meios” não é um convite ao cinismo, mas ao realismo: é a consciência de que a política é regida por sua própria lógica, e não pela moralidade privada³. O governante eficaz deve saber, portanto, manipular as aparências, os afetos coletivos, os ritos públicos — elementos centrais também à engenharia social moderna. 

4. Da utopia à comunidade imaginada

Embora Maquiavel não seja um utopista nos moldes de Thomas More, ele fornece as ferramentas para que utopias se tornem possíveis. Ao retirar da política sua base metafísica e inseri-la no campo da técnica e da vontade, ele permite que projetos antes considerados fantasiosos (como o Estado-nação, a república igualitária, a sociedade sem classes) possam ser implementados mediante ação estratégica.

Esse deslocamento do impossível ao possível encontra eco na obra de Benedict Anderson, Imagined Communities, ao afirmar que as nações modernas são comunidades imaginadas — criações culturais e políticas que se tornam reais por meio de instituições e narrativas compartilhadas⁴. Maquiavel antecipa esse processo ao propor que os fundadores moldam a realidade não como ela é, mas como deve parecer ser, para que funcione.

5. A política como técnica: o legado de Maquiavel

O impacto de Maquiavel é visível ao longo da modernidade. Hobbes, Rousseau, Napoleão, Lenin — todos, de algum modo, seguem a linha do “fundador de ordens”. Mesmo os regimes democráticos liberais empregam técnicas de engenharia social (educação pública, propaganda, arquitetura institucional) que estão em consonância com o princípio maquiavélico de que o poder precisa dar forma ao social.

Como afirma Isaiah Berlin:

“Foi Maquiavel quem primeiramente concebeu o Estado como uma obra de arte do homem, e não de Deus.”⁵

É exatamente neste ponto que Maquiavel deixa de ser apenas o pensador do poder e passa a ser o engenheiro do possível — aquele que ensinou como se transforma o mundo não com princípios eternos, mas com ações eficazes.

Conclusão

Ler Maquiavel como pai da política fundacional e precursor da engenharia social permite compreender a transição da política como ética à política como técnica. Ele nos mostra que a construção de novas realidades sociais — mesmo utópicas — é possível quando se abandona a ingenuidade moral e se adota a ação estratégica. Seu legado permanece vivo em todos os projetos que buscam transformar a sociedade a partir de uma visão, por mais imaginária que ela seja. Nesse sentido, Maquiavel é o autor que melhor soube converter o impossível em possível — não por fé, mas por arte.

Referências Bibliográficas

  1. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Trad. Lívio Xavier. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Os Pensadores).

  2. POPPER, Karl R. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos. Trad. Milton Amado. São Paulo: Itatiaia, 1974.

  3. SKINNER, Quentin. Maquiavel. Trad. Maria Stela Gonçalves. São Paulo: UNESP, 1996.

  4. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a expansão do nacionalismo. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

  5. BERLIN, Isaiah. O Pensamento Político de Maquiavel. In: O ouriço e a raposa. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.

Notas de Rodapé

  1. MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Trad. Maria Lúcia Homem. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 41.

  2. Cf. POPPER, Karl. A Sociedade Aberta e Seus Inimigos, op. cit., vol. 1, especialmente o capítulo sobre Platão como precursor da engenharia social utópica.

  3. MAQUIAVEL, O Príncipe, op. cit., cap. XV–XVIII.

  4. ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas, op. cit., p. 14–15.

  5. BERLIN, Isaiah. O Pensamento Político de Maquiavel, op. cit., p. 168.

O Construtor e O Crítico: um encontro entre Nicolau Maquiavel e José Ortega y Gasset

Resumo: 

Este artigo propõe um diálogo filosófico entre Nicolau Maquiavel (1469–1527), autor de O Príncipe, e José Ortega y Gasset (1883–1955), autor da célebre máxima “o homem é ele mesmo e sua circunstância”. Embora distantes no tempo e no estilo, ambos compartilham a convicção de que a política é uma arte que exige adaptação à realidade concreta. No entanto, divergem profundamente quanto ao papel da moral, da tradição e da técnica na formação do homem político. Enquanto Maquiavel pensa em termos de fundação e ruptura, Ortega pensa em termos de continuidade e superação. O primeiro opera como arquiteto do poder; o segundo como crítico da decadência moderna. Neste contraste está o valor filosófico do encontro entre ambos

1. Introdução: o realismo como ponto de partida

Maquiavel e Ortega y Gasset partem do mesmo princípio: é preciso olhar a realidade como ela é, não como gostaríamos que fosse. Ambos rejeitam idealismos descolados da experiência histórica, e se colocam no campo do realismo político e antropológico.

