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segunda-feira, 4 de agosto de 2025

O silêncio como juízo: sobre a virtude de cortar laços em tempos de narcisismo


“O silêncio é a linguagem de Deus, tudo o mais é má tradução.”
— São João da Cruz

Resumo

Neste ensaio, sustento que a reação imediata diante do incômodo interpessoal, na cultura contemporânea marcada pelo narcisismo, não deve ser a verbalização do desconforto, mas o corte silencioso. O gesto de deletar, bloquear ou afastar-se sem dar justificativas pode ser moralmente legítimo e, em certas circunstâncias, espiritualmente superior ao diálogo, pois preserva a paz interior e impede o jogo de manipulação emocional. O silêncio, nesse contexto, não é omissão, mas linguagem de juízo. Ao final, proponho que tal postura seja iluminada pelos méritos de Cristo, único critério seguro para a consciência moral.

1. A cultura do incômodo como instrumento de dominação

Ao longo da história humana, o incômodo sempre foi percebido como algo a ser evitado. No entanto, nos tempos atuais, especialmente após a expansão de uma cultura marcada pela autovalorização performática e pela fragilidade afetiva, o incômodo tornou-se uma ferramenta de empoderamento para os fracos de espírito.¹

A confissão de que alguém nos incomoda, longe de gerar compaixão ou correção fraterna, passou a ser interpretada como fraqueza — e, portanto, como sinal verde para aumentar a pressão. A relação que deveria ser baseada na reciprocidade e no respeito se converte em um jogo psicológico: o que mais suporta é ridicularizado, e o que mais fere é visto como "forte" ou "autêntico".

2. Falar ou deletar? O juízo silencioso como resposta moral

A experiência mostra que falar com quem não escuta é não apenas inútil, mas degradante. Toda tentativa de explicação se converte em munição nas mãos de quem opera sob a lógica da manipulação emocional. Diante disso, a única atitude prudente, e por vezes até caridosa, é agir: deletar.

Esse gesto, hoje banalizado como "ghosting",² pode conter em si um juízo espiritual legítimo: trata-se de um limite estabelecido por meio do silêncio. Cortar contato, bloquear, deixar de responder — não são apenas táticas de autopreservação, mas sinais inequívocos de que há algo errado naquela relação. Trata-se de um julgamento moral sem tribunal externo, mas com plena validade interior.

3. O tribunal da consciência e os méritos de Cristo

Quem deseja uma explicação, que a busque no exame de sua própria consciência nos méritos de Cristo. Esta expressão, que para muitos soará apenas como retórica religiosa, remete a uma realidade profunda: só à luz de Cristo é possível julgar as próprias ações com justiça e misericórdia.

A consciência, quando iluminada pela graça, reconhece os próprios pecados.³ Cristo, sendo a Verdade encarnada (Jo 14,6), não mascara a realidade, nem a distorce em nome de um bem-estar psicológico. Seu juízo é ao mesmo tempo inapelável e redentor. Por isso, ao cortar uma pessoa e remeter-lhe, ainda que implicitamente, à necessidade de exame interior, estamos oferecendo uma última oportunidade de reconciliação — não conosco, mas com a Verdade.

4. O silêncio como linguagem superior

O silêncio tem tradição sólida na vida espiritual. Cristo calou-se diante de Herodes (Lc 23,9); os santos Padres do deserto cultivavam o hesicasmo — a paz do coração fundada no recolhimento; e São Bento, em sua Regra, afirmava que "é melhor calar do que dizer o que não edifica".⁴

Quando não há disposição para a escuta verdadeira, a palavra se converte em ruído. E o ruído, como bem sabia São João da Cruz, é a antítese da linguagem de Deus. O silêncio, nesse caso, torna-se o modo mais elevado de pronunciar a verdade: não com a língua, mas com a ausência.

5. Conclusão

Deletar uma pessoa que insiste em ultrapassar limites é, hoje, um gesto necessário. Não se trata de vingança, mágoa ou covardia. Trata-se de amor à ordem, à paz, à verdade — e à própria alma. O verdadeiro amor não tolera a desordem indefinidamente.

Quando cortamos alguém e nos calamos, estamos dizendo: "Aqui termina o espaço do abuso". E quem quiser entender, que ouça o silêncio como um eco do Juízo — não o nosso, mas o de Cristo. Pois somente Ele, que é Deus e homem verdadeiro, pode transformar esse silêncio em ocasião de arrependimento, perdão e, talvez, reconciliação.

Notas

  1. Lasch, Christopher. A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

  2. “Ghosting” é o termo em inglês para o ato de cortar repentinamente o contato com alguém sem explicação. Embora muitas vezes associado a comportamentos infantis, seu uso pode ser legítimo quando a continuidade da comunicação representa um dano moral ou espiritual.

  3. Catecismo da Igreja Católica, §1776: “A consciência é o núcleo mais secreto e o santuário do homem, no qual ele está sozinho com Deus, cuja voz ressoa no seu íntimo”.

  4. Regra de São Bento, capítulo VI: “Sejamos, portanto, seguidores do conselho do profeta: ‘Guardei os meus caminhos, para não pecar com a minha língua; pus guarda à minha boca’ (Sl 38,2)”. 

Referências Bibliográficas 

LASCH, Christopher. A Cultura do Narcisismo. Rio de Janeiro: Imago, 1983.

IGREJA CATÓLICA. Catecismo da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2000.

