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quarta-feira, 7 de março de 2018

Mais comentários sobre a questão do paradigma da escassez na economia

"(...) Na Economia, que surgiu no século XVIII, todos eles [os economistas] acreditavam num princípio de escassez, e por meio dela definiam a ciência que estuda o conjunto da produção e distribuição da riqueza. Porém, existe algo que está à disposição do homem  e que não pode ser considerado como riqueza porque não é um bem econômico, mas pode se tornar um bem econômico amanhã ou depois. E pode se tornar um bem econômico artificialmente, criado por uma outra necessidade econômica anterior, logo, o princípio da escassez não é o fundamento da Economia. Se a escassez é gerada artificialmente por uma necessidade econômica anterior, então, a própria atividade econômica do homem não pode ser explicada pela escassez. Deve ser explicada por alguma outra coisa."

-- Olavo de Carvalho, Edmund Husserl contra o psicologismo, p. 64
1) A atividade econômica - atenção: econômica! - do homem não pode ser explicada pela escassez, como corretamente afirma o Olavo.

2) Essa idéia falsa se tornou uma cosmovisão consolidada, difícil de ser extirpada porque até mesmo nos meios conservadores, cujos adeptos em tese se dizem contrários ao 'economicismo', a idéia de que ela, a escassez, é a base da ação humana é promovida de forma automática e espontânea. 

3.1) Como eu disse em posts anteriores, essa tendência incoercível de se reduzir tudo à economia e às finanças, ainda que inconscientemente como no caso dos conservadores com fortes tendências liberais, não é um "privilégio" da esquerda. 

3.2) Essa tendência vem de longe, e tem a ver com uma certa cosmologia gnóstica e sacrificial que, mesmo depois do advento do cristianismo, insiste e resiste a ele.

 Roberto Santos 

(https://web.facebook.com/roberto.santos.3114/posts/10215930039307295)

Facebook, 7 de março de 2018.

Comentário:

Lucas Mendes: Mises e seu axioma da ação humana não teriam superado esse ponto e acertado ao colocar a ação humana no centro da ciência econômica?

Murilo Rezende Ferreira:  Exatamente. Essa objeção ignora todo o desenvolvimento marginalista e subjetivista da Economia moderna.

Kevin Powers: E o desejo mimético, que é subjetivo? Ele define a economia?

Joel Carlos:

1) Acho que a Bíblia antecipa a praxeologia uns 3000 anos. "Sobre tudo que deves guardar, guarda no teu coração, pois dele procedem as saídas da alma".

2) O homem não age por expectativas puramente racionais, fundadas no amor de si até o desprezo de Deus, de modo a garantir seu bem-estar e progredir na vida - tudo o que se funda no pecado só faz com que a vida seja ainda mais miserável, ao invés de ser próspera, não obstante quão rica seja essa pessoa. 

3) O homem age melhor se for guiado pelo Espírito Santo, de modo a viver a vida em conformidade com o Todo que vem de Deus, pois o homem foi criado para ser a imagem e semelhança de Deus. Como o homem tem livre arbítrio, é mais sensato que se escolha ter o Espírito Santo como guia do que guiar-se pela própria bússola fundada no amor de si até o desprezo de Deus, pois os caminho do homem não são como os caminho de Deus.

Murilo Rezende Ferreira:

1) Roberto, esse trecho não nega a "escassez" (como se isso fosse possível), mas a idéia de que ela é a base da ação humana.

2) Uma leitura atenta do Ação Humana do Mises e suas considerações subjetivistas já resolvem essa questão. Os economistas clássicos tinham uma perspectiva objetivista refletida na idéia de valor objetivo como tomada por Karl Marx na teoria do valor-trabalho.

3.1) Na teoria marginalista, é preciso separar o elemento subjetivo e o objetivo da ação humana.

3.2) Sem a restrição objetiva de terra, capital e trabalho (e tempo), a própria noção de ação cessaria de existir: poderíamos ter tudo que desejássemos instantaneamente, como num pensamento que produz imediatamente o seu objeto. Mas sem a estrutura subjetiva de sensação de carência, imaginação de alternativas e escolha de uma finalidade superior para a ação, obviamente sequer faria sentido falar de "escassez", já que ficaria a pergunta: escassez para quem? O Olavo está falando dos economistas clássicos e apontando o fato de que a manipulação das preferências subjetivas pode criar necessidades e desejos que acentuam a situação de escassez ao multiplicar os objetos de desejo. Para os "clássicos", a escassez seria um fato puramente objetivo, o que obviamente não pode ser verdadeiro.