No entanto, as semelhanças param por aí. Maquiavel escreve como quem busca fundar uma nova ordem política a partir da ruína da Itália. Ortega escreve como quem tenta salvar uma cultura decadente da anomia espiritual e da mediocridade da “massa”. O primeiro é o teórico da virtù fundadora; o segundo, o profeta da razão vital e da consciência histórica.

2. Maquiavel: o arquiteto do poder

Maquiavel acredita que o poder pode e deve ser moldado por um homem excepcional, que saiba ler os sinais do tempo e impor ordem sobre o caos. Sua noção de virtù é ativa, criadora, modeladora. Em O Príncipe e nos Discorsi, defende que:

  • O governante deve saber usar o bem e o mal segundo a necessidade;

  • A moral comum não é suficiente para preservar o Estado;

  • A política é o campo da ação estratégica e da manipulação da fortuna.

A história é, para Maquiavel, matéria-prima para a fundação política. Ele não quer apenas compreendê-la: quer usá-la para instruir o novo governante. O tempo exige ação. E o bom político é aquele que sabe o que deve ser feito, mesmo que isso custe sua alma.

3. Ortega y Gasset: o crítico da modernidade sem forma

Ortega, por sua vez, é herdeiro de uma crise de sentido, não de uma crise de poder. Ele escreve num contexto em que o Estado já está formado, mas o homem perdeu sua alma e seu projeto de vida superior. Sua máxima — yo soy yo y mi circunstancia — significa que o homem não é essência nem substância isolada, mas ser histórico, situado, condicionado e responsável.

Para Ortega:

  • A política deve ser a expressão de uma cultura consciente de sua missão histórica;

  • A decadência começa quando os homens renunciam à dificuldade e se acomodam;

  • O papel da elite é cultivar um projeto comum de vida superior, sem o qual a democracia degenera em massa amorfa.

Ortega não propõe um príncipe, mas uma educação das consciências, um renascimento do espírito histórico. A tarefa é cultural antes de ser política.

4. Diferenças fundamentais

Tema Maquiavel Ortega y Gasset
Fundamento da ação Virtù política, eficaz, amoral Circunstância histórica e razão vital
Relação com a moral A política exige separação da moral tradicional A política deve estar fundada em um projeto de vida superior
Relação com a tradição Ruptura com o passado para refundar a ordem Recuperação da tradição como continuidade criadora
Figura central O Príncipe O homem consciente de sua missão histórica
Função do pensamento Ensinar como manter e conquistar o poder Ensinar a viver com autenticidade e responsabilidade histórica

5. Maquiavel como engenheiro; Ortega como arquiteto do espírito

Podemos dizer que Maquiavel pensa como um engenheiro político: diante do colapso da Itália, desenha os mecanismos necessários para erguer um novo edifício estatal. Ele admira Roma, mas quer adaptar sua lógica aos tempos modernos. É um realista com alma construtora.

Já Ortega é um arquiteto do espírito, preocupado com os alicerces invisíveis da civilização: cultura, responsabilidade, fidelidade à vocação. Ele denuncia a massificação da vida, o esquecimento da tradição e a perda da verticalidade espiritual. É um realista com alma trágica.

Ambos reconhecem que a realidade é resistência, mas divergem quanto ao caminho de superação:

  • Maquiavel quer dobrar a realidade com astúcia.

  • Ortega quer penetrar a realidade com compreensão.

6. Pontos de cruzamento

Há, ainda assim, cruzamentos:

  • Ambos reconhecem a centralidade do tempo como fator da ação.

  • Ambos rejeitam abstrações metafísicas estéreis.

  • Ambos entendem que o mundo se transforma a partir do discernimento das circunstâncias.