SÃO BENTO. Regra de São Bento. Tradução do Mosteiro de São Bento de São Paulo. São Paulo: Loyola, 2002.

SAGRADA BÍBLIA. Tradução da CNBB. São Paulo: Edições Paulinas, 2008.

domingo, 3 de agosto de 2025

Correios no exterior: sobre a Visão de um locker brasileiro no coração do Delaware

Enquanto os Correios do Brasil concentram seus esforços na expansão de lockers inteligentes em território nacional, uma ideia ousada e estrategicamente viável começa a ganhar corpo entre brasileiros com visão empreendedora: por que não levar a presença logística dos Correios para fora do país? Mais especificamente, por que não iniciar um projeto-piloto no estado do Delaware, nos Estados Unidos?

Essa proposta — à primeira vista inusitada — encontra base não apenas na necessidade real da comunidade brasileira no exterior, mas também na combinação singular de vantagens econômicas e estruturais que esse pequeno estado americano oferece. 

Delaware: muito além das compras sem imposto

O estado de Delaware é conhecido entre brasileiros que vivem ou visitam os Estados Unidos como um paraíso de compras. Com zero imposto estadual sobre vendas, tornou-se um dos destinos mais vantajosos para quem deseja adquirir bens de consumo com menor carga tributária¹. Além disso, está geograficamente inserido num corredor logístico privilegiado, entre Nova York, Filadélfia, Baltimore e Washington D.C. — áreas que concentram grandes comunidades brasileiras².

Mas o que torna Delaware ainda mais atrativo do ponto de vista logístico e empresarial é sua legislação corporativa simplificada, seus baixos custos de operação e a presença de centros de distribuição e transporte altamente eficientes, integrados aos serviços de couriers como UPS, USPS, FedEx e Amazon³.

Lockers como solução diplomática e logística

Ao pensarmos em serviços postais modernos, os lockers automatizados — armários de autoatendimento onde clientes podem retirar ou enviar pacotes com segurança e autonomia — tornaram-se peça-chave na estrutura de e-commerce global⁴. Tanto a USPS quanto empresas privadas americanas operam esses sistemas em shoppings, farmácias, postos de gasolina e mercados⁵.

No Brasil, os Correios têm expandido esse modelo desde 2020, começando pelo Rio de Janeiro e pelo Distrito Federal, e com a promessa de alcançar todas as capitais até 2025⁶. Mas por que não ir além?

Instalar um locker dos Correios no exterior, em um lugar estratégico como Delaware, não apenas atenderia a brasileiros que compram ou vendem produtos entre os dois países, mas também abriria caminho para uma nova forma de diplomacia econômica e comunitária — mais ágil, mais conectada e mais útil ao cidadão.

Da ideia à ação: como tornar isso realidade

É importante reconhecer: não é possível abrir uma franquia oficial dos Correios fora do Brasil, pois a empresa é uma estatal federal sem previsão de operação direta no exterior⁷. No entanto, isso não impede que um empreendedor privado monte uma empresa binacional, atuando como:

  • Agente logístico autorizado (como já fazem empresas como DHL, Shopee, AliExpress)⁸;

  • Hub internacional de redirecionamento de pacotes;

  • Ponto de apoio para serviços consulares em cooperação com embaixadas e consulados brasileiros.

A proposta é montar, no Delaware, uma empresa americana (LLC) com sede física equipada com:

  • Um locker próprio, identificado como “Locker Brasil” — com tecnologia RFID, senha ou QR Code;

  • Um locker da USPS, obtido via convênio como Authorized Shipping Provider⁹;

  • Sistemas integrados para recebimento, expedição, rastreio e consolidação de remessas EUA–Brasil–EUA;

  • Um espaço comunitário para atendimento em português, voltado à diáspora brasileira, com serviços como renovação de documentos, apoio a estudantes e suporte logístico para microempreendedores.

Detaxe, cidadania americana e parcerias internacionais

Ao obter a cidadania americana, seja por casamento ou outro meio, o empreendedor amplia significativamente sua capacidade jurídica e comercial para atuar nos EUA. Isso permite não só a abertura da empresa com maior facilidade, mas também a possibilidade de realizar lobby junto a órgãos reguladores e parceiros comerciais¹⁰.

Nesse contexto, uma parceria estratégica com empresas como a Global Blue — líder mundial em soluções de detaxe — pode transformar sua agência em um ponto homologado para validação e liberação do detaxe para compras feitas em varejistas brasileiros, facilitando a devolução de impostos para brasileiros residentes nos EUA e turistas.

Essa agência, além de funcionar como hub logístico, atuaria como intermediária na formalização das remessas e comprovação fiscal, agregando valor para consumidores e comerciantes, e incentivando o comércio bilateral¹¹.

A atuação combinada de lockers para entrega e retirada, serviços consulares e suporte à devolução de impostos transformaria o ponto no Delaware em um verdadeiro centro multifuncional de apoio à comunidade brasileira e ao comércio internacional.

Ganhos para todos os lados

1. Para o empreendedor

  • Entra num mercado internacional de nicho com alta demanda reprimida¹².

  • Consolida parcerias com entidades públicas e privadas dos dois países.

  • Cria um modelo escalável para replicar em outras cidades com presença brasileira (Orlando, Lisboa, Milão, Tóquio).

  • Possibilita influência regulatória por meio de lobby estruturado.

2. Para os Correios

  • Passa a contar com um ponto de apoio real fora do país, algo inédito na história da estatal¹³.

  • Fortalece sua imagem como empresa global, conectada à diáspora.