3.3.1) Dentro do subjetivismo econômico, a própria escassez é subjetiva, precisamente o ponto do Olavo.

3.3.2) A ausência da escassez seria a existência de uma plena saciedade, sem necessidade da administração de meios limitados para a obtenção das finalidades humanas. Não há o menor sinal de que isso possa acontecer em nossa atual realidade. E isso não é nem "gnóstico" nem "sacrificial", é bíblico: "A terra produzirá espinhos e ervas daninhas, e tu terás de comer das plantas do campo. Com o suor do teu rosto comerás o teu pão, até que voltes ao solo, pois da terra foste formado; porque tu és pó e ao pó da terra retornarás!”. Assim, Adão deu à sua mulher o nome de Eva, porquanto ela seria mãe de toda a humanidade".

3.4.1) Nunca é uma boa idéia dar saltos ontológicos tão grandiosos como esse. Não que não seja possível, mas nunca é simples saltar de uma cosmologia para, por exemplo, o nível da organização econômica empírica.

3.4.2) Atente que uma das características do gnosticismo segundo Eric Voegelin é a fé metastática, a crença em um ruptura definitiva da ordem presente por mãos humanas. Nós vemos isso em todo o pensamento socialista do século 19 e ainda em Keynes - nele a esperança metastática de que o crédito e a moeda abundante criariam uma situação de abundância do capital real, o qual só seria escasso devido ao papel dos "rentiers" e proprietários que acumulavam a riqueza real sem permitir sua circulação.

3.4.3) Os defensores progressistas do atual sistema financeiro argumentavam que ele permitiria essa circulação de riqueza por via do relaxamento das restrições ao crédito e a moeda. Essa é a idéia da moeda elástica, cujo estoque pode ser expandido e contraído tecnocraticamente pela junção de governo e sistema financeiro.

Fontes citadas pelo Murilo:

https://twitter.com/odecarvalho/status/885971956830482433

https://www.youtube.com/watch?v=50tI4Tvdjc0

https://www.economist.com/node/604696

Roberto Santos: É tanta coisa que eu nem sei por onde começar. O que dá para dizer por enquanto é: you have missed the point.

Murilo Rezende Ferreira:

1) Não houve fuga ao ponto.

2) A questão é que essa noção de escassez e a crítica subjacente é estranha e imprecisa, confundindo-se, na verdade, com a noção de um limite absoluto ao desenvolvimento econômico, e a ligação disso a uma cosmovisão "sacrificial" e "gnóstica" é ainda mais elíptica e vaga.

3) Eu até entendo que possa existir algum ponto no que está dizendo e estou espremendo exatamente para descobri-lo.

Roberto Santos: Estou no trabalho agora e tenho pouco tempo para responder. Por isso, vou deixar as coisas bem sucintas pra você, Murilo:

1) Eu não estou negando a escassez

2) Ela deve ser vista como na lógica hindu do "é e não é". No caso, há e não há.

3) É a ação humana que vai determinar se haverá ou não escassez. E para isso ela o fará concentrando o poder de usar, de gozar e dispor ou em poucas mãos ou em muitas.

4) A idéia de que a escassez é invencível é gnóstica, porque cria um sistema fechado e, portanto, sacrificial. A idéia de que temos de abortar, controlar a natalidade e a emissão de CO2 na atmosfera é baseada numa cosmovisão gnóstica, de mundo fechado. Não se admite, segundo essa visão, aquilo que o Simon afirma, a saber, que a tecnologia e inovação podem diminuir e até acabar com a escassez.

5) Não se pode dizer que não tem nada de gnóstico, só porque é bíblico. Se você conhecesse a doutrina de Irineu de Lião, a recapitulação, entenderia que o tema do Antigo Testamento, que você citou num dos comentários, é o sacrifício e a dívida, justamente as duas coisas que Cristo veio abolir para sempre.

6) A cosmovisão que reduz o mundo a uma escassez invencível é gnóstica, um sistema fechado e sacrificial.

Murilo Rezende Ferreira: Se o conceito de "escassez invencível" tem o sentido de "limites ao crescimento" do Paul Erlich, então concordamos que se trata de uma fantasia gnóstica. Mas essa idéia de abolição me soa exagerada, pois passagem do Gênesis não diz respeito ao estado espiritual da humanidade, mas ao atual estado ontológico do Universo. O mundo é tal que o homem precisa trabalhar para sobreviver. Só uma transmutação da realidade pode levar a um mundo em que isso seja abolido.