A virtù de Maquiavel é, de certo modo, a coragem de agir na tempestade. A razão vital de Ortega é a sabedoria de saber quem se é dentro da tempestade.

7. Conclusão: entre o príncipe e o nobre

Se Maquiavel modela o arquétipo do príncipe fundador, Ortega esboça o perfil do nobre intelectual, alguém que vive sua missão como forma de fidelidade à verdade de sua circunstância. Ambos têm algo a ensinar:

  • Maquiavel, que o poder é uma necessidade a ser compreendida e manejada com firmeza.

  • Ortega, que o poder sem espírito gera apenas forma sem substância.

Talvez, nos méritos de Cristo, a síntese verdadeira venha de outro lugar: nem só a virtù que domina, nem só a razão que compreende — mas a sabedoria que serve, que se faz pequena diante da vontade divina e paciente diante da história.

Referências:

  • MACHIAVELLI, Nicolò. Il Principe. Milão: Garzanti.

  • MACHIAVELLI, Nicolò. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio.

  • ORTEGA Y GASSET, José. Meditaciones del Quijote. Madrid: Revista de Occidente, 1914.

  • ORTEGA Y GASSET, José. La rebelión de las masas. Madrid: Espasa-Calpe, 1930.

  • NELSON, Eric. The Hebrew Republic. Harvard University Press, 2010.

  • RÉMOND, René. Introduction à l’histoire de notre temps. Seuil.

Entre Roma e Florença: o tacitismo de Francesco Guicciardini

Resumo: 

Este artigo propõe uma leitura de Francesco Guicciardini (1483–1540) à luz da tradição do tacitismo, identificando nele um herdeiro moderno da consciência histórica de Públio Cornélio Tácito. Ambos observam a política a partir de uma posição trágica e desencantada, registrando com finura psicológica os efeitos do poder sobre os homens e as instituições. Guicciardini é, assim, o Tácito florentino: um analista da decadência da Cristandade e da degeneração das repúblicas italianas, que vê na história não um campo de ideais, mas de tensões entre ambição, acaso, prudência e corrupção.

1. Introdução: Tácito como mestre silencioso

Desde o Renascimento, Tácito voltou a ser lido como mestre da prudência política. Não só pela sua prosa condensada e incisiva, mas pela sua capacidade de descrever a decadência do império romano com olhos de quem conhecia o funcionamento íntimo do poder. Guicciardini, embora raramente o cite diretamente, compartilha com ele uma mesma perspectiva antropológica e histórica: o ceticismo diante da virtude pública e a convicção de que o poder tende a corromper, mesmo os melhores homens

2. A política como campo de forças corruptoras

Tácito escreve sob o jugo dos imperadores romanos, narrando a passagem de um regime republicano para um despotismo velado. Seu foco está na psicologia do poder, nas intrigas palacianas, no autoengano dos senadores, na hipocrisia do discurso público. A virtude romana degenera em ambição disfarçada, a liberdade se esvazia em bajulação, e o império se sustenta por uma combinação de terror e aparência.

Guicciardini vive sob a decomposição da Cristandade italiana, onde papas travam guerras como príncipes seculares, e as repúblicas não passam de sombras do passado. Em sua Storia d’Italia, descreve a política pontifícia com o mesmo realismo desencantado que Tácito usava para retratar Nero ou Tibério.

“O interesse próprio governa os homens mais do que qualquer virtude pública. Todos falam em nome do bem comum, mas poucos o servem.”
(Guicciardini, Ricordi)

3. A prudência como bússola na escuridão

Ambos os autores convergem na exaltação da prudência como virtude principal — não uma prudência moralista, mas uma prudência realista, fundada na experiência e na observação do comportamento humano.

Para Tácito, sobreviver sob imperadores instáveis exige dissimulação, silêncio oportuno e juízo correto do tempo político. Para Guicciardini, agir em um mundo instável como o da Itália renascentista exige adaptação, flexibilidade e recuo estratégico.