  • Reduz gargalos e fraudes em remessas informais vindas do exterior.

3. Para a comunidade brasileira

  • Ganha um local seguro, em português, para enviar e receber pacotes.

  • Acessa serviços consulares de forma mais eficiente e humanizada.

  • Se beneficia de custos menores, maior previsibilidade e atendimento culturalmente compatível.

  • Pode usufruir da devolução de impostos em compras, ampliando seu poder de compra.

Um gesto de patriotismo estratégico

Levar um locker dos Correios para o exterior — começando pelo Delaware — é mais do que um empreendimento visionário. É um gesto de patriotismo estratégico, que reforça os laços entre o Brasil e seus filhos espalhados pelo mundo. É também um símbolo de que a inovação e a identidade nacional podem caminhar juntas, mesmo nos corredores mais gelados e silenciosos da costa leste americana.

Com visão, coragem e articulação institucional, essa ideia pode deixar de ser apenas uma hipótese promissora para se tornar um marco na reinvenção do serviço postal brasileiro em tempos de globalização real.

Referências bibliográficas

  1. DELAWARE.GOV. Tax Information - Sales and Use Tax. Disponível em: https://revenue.delaware.gov/sales-use-tax/. Acesso em: 03 ago. 2025.

  2. U.S. CENSUS BUREAU. American Community Survey: Brazilian Population Estimates. Disponível em: https://www.census.gov/programs-surveys/acs/. Acesso em: 02 ago. 2025.

  3. DELAWARE DIVISION OF CORPORATIONS. Business & Corporate Laws in Delaware. Disponível em: https://corp.delaware.gov/. Acesso em: 03 ago. 2025.

  4. USPS. Parcel Locker Program. Disponível em: https://about.usps.com/newsroom/service-alerts/parcel-lockers.htm. Acesso em: 03 ago. 2025.

  5. AMAZON.COM. Amazon Locker: Secure Package Delivery. Disponível em: https://www.amazon.com/locker. Acesso em: 03 ago. 2025.

  6. AGÊNCIA BRASIL. Correios ampliam lockers no Rio e DF. Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2020-12/correios-lancam-no-rio-modalidade-de-entrega-com-armarios-inteligentes. Acesso em: 03 ago. 2025.

  7. EMPRESA BRASILEIRA DE CORREIOS E TELÉGRAFOS. Quem somos. Disponível em: https://www.correios.com.br/aempresa/quem-somos. Acesso em: 03 ago. 2025.

  8. DHL. International Shipping and Logistics Services. Disponível em: https://www.dhl.com/global-en/home.html. Acesso em: 03 ago. 2025.

  9. USPS. Become a USPS Shipping Provider. Disponível em: https://about.usps.com/suppliers/becoming.htm. Acesso em: 03 ago. 2025.

  10. GLOBAL BLUE. Tax Free Shopping Solutions. Disponível em: https://www.globalblue.com/. Acesso em: 03 ago. 2025.

  11. IBGE. Estatísticas sobre a diáspora brasileira. Disponível em: https://www.ibge.gov.br. Acesso em: 02 ago. 2025.

  12. UNIVERSAL POSTAL UNION (UPU). Global Postal Services Cooperation. Disponível em: https://www.upu.int/en/Universal-Postal-Union. Acesso em: 03 ago. 2025.

  13. APEXBRASIL. Comércio Exterior e Parcerias. Disponível em: https://www.apexbrasil.com.br/. Acesso em: 03 ago. 2025.

sábado, 2 de agosto de 2025

Liberdade, Isolamento e Escravidão Interior segundo Fernando Pessoa

 

“A liberdade é a possibilidade do isolamento.
Se te é impossível viver só, nasceste escravo.”

— Fernando Pessoa

Introdução

A frase de Fernando Pessoa sobre a liberdade como possibilidade de isolamento traz à tona uma questão fundamental tanto para a filosofia quanto para a espiritualidade: o que significa ser livre? Em um mundo cada vez mais conectado e dependente de vínculos sociais, emocionais e materiais, a afirmação de que a liberdade passa pela capacidade de estar só soa, no mínimo, provocadora.

Neste artigo, analisaremos a frase de Pessoa à luz da tradição filosófica ocidental e da espiritualidade cristã. Discutiremos como o isolamento pode ser visto não como alienação, mas como uma forma de soberania interior, em contraposição à escravidão dos apegos. Nosso intuito é mostrar que a liberdade autêntica exige a capacidade de suportar — e até desejar — o silêncio, a solidão e a companhia exclusiva de Deus e da própria consciência.

1. A liberdade como autossuficiência interior

Fernando Pessoa, mestre do desdobramento interior por meio de seus heterônimos, frequentemente refletia sobre o abismo que separa o ser e o parecer, o homem livre e o homem condicionado. Ao afirmar que “a liberdade é a possibilidade do isolamento”, ele sugere que aquele que não suporta a solidão não é senhor de si mesmo, mas sim escravo da necessidade de aprovação, companhia ou distração.

Essa concepção remete diretamente à noção estoica de liberdade como autarkeia — a autossuficiência da alma racional. Epicteto, por exemplo, afirmava que só é livre aquele que se basta a si mesmo, que não se deixa dominar por paixões, desejos ou opiniões alheias.

2. A escravidão como dependência

A segunda parte da frase — “Se te é impossível viver só, nasceste escravo” — radicaliza a proposta ao sugerir que a incapacidade de estar só não é apenas uma fraqueza, mas uma escravidão constitutiva. Isso nos remete a uma reflexão sobre os vínculos invisíveis que nos prendem: a compulsão pela sociabilidade, o medo do vazio, o desespero por distração.