Caio Cardoso:

1) Mas é mais ou menos isso que Santo Irineu ensina, Murilo. Não nos termos de transmutação, mas na forma restituição da realidade cósmica - a nova criação.

2) A passagem do Gênesis tanto diz respeito ao estado ontológico do Universo após a queda de Adão quanto ao estado espiritual da humanidade. Afinal, é por meio da queda do homem primordial (a coroa da Criação) que a corrupção - e então a morte - entram no mundo.

3) A Queda alienou o homem de Deus, que é a Fonte de todo o ser, e isso afetou o cosmos inteiro. Inclusive, muitas das "leis" que conhecemos hoje só surgiram após a Queda, onde houve essa diminuição ontológica em escala cósmica.

4) Mas a coisa muda de figura com a Encarnação do Verbo. Esse acontecimento - não só histórico, mas também cósmico - restitui a humanidade decaída reunindo-a à Fonte do ser, por meio da união hipostática.

5.1) Esse é o ensinamento exposto por Santo Irineu, ao qual o Roberto Santos faz alusão.

5.2) Em Cristo as coisas se restabelecem, há uma Nova Criação, pois Ele abole o antigo sistema, - que na verdade prefiguravam Sua vinda - não apenas com ensinamentos, mas com a sua própria encarnação, pelo que entendo.

PS: Digo tudo isso com a consciência de que ainda ignoro o que está sendo discutido.

Murilo Rezende Ferreira: A realidade física e social continuou a mesma depois da Encarnação do Verbo. A transmutação da realidade só ocorrerá com o novo céu e nova terra, na Ressurreição geral. A encarnação do Verbo renova todas as coisas, mas não produz uma Nova Criação. Isso é usar os termos de forma frouxa e vaga. A Nova Criação só virá no fim de todas as coisas.

Roberto Santos:

1) O Caio tem razão. E também não há nada de vago no que foi dito. O Murilo está com essa impressão porque ele é um católico ocidental.

2) De fato, a união hipostástica é um conceito muito claro. Com essa união, Cristo uniu Sua Natureza à nossa natureza, restaurando-a para sempre, independente de a pessoa se salvar ou não, pois a queda afetou a natureza humana, e não a pessoa humana.

3) Sendo assim, a união hipostástica implica que a abundância paradisíaca anterior à queda entra novamente nesse mundo, pois assim como a queda da 'natureza' humana fez o mundo (natureza) cair ontologicamente, a união hipostástica fez o mundo subir ontologicamente de novo.

4.1) Tudo isso está claríssimo na teologia de Irineu, a qual é chamada de "recapitulação".

4.2) Ela é chamada assim justamente porque nela Cristo é visto como Aquele que - diríamos hoje - rebobina o filme, quer dizer, volta-o para trás, desfazendo ontologicamente o problema ontológico causado por Adão e Eva. Não é, pois, necessário que o mundo seja transmutado no final dos tempos para que a abolição da dívida e do sacrifício passe a existir nesse mundo aqui e agora. Eles foram abolidos com a encarnação.

5) Para compreender esse problema a fundo, sugiro a leitura do filósofo John Romanides, que para mim é o Voegelin da ortodoxia, muito mais abrangente e, principalmente, mais profundo que Voegelin na questão do gnosticismo.

6) Tendo dito tudo isso, fica claro então que a função do gnosticismo é 'esconder' ou 'negar' essa nova realidade ontológica. As Potências que a negam se tornam, pois, as únicas beneficiárias dessa restauração no plano da natureza.

Murilo Rezende Ferreira: Uma coisa é a regeneração da natureza humana, operada pelo batismo e pelos sacramentos, outra é a transmutação completa da realidade a ponto de abolir as restrições negativas e maléficas apontadas no Livro do Gênesis.

Roberto Santos:  Não, pois a regeneração da natureza humana foi operada pela união hipostástica - de uma vez para sempre, para salvos e não-salvos. O batismo limpa os pecados pessoais, não a natureza humana.

Murilo Rezende Ferreira: Verdade, pois a regeneração da natureza vem da união hipostática. Há algo no batismo além do perdão dos pecados pessoais, pois é ele que extrai a ferida do pecado original - e não pode ser pessoal. Se não me engano, dizer que o batismo apaga somente os pecados pessoais já esteve presente em alguma heresia.