“Nunca vi coisa mais danosa que agir por princípios absolutos.”
(Guicciardini, Ricordi)

4. Diferenças de forma, afinidades de espírito

Elemento Tácito Guicciardini
Tempo histórico Império romano decadente Cristandade renascentista em crise
Forma literária Anais, biografia imperial, sátira indireta História narrativa, análise psicológica, aforismos
Estilo Lacônico, irônico, condensado Minucioso, argumentativo, analítico
Visão do poder O poder corrompe e exige máscara O poder é sempre pessoal, parcial e instável
Função da história Advertência moral indireta Instrução prática e prudente para o governante

Apesar das diferenças de forma — Tácito com seu estilo aforístico e cortante, Guicciardini com sua análise paciente e desdobrada — o que os une é o espírito cético e lúcido diante da natureza humana, a compreensão de que a história é menos um tribunal da razão do que um espelho das ambições. 

5. Um tacitismo cristão?

Tácito é pagão, Guicciardini é cristão (ainda que crítico da Igreja). No entanto, poderíamos falar de um tacitismo cristão em Guicciardini, pois sua análise do poder não é separada de uma consciência moral — ainda que esta moral não seja pregada, mas vivida no silêncio da prudência.

Se Maquiavel seculariza a política, Guicciardini não renuncia à ordem moral cristã — apenas admite que a política raramente se ajusta a ela. Sua história é, portanto, mais trágica, pois reconhece a distância entre o ideal divino e a ação humana.

6. Conclusão: O historiador da decadência

Guicciardini é o Tácito do seu tempo — um historiador da decadência, um observador frio da política, mas ao mesmo tempo movido por um amor silencioso à ordem que se perdeu. Sua obra não busca convencer com eloquência, mas alertar com discrição. Não grita como o profeta, mas murmura como o ancião que já viu tudo.

Tanto Tácito quanto Guicciardini compreendem que a história é feita por homens imperfeitos que agem sob circunstâncias instáveis. E que o verdadeiro sábio é aquele que, sem ilusão, segue fazendo o bem possível — mesmo sabendo que ele será provavelmente incompreendido.

Referências:

  • TACITO, Públio Cornélio. Anais. Ed. Loeb Classical Library.

  • GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia. Ed. Sidney Alexander.

  • GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi politici e civili. Ed. Laterza.

  • SKINNER, Quentin. The Foundations of Modern Political Thought. Cambridge University Press, 1978.

  • LÉVY, Léon. Tacite et le tacitisme. Paris: Vrin, 1959.

Entre o sistema e o particular: as diferenças de pensamento entre Maquiavel e Francesco Guicciardini

Resumo: 

Embora amigos e contemporâneos, Nicolau Maquiavel e Francesco Guicciardini seguiram caminhos distintos na arte de pensar o poder. Maquiavel buscou compreender as leis gerais que regem a política e formulou um sistema dotado de lógica interna — como em O Príncipe ou nos Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio. Guicciardini, por outro lado, evitou abstrações e preferiu o exame atento do particulare, dos eventos singulares e das ações condicionadas pelo tempo, espaço e interesse. Este artigo explora essa diferença fundamental, mostrando que Maquiavel é o arquétipo do político-fundador, enquanto Guicciardini é o crítico-prudente que vê na experiência concreta o único campo legítimo da ação.

1. Introdução

No coração do Renascimento italiano, dois nomes se destacam como espelhos e opostos: Nicolau Maquiavel (1469–1527) e Francesco Guicciardini (1483–1540). Ambos viveram os mesmos acontecimentos: as invasões estrangeiras, a crise das repúblicas italianas, a corrupção dos papas e o colapso da Cristandade. Ambos serviram ao Estado florentino e se corresponderam com estima mútua. No entanto, suas ideias políticas estão em tensão: onde Maquiavel constrói um sistema, Guicciardini suspeita das fórmulas; onde Maquiavel procura modelos universais, Guicciardini insiste no singular. 

2. Maquiavel: a política como ciência da fundação

Maquiavel é um teórico da virtù. Em O Príncipe, ele sustenta que o governante deve ser capaz de adaptar-se ao tempo, de manipular a fortuna, e de usar o bem e o mal segundo a necessidade do Estado. A virtude, para Maquiavel, é uma capacidade ativa e construtiva de impor ordem ao caos histórico.