Na linguagem cristã, essa escravidão é descrita como escravidão do pecado: um estado de servidão interior no qual o homem se vê dominado por forças que o afastam de Deus, seu verdadeiro fim. O apóstolo Paulo afirma: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém. Tudo me é permitido, mas eu não me deixarei dominar por nenhuma coisa” (1 Cor 6,12).

3. O isolamento dos santos e o deserto da liberdade

Na tradição cristã, a solidão não é sinônimo de abandono, mas espaço privilegiado de comunhão com Deus. Os Padres do Deserto, os monges da Tebaida e os eremitas medievais buscaram o isolamento não como fuga do mundo, mas como forma de purificação da alma, para que se tornassem verdadeiramente livres.

Santa Teresa d’Ávila escreveu: “Quem a Deus tem, nada lhe falta. Só Deus basta.” Esta frase ecoa a liberdade de quem encontrou em Deus a companhia essencial, a ponto de poder viver — e até desejar viver — a sós.

Assim, o isolamento de que fala Pessoa pode ser entendido, numa chave cristã, como o teste da liberdade espiritual: quem se conhece, quem ama a verdade, quem vive na graça, não teme a solidão, pois não está só.

4. Da liberdade como capacidade de amar desinteressadamente

Importa esclarecer que a liberdade do isolamento não se opõe ao amor, mas ao apego desordenado. O amor verdadeiro exige liberdade: só ama de fato aquele que é capaz de estar só e, mesmo assim, escolhe estar com o outro. O amor que nasce da carência é possessivo; o amor que nasce da liberdade é doação.

Nesse sentido, Pessoa não propõe uma vida misantrópica, mas sim uma crítica à dependência emocional que impede o ser humano de ser inteiro. O homem livre é aquele que pode estar com os outros sem precisar deles para justificar sua existência.

Conclusão

A frase de Fernando Pessoa guarda uma sabedoria muitas vezes incompreendida por uma sociedade que valoriza o excesso de vínculos e a constante exposição. O isolamento, aqui, não é desprezo pelo outro, mas prova de maturidade interior, sinal de que se encontrou um centro estável, imune ao tumulto exterior.

Se é verdade que “não é bom que o homem esteja só” (Gn 2,18), também é verdade que não é bom que o homem não consiga estar só. Entre esses dois extremos — isolamento absoluto e dependência absoluta — há o caminho da liberdade: estar com os outros por amor, mas viver em si mesmo por fidelidade à verdade.

Nesse equilíbrio reside a liberdade dos santos, dos sábios e dos poetas verdadeiros.

Referências

  • PESSOA, Fernando. Livro do Desassossego. Lisboa: Ática, várias edições.

  • SANTO AGOSTINHO. Confissões. Traduções diversas.

  • EPICTETO. Manual. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.

  • BÍBLIA SAGRADA. 1 Coríntios 6,12.

  • SANTA TERESA D’ÁVILA. Poesias e Orações. Ed. Loyola.

O direito como arte da segurança jurídica: em defesa de uma definição prudente

Durante o período em que estive no Curso Glioche, propus uma definição que, à época, escandalizou alguns: o Direito é a arte da segurança jurídica. Um aluno do professor Olavo de Carvalho, sem pestanejar, qualificou minha definição como “falsíssima”. Com o tempo, porém, a realidade se impôs. Hoje posso dizer, com serenidade: desafio qualquer um a refutar os fatos — pois eles confirmam que eu estava, no mínimo, muito próximo da verdade.

A crítica que recebi, embora empolada de erudição, falhava em seu ponto essencial: compreender o Direito como realidade vivida, como experiência prudencial, antes de ser tratado como mera construção teórica. O tempo — esse juiz silencioso — revelou que a estabilidade, a previsibilidade e o respeito às formas jurídicas são hoje os únicos redutos possíveis contra a barbárie jurídica de nossos dias. Quando juízes legislam, quando promotores se tornam verdugos políticos, quando o cidadão já não sabe mais o que pode e o que não pode fazer, o clamor por segurança jurídica se ergue como voz de um povo perdido no labirinto do arbítrio. E o Direito, se não é mais capaz de garantir essa segurança, já não é Direito — é engenharia social, é fetiche ideológico.

A arte como saber prudencial

Para muitos, o termo “arte” soa como algo técnico ou meramente estético. No entanto, na tradição clássica, ars é saber prático orientado por um fim racional. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, distingue a arte (technê) da ciência (episteme) e da prudência (phronesis), reconhecendo à arte um lugar legítimo nas ações humanas regradas por princípios (ARISTÓTELES, 2009). Tomás de Aquino, ao tratar das virtudes intelectuais, afirma que a arte é “ratio recta factibilium” — a reta razão do que pode ser feito¹. Nesse sentido, chamar o Direito de arte é recolocá-lo em seu devido lugar: um saber prático ordenado ao bem comum, cuja realização exige julgamento prudencial, mediado pela experiência e pelo tempo.

Segurança Jurídica como finalidade intrínseca

Dizer que o Direito é arte da segurança jurídica é apontar para um de seus fins próprios: tornar estável aquilo que é justo. Não basta que haja justiça; é preciso que ela seja comunicável, previsível, vinculante. A tradição do rule of law, herdada do direito romano e desenvolvida pela cristandade medieval, sempre reconheceu que a previsibilidade das normas, a estabilidade dos contratos, a integridade dos procedimentos, são condições essenciais para o florescimento da justiça em sociedade.