Roberto Santos: A noção de pecado original é bem diferente da noção ortodoxa. De acordo com essa teologia, o pecado é ancestral e não original.

Murilo Rezende Ferreira: Eita, que coisa estranha! Até onde sei há uma comunhão central entre ortodoxos e católicos - e duvido muito que poderia haver divergência em algo tão básico. Que teologia é essa?

Roberto Santos: O homem herda a consequência do pecado, que é a morte e o rebaixamento ontológico de sua natureza, mas não o pecado, que tem a ver com a pessoa. Essa herança foi apagada com a união hipostástica de uma vez por todas. A confusão se deu no mundo ocidental por causa da explicação que Santo Agostinho deu para a Trindade.

Murilo Rezende Ferreira: Não consigo ver como isso pode ser ortodoxo no sentido doutrinal.

Roberto Santos: Mas é.

Murilo Rezende Ferreira:

 "This sin of Adam’s was not your ordinary sin. This was a sin that affected all mankind forever. This sin changed the course of human history. It did not just affect Adam personally; it also affected his human nature—which means it affected our nature, since we inherited it from him. Adam and Eve were created with immortal bodies. They knew no suffering, they knew no disease, they knew no death. Before the fall, their bodies would not have been subject to cancer or to Alzheimer’s disease or heart attacks or muscular dystrophy or sickle cell anemia or any one of a host of other diseases. But ours are.

Adam was tested by God not just as Adam but as the representative of the whole human race, since we are all the seed of Adam. Just as David and Goliath met on the battlefield as champions of their respective armies, Adam was our champion. If your champion lost in battle to the other army’s champion, then you lost the battle—even though you never unsheathed your sword and were never bloodied in battle. David slew the Philistines’ champion and the Philistines took off running (cf. 1 Sam. 17:51). In the battle against the evil one, Adam lost. As a result, we also lost.

Some folks have a problem with the concept that we, Adam’s posterity, should have to pay a price for a sin we didn’t commit. They do not understand how the Church is using the term original sin. As the Catechism says, "original sin is called ‘sin’ only in an analogical sense: it is a sin ‘contracted’ and not ‘committed’—a state and not an act" (CCC 404)."

https://www.catholic.com/magazine/print-edition/to-explain-infant-baptism-you-must-explain-original-sin

Murilo Rezende Ferreira:  Eu não conheço a teologia da Igreja Oriental muito bem, mas duvido muito que sua parte mais central possa divergir tanto do ensinamento católico.

Roberto Santos: O pecado original é um conceito teológico ocidental. Isto que eu disse, diverge, e bastante, além de ter implicações gigantescas no que se refere ao gnosticismo.

Caio Cardoso: 

1) A Ortodoxia reteve a compreensão de Irineu da salvação em termos de recapitulação, ou seja, Cristo através da Encarnação recapitulou a totalidade da existência humana. Na Igreja Romana a ênfase recai sobre a doutrina medieval da substituição penal como base para a salvação. A Ortodoxia, como Irineu, manteve a ênfase na salvação como união com Cristo.

2.1) Quanto a querela do pecado Original, há, sim, uma controvérsia e uma diferença entre a concepção Ortodoxa e a Católica Romana.

2.2) Em resumo, Agostinho utiliza a tradução Latina da Bíblia e interpreta o texto de Romanos sobre o pecado entrando no mundo como se TODOS tivessem pecado junto com Adão, tendo todos, portanto, a "culpa" original.

2.3) O conceito de "Pecado original", apesar de utilizado por outros padres, é uma criação ocidental e diverge, sim ,do entendimento patrístico. O grande problema é que toda a teologia no ocidente se baseiou exclusivamente em Santo Agostinho e não no consenso patrístico.

Murilo Rezende Ferreira:

https://oca.org/questions/teaching/original-sin

https://oca.org/questions/teaching/st.-augustine-original-sin

Roberto Santos:  Santo Agostinho reduziu as Pessoas à Natureza Divina. Isso causou uma confusão enorme no mundo ocidental.

Murilo Rezende Ferreira: isso é uma baita heresia, pois reduzir as pessoas à natureza é negar a distinção! Tenho certeza que pode existir alguma sutileza, mas Santo Agostinho não iria nunca negar a distinção trinitária.

https://www2.bc.edu/taylor-black/Master%27s%20Comps/DeTrinitateSummary.pdf

Roberto Santos: Santo Agostinho usou a formulação plotiniana do Uno para interpretar a Trindade. A explicação da trindade é neoplatônica.

