“O silêncio é a linguagem de Deus, tudo o mais é má tradução.”
— São João da Cruz
Resumo
Neste ensaio, sustento que a reação imediata diante do incômodo interpessoal, na cultura contemporânea marcada pelo narcisismo, não deve ser a verbalização do desconforto, mas o corte silencioso. O gesto de deletar, bloquear ou afastar-se sem dar justificativas pode ser moralmente legítimo e, em certas circunstâncias, espiritualmente superior ao diálogo, pois preserva a paz interior e impede o jogo de manipulação emocional. O silêncio, nesse contexto, não é omissão, mas linguagem de juízo. Ao final, proponho que tal postura seja iluminada pelos méritos de Cristo, único critério seguro para a consciência moral.
1. A cultura do incômodo como instrumento de dominação
Ao longo da história humana, o incômodo sempre foi percebido como algo a ser evitado. No entanto, nos tempos atuais, especialmente após a expansão de uma cultura marcada pela autovalorização performática e pela fragilidade afetiva, o incômodo tornou-se uma ferramenta de empoderamento para os fracos de espírito.¹
A confissão de que alguém nos incomoda, longe de gerar compaixão ou correção fraterna, passou a ser interpretada como fraqueza — e, portanto, como sinal verde para aumentar a pressão. A relação que deveria ser baseada na reciprocidade e no respeito se converte em um jogo psicológico: o que mais suporta é ridicularizado, e o que mais fere é visto como "forte" ou "autêntico".
2. Falar ou deletar? O juízo silencioso como resposta moral
A experiência mostra que falar com quem não escuta é não apenas inútil, mas degradante. Toda tentativa de explicação se converte em munição nas mãos de quem opera sob a lógica da manipulação emocional. Diante disso, a única atitude prudente, e por vezes até caridosa, é agir: deletar.
Esse gesto, hoje banalizado como "ghosting",² pode conter em si um juízo espiritual legítimo: trata-se de um limite estabelecido por meio do silêncio. Cortar contato, bloquear, deixar de responder — não são apenas táticas de autopreservação, mas sinais inequívocos de que há algo errado naquela relação. Trata-se de um julgamento moral sem tribunal externo, mas com plena validade interior.
3. O tribunal da consciência e os méritos de Cristo
Quem deseja uma explicação, que a busque no exame de sua própria consciência nos méritos de Cristo. Esta expressão, que para muitos soará apenas como retórica religiosa, remete a uma realidade profunda: só à luz de Cristo é possível julgar as próprias ações com justiça e misericórdia.
A consciência, quando iluminada pela graça, reconhece os próprios pecados.³ Cristo, sendo a Verdade encarnada (Jo 14,6), não mascara a realidade, nem a distorce em nome de um bem-estar psicológico. Seu juízo é ao mesmo tempo inapelável e redentor. Por isso, ao cortar uma pessoa e remeter-lhe, ainda que implicitamente, à necessidade de exame interior, estamos oferecendo uma última oportunidade de reconciliação — não conosco, mas com a Verdade.
4. O silêncio como linguagem superior
O silêncio tem tradição sólida na vida espiritual. Cristo calou-se diante de Herodes (Lc 23,9); os santos Padres do deserto cultivavam o hesicasmo — a paz do coração fundada no recolhimento; e São Bento, em sua Regra, afirmava que "é melhor calar do que dizer o que não edifica".⁴
Quando não há disposição para a escuta verdadeira, a palavra se converte em ruído. E o ruído, como bem sabia São João da Cruz, é a antítese da linguagem de Deus. O silêncio, nesse caso, torna-se o modo mais elevado de pronunciar a verdade: não com a língua, mas com a ausência.
5. Conclusão
Deletar uma pessoa que insiste em ultrapassar limites é, hoje, um gesto necessário. Não se trata de vingança, mágoa ou covardia. Trata-se de amor à ordem, à paz, à verdade — e à própria alma. O verdadeiro amor não tolera a desordem indefinidamente.
Quando cortamos alguém e nos calamos, estamos dizendo: "Aqui termina o espaço do abuso". E quem quiser entender, que ouça o silêncio como um eco do Juízo — não o nosso, mas o de Cristo. Pois somente Ele, que é Deus e homem verdadeiro, pode transformar esse silêncio em ocasião de arrependimento, perdão e, talvez, reconciliação.
Notas
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Lasch, Christopher. A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983.
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“Ghosting” é o termo em inglês para o ato de cortar repentinamente o contato com alguém sem explicação. Embora muitas vezes associado a comportamentos infantis, seu uso pode ser legítimo quando a continuidade da comunicação representa um dano moral ou espiritual.
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Catecismo da Igreja Católica, §1776: “A consciência é o núcleo mais secreto e o santuário do homem, no qual ele está sozinho com Deus, cuja voz ressoa no seu íntimo”.
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Regra de São Bento, capítulo VI: “Sejamos, portanto, seguidores do conselho do profeta: ‘Guardei os meus caminhos, para não pecar com a minha língua; pus guarda à minha boca’ (Sl 38,2)”.
Referências Bibliográficas
LASCH, Christopher. A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983.
IGREJA CATÓLICA. Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2000.
SÃO BENTO. Regra de São Bento. Tradução do Mosteiro de São Bento de São Paulo. São Paulo: Loyola, 2002.
SAGRADA BÍBLIA. Tradução da CNBB. São Paulo: Edições Paulinas, 2008.