Álvaro d’Ors, em sua obra Ensayos de historia jurídica, insiste que a função do jurista é, antes de tudo, discernir o justo concreto (ius), mas que este justo só se realiza efetivamente se for dotado de estabilidade e inteligibilidade (D’ORS, 1960). É precisamente isso que a segurança jurídica proporciona.

Miguel Reale, por sua vez, ao desenvolver sua teoria tridimensional do Direito, reconhece que a estrutura normativa não basta: é preciso que haja efetividade social e valor reconhecido — sem os quais o Direito se torna um espectro formal (REALE, 2002). A segurança jurídica é o ponto em que esses três elementos se equilibram: norma, fato e valor.

Contra a arbitrária vontade do poder

A crítica à minha definição é sintoma de uma mentalidade cada vez mais comum: a de que o Direito deve ser instrumento de transformação social, isto é, da vontade arbitrária do poder travestida de legitimidade normativa. Nada mais distante da tradição jurídica ocidental. Desde Ulpiano, passando por Cícero, Isidoro de Sevilha e culminando nos grandes canonistas e civilistas da Idade Média, o Direito foi compreendido como ars boni et aequi — arte do bem e do justo (ISIDORO DE SEVILHA, 2004).

O justo, por sua vez, exige ordem; e a ordem exige permanência. Não se pode falar de justiça sem continuidade, sem limites ao arbítrio, sem formas estáveis de aplicação. Quando se rompe a segurança jurídica, instaura-se o império do capricho. Um juiz que hoje diz uma coisa, amanhã diz outra. Uma norma que hoje protege, amanhã oprime. Um povo que hoje é cidadão, amanhã é réu sem defesa. O Direito perde sua alma.

A autoridade que vem de cima

A fidelidade à verdade é critério superior ao aplauso acadêmico. Antes de dialogar com qualquer homem — mesmo os ditos “alunos do Olavo” — dialogo com o verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, no sacramento da confissão. E Ele nunca me condenou por essa definição. Aliás, se há algo que se confirma ao longo da história da salvação é a fidelidade de Deus à sua palavra, à sua Lei, à sua Aliança. Isso é segurança jurídica em sua forma mais elevada: a estabilidade da justiça divina, imitada na ordem das nações.

Conclusão

Portanto, reafirmo com plena convicção: o Direito é a arte da segurança jurídica. Ele só pode realizar sua missão se for capaz de proteger o homem contra os ímpetos do arbítrio e contra as modas que corrompem a verdade. Os que rejeitam essa definição devem primeiro refutar a realidade. E como a realidade não se dobra à retórica, continuarão frustrados.

Aos que me chamaram de falso, repito: lavem suas bocas. A verdade não teme a crítica; mas exige respeito. E é em nome dessa verdade — que liberta e dá sentido ao Direito — que continuo escrevendo, estudando e servindo.

Nota de rodapé

  1. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, I-II, q. 57, a. 4: “Ars est recta ratio factibilium”.

Referências bibliográficas

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Tradução de Alexandre Corrêa. São Paulo: Loyola, 2001.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 2009.

D’ORS, Álvaro. Ensayos de historia jurídica. Madrid: Rialp, 1960.

ISIDORO DE SEVILHA. Etimologias. Tradução e notas de Justo Pérez de Urbel. Madrid: BAC, 2004.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

Uber no Brasil antes de 2014: os bastidores de uma chegada silenciosa

Resumo

Embora o lançamento oficial do Uber no Brasil tenha ocorrido em maio de 2014, há relatos consistentes de que o serviço já era conhecido e até utilizado por algumas empresas no Rio de Janeiro anos antes disso. Este artigo busca investigar esse fenômeno, considerando a expansão internacional da empresa, o contexto urbano e corporativo da capital fluminense e os mecanismos de mobilidade executiva disponíveis entre 2011 e 2013. A hipótese é que, mesmo antes de sua atuação pública e comercial, o modelo da Uber já circulava de maneira restrita, como solução corporativa sob demanda.

1. Introdução

A história oficial da Uber no Brasil começa em maio de 2014, com o lançamento do UberBlack na cidade do Rio de Janeiro. No entanto, relatos de usuários e profissionais do mercado corporativo sugerem que o serviço ou algo muito semelhante já circulava discretamente antes disso, entre os anos de 2011 e 2013. Não se tratava de um lançamento comercial, mas de uma fase prévia, com atuação restrita a nichos empresariais, com forte presença de empresas multinacionais, consultorias, bancos de investimento e companhias de petróleo instaladas no Rio.

2. Uber: da fundação à internacionalização

Fundada em 2009, em São Francisco (EUA), a Uber começou como um serviço premium de carros pretos sob demanda (UberCab). Sua proposta era simples: permitir que o usuário chamasse um motorista pelo celular com rapidez e transparência de preços.

A expansão internacional começou em 2011, com Paris como uma das primeiras cidades fora dos Estados Unidos a receber o serviço. De lá, o modelo se espalhou rapidamente por metrópoles conectadas a fluxos globais de capital, como Londres, Toronto, Sydney e Dubai.

Dado o protagonismo do Rio de Janeiro como sede da Petrobras, da Shell Brasil e de diversas multinacionais, e considerando o boom econômico vivido pelo Brasil até 2013, não é surpreendente que a cidade tenha sido mapeada como destino potencial da empresa.