Em suas Discorsi, propõe que a república deve ser pensada em termos de leis, instituições, ciclos históricos, controles mútuos. Cria uma ciência política baseada na observação da história antiga (sobretudo romana) e defende que os homens, sendo sempre os mesmos, podem ser compreendidos em padrões constantes.

Para Maquiavel:

  • A política tem leis próprias, distintas da moral comum.

  • A fundação de uma ordem política justifica o uso da violência inicial.

  • O político é um criador de formas, não apenas um administrador do existente.

3. Guicciardini: o ceticismo do homem prático

Guicciardini rejeita o ideal do político-fundador. Para ele, não há sistema que explique completamente a ação política. A política é feita de casos, de contingências, de forças contraditórias que escapam à previsão. O historiador deve observar, registrar e ponderar — não idealizar.

Sua Storia d’Italia e suas Ricordi politici e civili são exemplos de prudência empírica. Em vez de propor fórmulas, Guicciardini oferece advertências: os efeitos de uma ação quase nunca são os pretendidos; os homens raramente seguem os princípios que professam; o interesse pessoal governa o comportamento mesmo dos mais piedosos.

Para Guicciardini:

  • Cada situação exige uma resposta única: não há receita universal.

  • A política é uma arte de administração e prudência, não de fundação.

  • A moral e a política não são totalmente separadas: o cínico termina corrompido.

4. Principais diferenças

Tema Maquiavel Guicciardini
Relação com a moral Política autônoma em relação à moral tradicional. Ceticismo moral, mas sem ruptura com a moral cristã.
Natureza da política Arte de fundar e manter o poder. Arte de governar com base na experiência concreta.
Método Modelos universais e leis políticas. Estudo de casos singulares, sem generalizações.
Fortuna Deve ser dominada pela virtù. É imprevisível; prudência é o melhor escudo.
Estilo Aforismos sistemáticos, linguagem seca e dramática. Narrativa rica, analítica, cheia de nuances.

5. Um exemplo comum: César Bórgia

Ambos analisam a figura de César Bórgia. Maquiavel o exalta como o exemplo do príncipe ideal, que soube usar a força e a astúcia para consolidar poder — ainda que derrotado pela fortuna. Já Guicciardini o considera um exemplo da impossibilidade de controlar os efeitos da própria ação: César falhou porque não pôde prever a morte do papa Alexandre VI e o curso das alianças.

6. O peso da história: da fundação à decadência

Maquiavel escreve como um profeta da fundação republicana, desejando refundar Florença sobre bases romanas. Guicciardini escreve como testemunha da ruína, consciente de que não há mais energia cívica suficiente para recuperar a dignidade política. Seu olhar é mais melancólico, mais desiludido, e por isso mais atento aos sinais da decadência.

Ambos, porém, estão unidos por uma causa comum: o amor pela pátria e a repulsa ao domínio estrangeiro. Ainda que discordem sobre os meios, desejam o mesmo fim: a restauração da grandeza italiana.

7. Conclusão: sistema e sabedoria

Se Maquiavel nos ensina que há leis na política e que a virtude deve moldar o tempo, Guicciardini nos adverte que nenhuma lei substitui a prudência. A verdadeira sabedoria política talvez esteja em saber quando agir como Maquiavel — com ousadia e visão — e quando escutar Guicciardini — com prudência e resignação.

Ambos, a seu modo, servem à verdade e à liberdade política. Ambos, de maneira trágica, testemunham o colapso da Cristandade e a fragmentação da Itália. Mas é Guicciardini quem talvez mais se aproxime de uma filosofia cristã da história, ao reconhecer os limites do homem, o peso do tempo e a imprevisibilidade da vida.

Referências:

  • GUICCIARDINI, Francesco. Ricordi politici e civili. Ed. Laterza.

  • GUICCIARDINI, Francesco. Storia d’Italia. Ed. Alexander.

  • MACHIAVELLI, Nicolò. Il Principe. Milão: Garzanti.

  • MACHIAVELLI, Nicolò. Discorsi sopra la prima deca di Tito Livio. Roma: Biblioteca Italiana.

  • CHABOD, Federico. Scritti su Machiavelli. Einaudi.

  • POCock, J.G.A. The Machiavellian Moment. Princeton University Press.