Murilo Rezenda Ferreira: Usar de termos e estruturas neoplatônicas é uma coisa; outra é dizer que isso chegou a uma redução da Trindade à Unidade. Isso é um salto enorme!

Roberto Santos: Santo Agostinho reduz o Pai à Vontade; o Filho, à Inteligência; e o Espírito Santo, à união desses dois atributos ou funções ao qual ele deu o nome de Amor. Ele reduziu as Pessoas aos atributos e funções da Natureza Divina, ao extrair as pessoas dos atributos e funções. Ou seja, ele inverteu a ordem teológica.

Caio Cardoso: A abordagem teológica ocidental é mais forense do que ontológica. Por isso esse vício de entendimento ao ouvirem falar sobre a recapitulação. Esta abrange TODA a humanidade, independente de salvos ou não-salvos, como já disse o Roberto. A 'salvação pessoal' deve ser desenvolvida com "temor e tremor", como diz o apóstolo.

Roberto Santos: Essa forma ortodoxa de pensar o dogma da Trindade é completamente diferente da ocidental. A formulação agostiniana viciou tanto o mundo ocidental, que ninguém mais é capaz de perceber o erro. E esse erro contaminou praticamente toda a filosofia ocidental. Quase não há exceção.

Caio Cardoso: Exatamente!

Roberto Santos: O gnosticismo de tipo místico (conservador) e o gnosticismo de tipo transumanista (progressismo) são as consequências desse pensamento.

Caio Cardoso: Inclusive tenho a impressão de que o elemento gnóstico presente no puritanismo e no protestantismo calvinista de um modo geral descendem diretamente da adoção das teses agostinianas e a elevação destas a um patamar ainda mais extremado.

Roberto Santos: Sem sombra de dúvida! O gnosticismo entrou tanto na Igreja Romana como na Protestante por meio da explicação trinitária de Santo Agostinho.  O calvinismo em particular, Caio, foi ainda mais influenciado pela doutrina do pecado original. A noção ocidental de pecado herdado levou à noção de pessoa jurídica ou corporativa que temos hoje.

http://stmaryorthodoxchurch.org/orthodoxy/articles/ancestral_versus_original_sin

http://skemmata.blogspot.com.br/2017/07/o-filioquismo-e-uma-subordinacao-ariana.html

Roberto Santos: 

1) A grande prova de que Santo Agostinho reduzia (ainda que inconscientemente) as Pessoas à Natureza Divina (quer dizer, aos atributos e funções), é a doutrina do pecado original.

2) O pecado de Adão e Eva fez com que a natureza humana caísse, evidentemente, junto com as suas pessoas. Mas o pecado deles não é herdado - na verdade, o que é herdado é a queda ontológica da natureza humana, que redunda na morte. O que herdamos aí é a morte, não o pecado.

3) Quando Agostinho pensava em pessoa (aquela que comete o pecado), imediatamente lhe vinha à mente a natureza humana, daí a idéia de que o pecado também é herdado, já que pessoa e natureza para ele eram uma só e a mesma coisa.

4) E ainda digo mais: Se mergulhar no estudo da filosofia ocidental, sem antes ter entendido isso, tem grandes chances de nunca mais se livrar do gnosticismo. Porque a filosofia ocidental, quase em sua totalidade, está contaminada por essa redução, e o contato constante com ela só reforça ainda mais o mau hábito e acaba criando um escotoma na alma.

Caio Cardoso: Daí que a noção de salvação no protestantismo é puramente extrínseca, uma "imputação de Justiça", um procedimento legal. Eles ensinam isso com essas palavras. É um combo de filioquismo, satisfação da Ira do Deus Pai, substituição penal da parte do Filho, e "justificação pela fé somente" como uma DECLARAÇÃO JURÍDICA da parte de Deus, afirmando que os miseráveis são justos. A coisa é pesada!

Roberto Santos: essa questão do filioque é o centro e a causa de todos os nossos males modernos. Quem não o entendeu não entendeu nadica de nada.

Caio Cardoso:  Se me permite, Roberto Santos, o que o levou a estes estudos?

Roberto Santos: Eu conheci a obra de John Romanides. Ele é muito maior do que Voegelin. E digo isso com total isenção, pois não sou ortodoxo.