3. Uber for Business e testes fechados

O serviço Uber for Business foi lançado oficialmente apenas em 2014, mas a Uber já vinha testando soluções B2B (business to business) com empresas de grande porte, especialmente em cidades com alto fluxo de executivos internacionais.

Durante essa fase beta, algumas empresas no Brasil podem ter tido acesso antecipado à plataforma como forma de reduzir os custos logísticos com motoristas terceirizados, vans e táxis corporativos. Não se tratava de um produto comercial para o público geral, mas sim de um serviço intermediado por convênios com empresas, onde o pagamento era feito via centros de custo empresariais, não por meio do aplicativo acessível ao consumidor comum.

A ausência de marketing direto ao público e a discrição nos contratos de prestação de serviço podem explicar por que essas primeiras atuações da Uber não aparecem em registros oficiais ou reportagens da época.

4. Rio de Janeiro: terreno fértil para a mobilidade executiva

Entre 2011 e 2013, o Rio de Janeiro vivia um momento singular. Era o centro das operações pré-sal, sede de grandes eventos como a Conferência Rio+20 (2012) e palco da preparação para a Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. O fluxo de executivos internacionais aumentou exponencialmente, e as empresas buscavam soluções seguras, práticas e discretas de transporte.

Neste contexto, soluções como motoristas executivos por app, serviços de carros premium sob demanda e plataformas logísticas corporativas começaram a emergir. Mesmo sem o nome “Uber” visível ao público, os princípios do serviço — agendamento por aplicativo, pagamento automático, geolocalização e carros pretos — já estavam em uso no meio corporativo.

5. O lançamento oficial e a mudança de paradigma (2014)

Foi apenas em maio de 2014 que o público geral teve acesso à Uber, com o início do UberBlack no Rio. Em novembro do mesmo ano, o UberX foi lançado, popularizando o serviço e marcando o início dos conflitos com os táxis e o debate sobre a regulamentação.

A mudança foi brusca: o que antes era restrito ao meio empresarial passou a estar ao alcance de qualquer cidadão com smartphone e cartão de crédito. O que era exceção virou regra, alterando de forma duradoura o panorama do transporte urbano no Brasil.

6. Considerações finais

A história da Uber no Brasil não começa em 2014 — apenas torna-se pública a partir desse ponto. Antes disso, ela já existia em silêncio, escondida nos bastidores corporativos, atuando como solução privada para uma elite executiva globalizada. Essa presença embrionária é mais um exemplo de como inovações tecnológicas chegam primeiro às bordas invisíveis da sociedade — nos contratos empresariais, nos testes piloto e nas necessidades estratégicas — antes de se tornarem parte do cotidiano.

Referências

  1. ISAAC, Mike. Super Pumped: The Battle for Uber. Nova York: W. W. Norton & Company, 2019.

  2. UBER. Histórico da Uber. Disponível em: https://www.uber.com. Acesso em: ago. 2025.

  3. G1. “Uber começa a operar no Rio com serviço de carro de luxo.” Publicado em 27/05/2014.

  4. EXAME. “Uber chega a São Paulo e já enfrenta resistência.” Publicado em 30/06/2014.

  5. THE GUARDIAN. “Uber's rapid expansion strategy: go in hard, then ask for forgiveness.” 2014.

O estreito de Ormuz e a geopolítica do petróleo: um gargalo estratégico global

Introdução

O Estreito de Ormuz constitui uma das rotas marítimas mais estratégicas do mundo contemporâneo. Localizado entre o Golfo Pérsico e o Golfo de Omã, essa passagem estreita tem pouco mais de 30 quilômetros de largura e é responsável por uma parcela significativa do comércio global de petróleo. Sua importância estratégica e econômica atrai a atenção constante de grandes potências, como os Estados Unidos, a China e a Rússia, além dos países do Oriente Médio.

A importância geopolítica do estreito

O Estreito de Ormuz é uma via vital para o escoamento do petróleo extraído nas monarquias do Golfo, como Arábia Saudita, Kuwait, Emirados Árabes Unidos, Bahrein e Qatar. Aproximadamente 20% do petróleo mundial passa por esse estreito, o que representa cerca de um quinto da produção global¹. Essa dependência torna o local um verdadeiro "gargalo" para a economia internacional.

Além disso, o estreito é uma via crítica para o fornecimento de gás natural, principalmente do Qatar, o maior exportador mundial de gás natural liquefeito (GNL)². O controle ou bloqueio dessa passagem teria impactos diretos sobre os preços globais de energia, com consequências econômicas de grande escala, especialmente em momentos de conflito no Oriente Médio.

A conjuntura regional e os interesses das potências

O Irã, localizado na margem norte do estreito, desempenha papel central nessa equação. O país frequentemente ameaça fechar o Estreito de Ormuz como forma de retaliação a sanções internacionais ou a ações militares adversárias, especialmente dos Estados Unidos³. Essa ameaça é levada a sério por Washington, que mantém bases militares na região e patrulhas navais constantes com o objetivo de garantir a liberdade de navegação.

O temor de um eventual conflito entre Irã e seus adversários geopolíticos, sobretudo Arábia Saudita, Israel e Estados Unidos, torna o estreito uma zona de constante tensão. Os EUA consideram qualquer bloqueio ao Estreito de Ormuz como uma "linha vermelha" — uma violação grave da ordem internacional, que justificaria ações militares imediatas⁴.

As potências emergentes e a disputa pelo controle marítimo

A China, que depende crescentemente das importações de petróleo do Oriente Médio, tem manifestado preocupação com a segurança dessa rota. Investimentos chineses em infraestrutura portuária, corredores energéticos e acordos estratégicos com países do Golfo revelam a tentativa de Pequim de garantir acesso estável aos recursos energéticos⁵. A Rússia, por sua vez, embora não dependa diretamente do Estreito de Ormuz, vê na instabilidade regional uma oportunidade para ampliar sua influência no Oriente Médio, principalmente por meio da cooperação com o Irã e a Síria.

Histórico e Direito Internacional do Estreito de Ormuz

Historicamente, o Estreito de Ormuz foi controlado por diferentes impérios — persas, árabes, otomanos e, por um período, europeus (notadamente portugueses e britânicos). Desde o século XVI, a navegação pelo estreito teve valor estratégico para a dominação dos mares e o controle do comércio entre Europa e Ásia.

Do ponto de vista jurídico, o Estreito de Ormuz é regido por princípios do Direito Internacional Marítimo, em especial pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), assinada em Montego Bay em 1982. O artigo 38 da convenção garante o direito de passagem de trânsito por estreitos utilizados para a navegação internacional⁶. No entanto, o Irã não é signatário da CNUDM e argumenta que apenas o direito de passagem inocente se aplica ao estreito — uma distinção que implica restrições, especialmente no caso de navios militares.

Essa ambiguidade jurídica serve como instrumento de pressão por parte do Irã, que, apesar de não impedir rotineiramente o tráfego, mantém o poder de ameaçar sua interrupção como instrumento de barganha.

Conclusão

O Estreito de Ormuz é mais do que uma simples passagem marítima: é um ponto nevrálgico da geopolítica mundial. Controlá-lo — ou mantê-lo aberto — significa garantir a fluidez do comércio global de petróleo e, portanto, a estabilidade da economia mundial. Em tempos de tensão internacional, como os que vivemos, o estreito assume uma centralidade estratégica incontornável. A vigilância permanente das potências sobre a região revela que, enquanto o mundo depender de petróleo e gás natural, Ormuz continuará sendo um dos epicentros da geopolítica global.

Notas de Rodapé

  1. U.S. Energy Information Administration (EIA). World Oil Transit Chokepoints. Washington, D.C.: EIA, 2023. Disponível em: https://www.eia.gov.

  2. International Energy Agency (IEA). Gas 2023: Analysis and Forecast to 2026. Paris: IEA, 2023.

  3. BBC News. Iran threatens to close Strait of Hormuz amid tensions with US. BBC, 4 jan. 2020.

  4. CHOMSKY, Noam. Who Rules the World? New York: Metropolitan Books, 2016. Cap. 8: "The Persian Gulf and Strategic Oil".

  5. ROLLAND, Nadège. China’s Eurasian Century? Political and Strategic Implications of the Belt and Road Initiative. Washington, D.C.: National Bureau of Asian Research, 2017.

  6. UNITED NATIONS. United Nations Convention on the Law of the Sea (UNCLOS). Montego Bay, 10 December 1982. Art. 38.

Referências Bibliográficas 

BBC NEWS. Iran threatens to close Strait of Hormuz amid tensions with US. BBC News, 4 jan. 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/news/world-middle-east-50979463. Acesso em: 2 ago. 2025.

CHOMSKY, Noam. Who Rules the World? New York: Metropolitan Books, 2016.

INTERNATIONAL ENERGY AGENCY. Gas 2023: Analysis and Forecast to 2026. Paris: IEA, 2023. Disponível em: https://www.iea.org/reports/gas-2023. Acesso em: 2 ago. 2025.

ROLLAND, Nadège. China’s Eurasian Century? Political and Strategic Implications of the Belt and Road Initiative. Washington, D.C.: National Bureau of Asian Research, 2017.

UNITED NATIONS. United Nations Convention on the Law of the Sea. Montego Bay, 10 dez. 1982. Disponível em: https://www.un.org/depts/los/convention_agreements/texts/unclos/unclos_e.pdf. Acesso em: 2 ago. 2025.

U.S. ENERGY INFORMATION ADMINISTRATION. World Oil Transit Chokepoints. Washington, D.C.: EIA, 2023. Disponível em: https://www.eia.gov/international/analysis/special-topics/World_Oil_Transit_Chokepoints. Acesso em: 2 ago. 2025. 

sexta-feira, 1 de agosto de 2025

BRPIX: uma proposta de sistema comunitário de pagamentos instantâneos em dólar e real para brasileiros na Flórida

Resumo

O presente artigo propõe a criação de uma solução de pagamentos inspirada no sistema Pix brasileiro, mas voltada para a comunidade brasileira nos Estados Unidos, em especial na Flórida. A proposta se ancora na ideia de um sistema alternativo, transnacional e comunitário, que opere em dólar e real, integrando recursos tecnológicos e jurídicos para permitir liquidações instantâneas entre os dois países. Essa inovação representaria uma resposta pragmática à lentidão de sistemas como o Zelle e o FedNow, promovendo soberania econômica da diáspora brasileira e oferecendo uma alternativa ao controle estatal sobre os meios de pagamento.