Caio Cardoso: Interessante, Roberto! Ainda não me aprofundei na leitura da obra dele. Conheço as linhas gerais bem superficialmente. Curioso você não ser Ortodoxo ainda, pois a afirmação de que ele é maior do que o Voegelin é surpreendente. Me parece que nós ocidentais estamos a um grau muito extremado de alienação, tanto da profundidade do pensamento ortodoxo-patrístico quanto da degenerescência impregnada em nosso modo de pensar. Obrigado!

Roberto Santos:

1) Você tem que entrar nesse universo ortodoxo fazendo uma "des-torção" na mente, desde que o pensamento do mundo ocidental operou uma "torção" nela. Depois que você faz isso e compreende o que está sendo dito, você fica maravilhado. É um mundo novo e também uma chave interpretativa poderosíssima que você tem na mão. 

2) Isso tudo que disse aqui é apenas a casquinha da coisa. Ela é, por assim dizer, a premissa dela.

3) As implicações disso tenho desenvolvido para além do que aprendi com Romanides. O que eu acho que captei aí é realmente grande, mas não sei se conseguirei dar um trato na coisa e fazer os ajustes necessários nos conceitos e na perspectiva.

Caio Cardoso: Certamente, Roberto! Não tenho a sua cultura e a profundidade do seu pensamento, mas percebo efeitos devastadores nesse exercício de "des-torção" (risos)

Caíque Vendramini: E por que não ser, depois de tudo isso, Roberto, se me permite a pergunta?

Roberto Santos:Eu sou como o Olavo da época da História Essencial da Filosofia. Não me filio a clube algum, sociedade secreta alguma, Igreja alguma etc. Meu negócio é entender a coisa, venha ela de onde vier.

Caíque Vendramini: Certo. E falando no professor, você me saberia dizer se esse problema, apontado por você, ecoou na filosofia dele?

Roberto Santos: Não faço a mínima idéia.

Murilo Rezende Ferreira: Acho temerário lançar tal peso sobre Santo Agostinho. Falar de Santo Agostinho como gerador implícito do gnosticismo e da heresia unitária na tradição cristã é algo que exige um fundamento monstruoso.. E se for este padre ortodoxo aqui, parece que tinha grande simpatia por Lutero:

http://nftu.net/fr-john-romanides-ecumenist-yes/

Robero Santos: E o fundamento está aí. Por quê você, ao invés ficar buscando informações sobre o cara na internet, não lê a obra dele?

Murilo Rezende Ferreira: Posso até fazer isso algum dia no futuro, mas não em cinco minutos.

Murilo Rezende Ferreira: O livro do Friedrich Heer sobre a História Intelectual da Europa tem uma narrativa bem diferente e creio que bem mais consistente: quem esteve sempre perto do arianismo, da negação da transubstanciação e de um espiritualismo que nega a Encarnação foi o Oriente, onde a influência neoplatônica foi bem maior do que no Ocidente. É o espiritualismo oriental que tende ao gnosticismo. Há um sujeito importante na Igreja Ortodoxa que teve fortes afinidades com Lutero, creio que Padre Máximo, e que influenciou todo o desenvolvimento posterior da Ortodoxia, transmitindo à Igreja Russa o apelo irracional e espiritualista de Lutero para além da influência deste sobre o próprio luteranismo oficial.

Roberto Santos:  A crítica que Romanides faz a Santo Agostinho é feita por qualquer ortodoxo que você encontrar, mas, ao contrário do ortodoxo comum, que entende o erro de Agostinho, ele tira e desenvolve as implicações desse erro.

Murilo Rezende Ferreira:  Esse triunfalismo oriental é bem esquisito! O Padre Seraphim Rose parecia considerar isso um exagero de certos círculos ultraconservadores. Sinto um ar de Dostoievski e do irracionalismo russo.

Roberto Santos: Não é possível discutir esse assunto se a pessoa não entende o fulcro do que está em pauta, que é a questão da ordem teológica invertida.

Murilo Rezende Ferreira: Sei, você quer dizer então que Santo Agostinho colocou a Natureza da Divindade acima das Pessoas? Esse é o grande mistério da "ordem teológica invertida"?

Roberto Santos: Acima, não, pois ele reduziu as Pessoas à Natureza. Identificou-as.

Murilo Rezende Ferreira: Pior ainda! Isso não é verdadeiro!