1. Introdução

Com mais de 1,7 milhão de brasileiros vivendo nos Estados Unidos, sendo mais de 500 mil somente na Flórida¹, a comunidade brasileira enfrenta desafios específicos no que tange à transferência de valores entre o Brasil e os EUA. Sistemas como o Zelle e o FedNow não conseguem oferecer a mesma eficiência, interoperabilidade e liquidação instantânea que o Pix proporciona no Brasil². Neste cenário, propõe-se o BRPIX: uma plataforma privada e comunitária, inspirada no Pix, que aceite simultaneamente dólar (USD) e real (BRL), integrando tecnologias de pagamento instantâneo com soluções de câmbio.

2. Diferenças entre Pix, Zelle e FedNow

2.1 Pix

O Pix é uma infraestrutura de pagamentos criada e mantida pelo Banco Central do Brasil. Ele permite a transferência de valores 24 horas por dia, todos os dias da semana, com liquidação instantânea, chaves simplificadas e QR Codes padronizados³.

2.2 Zelle

Zelle é um sistema criado por grandes bancos norte-americanos, mas que não possui interoperabilidade universal e não aceita estrangeiros com status irregular ou contas não emitidas por bancos compatíveis. Além disso, sua operação é limitada ao território americano e ao dólar⁴.

2.3 FedNow

O FedNow, sistema lançado em 2023 pelo Federal Reserve, visa ser uma solução de liquidação instantânea entre bancos americanos. Contudo, ainda está em processo de adoção e não é voltado diretamente ao consumidor⁵. Também é restrito ao dólar e à jurisdição americana. 

3. Proposta do BRPIX: fundamentos técnicos e jurídicos

3.1 Fundamento técnico

A proposta do BRPIX consiste em:

  • Infraestrutura baseada em cloud computing com APIs abertas, como as do Open Banking.

  • Conversão automática entre USD e BRL via plataformas como Wise, Remessa Online ou contratos P2P registrados em blockchain.

  • Emissão de QR Codes bilaterais, com taxa de câmbio embutida.

  • Chaves únicas baseadas em telefone, CPF ou SSN.

  • Operação com autenticação de dois fatores, geolocalização e compliance com as regulações de ambas as jurisdições.

3.2 Fundamento jurídico

A operação poderia ser organizada por meio de:

  • Uma holding registrada nos EUA, em conformidade com o Bank Secrecy Act e o FinCEN (Financial Crimes Enforcement Network).

  • Parcerias com instituições brasileiras autorizadas pelo Banco Central.

  • Contratos privados para validação das transações internacionais, respaldados pelo Código Civil brasileiro e pelo Uniform Commercial Code americano⁶.

4. Aplicações práticas e impacto na comunidade

4.1 Casos de uso

  • Um familiar nos EUA envia US$ 100 via BRPIX, e o destinatário no Brasil recebe R$ 540 na hora, com câmbio fixado no momento da transação.

  • Um comerciante brasileiro vende um serviço a um cliente na Flórida, que paga em dólar. A plataforma converte o valor e o comerciante recebe em real instantaneamente, sem precisar operar o câmbio por conta própria.

4.2 Aceitação informal no Brasil

Como o meio de pagamento não é moeda, mas sim uma forma de quitação contratual, o BRPIX pode ser aceito no Brasil da mesma forma que cartões internacionais, PayPal ou gift cards. O foco está na confiança e liquidez da rede, não na autorização estatal prévia.

4.3 Potencial estratégico

A criação do BRPIX fortalece a soberania da comunidade brasileira nos EUA, oferecendo:

  • Menor dependência do Estado brasileiro.

  • Uma ponte paralela entre os dois países.

  • A possibilidade de operar no mercado digital global sem amarras burocráticas excessivas.

  • Uma base para negociações comunitárias e desenvolvimento de capital social e financeiro transnacional⁷.

5. Conclusão

A proposta do BRPIX não apenas responde às deficiências dos sistemas Zelle e FedNow em relação ao Pix, mas também inaugura um modelo inovador de soberania econômica comunitária. Ao possibilitar pagamentos instantâneos em dólar e real, com segurança e eficiência, a comunidade brasileira da Flórida pode se tornar protagonista de uma revolução silenciosa nos meios de pagamento internacionais. O sistema se coloca como alternativa real à hegemonia estatal e prepara o terreno para uma nova lógica de liberdade financeira assentada na confiança, tecnologia e solidariedade transnacional.

Referências

  1. ITAMARATY. Brasileiros no Mundo - Relatório 2022. Brasília: Ministério das Relações Exteriores, 2022.

  2. ARAGÃO, Ricardo. “FedNow: o que é e como funciona o sistema de pagamentos instantâneos dos EUA.” Canaltech, 2023. Disponível em: https://canaltech.com.br. Acesso em: 2 ago. 2025.

  3. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Sistema de Pagamentos Instantâneos – Pix. Brasília: BCB, 2020. Disponível em: https://www.bcb.gov.br/estabilidadefinanceira/pix. Acesso em: 2 ago. 2025.

  4. ZELLE. Frequently Asked Questions. Disponível em: https://www.zellepay.com. Acesso em: 2 ago. 2025.

  5. FEDERAL RESERVE. FedNow Service. Washington, D.C.: The Federal Reserve, 2023. Disponível em: https://www.frbservices.org. Acesso em: 2 ago. 2025.

  6. BRASIL. Código Civil. Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002. E.U.A.: Uniform Commercial Code - UCC 4A – Funds Transfers. National Conference of Commissioners on Uniform State Laws, 2023.

  7. OSTROM, Elinor. Governing the Commons: The Evolution of Institutions for Collective Action. Cambridge: Cambridge University Press, 1990.