Roberto Santos: Por quê?

Murilo Rezende Ferreira: Ora, porque Agostinho é um Doutor da Igreja e isso é uma tremenda heresia. Se você quiser afirmar um absurdo desses, comece a mostrar os trechos e fazer as demonstrações. Isso é um argumento de autoridade! Por enquanto é muito melhor do que essas acusações veladas de que Santo Agostinho era um gnóstico e um herege.

Roberto Santos: Agora os comentários começaram a cair de nível.

Murilo Rezende Ferreira: Só estou mostrando que é uma baita masturbação mental ficar lançando anátemas sobre Santo Agostinho e o Ocidente sem uma demonstração metódica do ponto. Não da para assumir que Santo Agostinho era um Unitarista antitrinitário.

Caio Cardoso:  Mas você falou que não conhecia direito a teologia/filosofia ortodoxa, Murilo! Passou a conhecer e a ser crítico dela? Não li o Friedrich Heer, o qual imagino ser uma importante leitura. Mas pelo que diz me pareceu mais uma narrativa ocidental que acusa a cultura oriental por vias do raciocínio sistemático. Negação da transubstanciação ou apenas a preservação da dimensão mística rejeitando qualquer explicação racional e filosófica de base aristotelica dum mistério espiritual que deve ser assimilado espiritualmente? O culto ortodoxo é um ótimo exemplo do trinitarismo patrístico. Espiritualismo que nega a Encarnação? A Encarnação é a base para a doutrina soteriológica e a base para a adoração litúrgica, veneração dos ícones, etc. Os meus pontos são controversos, mas enfim.

Murilo Rezende Ferreira: Roberto Santos, você já tem postado sobre o assunto há algum tempo, sempre com afirmações categóricas. É preciso apresentar as citações e as demonstrações para que a coisa tenha algum sentido.

Roberto Santos: Eu estou num grupo do Facebook explicando detalhadamente tudo isso. Já até disse ao grupo que meus posts do Facebook são para eles apenas. Pode ver que minhas postagens estão todas restritas. Se você acha que é muito ofensivo o que estou escrevendo, você tem a opção de me bloquear, se quiser.

Murilo Rezende Ferreira: Não acho ofensivo, pois parto do pressuposto de que estamos numa discussão racional que tem um ponto. omo diz o Olavo: na hora que o negócio começa entrar para esse terreno da subjetividade, começou a veadagem. Sem ofensas e frescuras (risos)!

Caio Cardoso: Ninguém anatemizou Santo Agostinho, Murilo. Nem os críticos ortodoxos dele o fizeram.

Murilo Rezende Ferreira: O Padre Seraphim Rose inclusive defendeu Santo Agostinho contra as teses do John Romanides.

Roberto Santos: Ok. Qual o argumento de Rose?

Murilo Rezende Ferreira: ão sei. Só estou citando a informação de que um importante ortodoxo considerou que era uma falta de respeito falar do Santo Agostinho daquela forma.

Caio Cardoso: im, defendeu, mas o Roberto não disse que a tese dele era errada nem a refutou que eu me lembre. Apenas frizou que havia alguns movimentos odiando um homem que é venerado por toda a cristandade.

Roberto Santos: Então entre no assunto. Exponha a doutrina da Trindade de Agostinho e nos diga por que você acha que ela está certa. Comecemos assim.

Murilo Rezende Ferreira: Há algo aqui: http://orthodoxinfo.com/inquirers/bless_aug.aspx. Eu não estudei a doutrina da Trindade de Santo Agostinho, então não posso fazer essa exposição. Mas não sou eu que estou dizendo que um Santo e Doutor da Igreja é na verdade um Unitarista gnóstico. O meu argumento é de autoridade: o ônus da prova recai sobre você.

Roberto Santos: Cara, eu quero que você me mostre qual o seu nível de compreensão da explicação agostiniana; quero saber o SEU entendimento da coisa, com as suas palavras. Simplesmente exponha o que você entende acerca da Trindade.

Caio Cardoso: Como assim um padre 'influencia' todo o 'desenvolvimento' da ortodoxia? Isso é bem estranho para a Igreja Ortodoxa, que se mantém firme ao consenso patrístico, aos grandes concílios ecumênicos e que não possui o 'dogma' romano de "desenvolvimento da doutrina"...

Murilo Rezende Ferreira: Só estou citando a tese do Heer e mostrando que é possível uma narrativa bem diferente.

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