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sábado, 2 de agosto de 2025

O direito como arte da segurança jurídica: em defesa de uma definição prudente

Durante o período em que estive no Curso Glioche, propus uma definição que, à época, escandalizou alguns: o Direito é a arte da segurança jurídica. Um aluno do professor Olavo de Carvalho, sem pestanejar, qualificou minha definição como “falsíssima”. Com o tempo, porém, a realidade se impôs. Hoje posso dizer, com serenidade: desafio qualquer um a refutar os fatos — pois eles confirmam que eu estava, no mínimo, muito próximo da verdade.

A crítica que recebi, embora empolada de erudição, falhava em seu ponto essencial: compreender o Direito como realidade vivida, como experiência prudencial, antes de ser tratado como mera construção teórica. O tempo — esse juiz silencioso — revelou que a estabilidade, a previsibilidade e o respeito às formas jurídicas são hoje os únicos redutos possíveis contra a barbárie jurídica de nossos dias. Quando juízes legislam, quando promotores se tornam verdugos políticos, quando o cidadão já não sabe mais o que pode e o que não pode fazer, o clamor por segurança jurídica se ergue como voz de um povo perdido no labirinto do arbítrio. E o Direito, se não é mais capaz de garantir essa segurança, já não é Direito — é engenharia social, é fetiche ideológico.

A arte como saber prudencial

Para muitos, o termo “arte” soa como algo técnico ou meramente estético. No entanto, na tradição clássica, ars é saber prático orientado por um fim racional. Aristóteles, em sua Ética a Nicômaco, distingue a arte (technê) da ciência (episteme) e da prudência (phronesis), reconhecendo à arte um lugar legítimo nas ações humanas regradas por princípios (ARISTÓTELES, 2009). Tomás de Aquino, ao tratar das virtudes intelectuais, afirma que a arte é “ratio recta factibilium” — a reta razão do que pode ser feito¹. Nesse sentido, chamar o Direito de arte é recolocá-lo em seu devido lugar: um saber prático ordenado ao bem comum, cuja realização exige julgamento prudencial, mediado pela experiência e pelo tempo.

Segurança Jurídica como finalidade intrínseca

Dizer que o Direito é arte da segurança jurídica é apontar para um de seus fins próprios: tornar estável aquilo que é justo. Não basta que haja justiça; é preciso que ela seja comunicável, previsível, vinculante. A tradição do rule of law, herdada do direito romano e desenvolvida pela cristandade medieval, sempre reconheceu que a previsibilidade das normas, a estabilidade dos contratos, a integridade dos procedimentos, são condições essenciais para o florescimento da justiça em sociedade.

Álvaro d’Ors, em sua obra Ensayos de historia jurídica, insiste que a função do jurista é, antes de tudo, discernir o justo concreto (ius), mas que este justo só se realiza efetivamente se for dotado de estabilidade e inteligibilidade (D’ORS, 1960). É precisamente isso que a segurança jurídica proporciona.

Miguel Reale, por sua vez, ao desenvolver sua teoria tridimensional do Direito, reconhece que a estrutura normativa não basta: é preciso que haja efetividade social e valor reconhecido — sem os quais o Direito se torna um espectro formal (REALE, 2002). A segurança jurídica é o ponto em que esses três elementos se equilibram: norma, fato e valor.

Contra a arbitrária vontade do poder

A crítica à minha definição é sintoma de uma mentalidade cada vez mais comum: a de que o Direito deve ser instrumento de transformação social, isto é, da vontade arbitrária do poder travestida de legitimidade normativa. Nada mais distante da tradição jurídica ocidental. Desde Ulpiano, passando por Cícero, Isidoro de Sevilha e culminando nos grandes canonistas e civilistas da Idade Média, o Direito foi compreendido como ars boni et aequi — arte do bem e do justo (ISIDORO DE SEVILHA, 2004).

O justo, por sua vez, exige ordem; e a ordem exige permanência. Não se pode falar de justiça sem continuidade, sem limites ao arbítrio, sem formas estáveis de aplicação. Quando se rompe a segurança jurídica, instaura-se o império do capricho. Um juiz que hoje diz uma coisa, amanhã diz outra. Uma norma que hoje protege, amanhã oprime. Um povo que hoje é cidadão, amanhã é réu sem defesa. O Direito perde sua alma.

A autoridade que vem de cima

A fidelidade à verdade é critério superior ao aplauso acadêmico. Antes de dialogar com qualquer homem — mesmo os ditos “alunos do Olavo” — dialogo com o verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, no sacramento da confissão. E Ele nunca me condenou por essa definição. Aliás, se há algo que se confirma ao longo da história da salvação é a fidelidade de Deus à sua palavra, à sua Lei, à sua Aliança. Isso é segurança jurídica em sua forma mais elevada: a estabilidade da justiça divina, imitada na ordem das nações.

Conclusão

Portanto, reafirmo com plena convicção: o Direito é a arte da segurança jurídica. Ele só pode realizar sua missão se for capaz de proteger o homem contra os ímpetos do arbítrio e contra as modas que corrompem a verdade. Os que rejeitam essa definição devem primeiro refutar a realidade. E como a realidade não se dobra à retórica, continuarão frustrados.

Aos que me chamaram de falso, repito: lavem suas bocas. A verdade não teme a crítica; mas exige respeito. E é em nome dessa verdade — que liberta e dá sentido ao Direito — que continuo escrevendo, estudando e servindo.

Nota de rodapé

  1. AQUINO, Tomás de. Suma Teológica, I-II, q. 57, a. 4: “Ars est recta ratio factibilium”.

Referências bibliográficas

AQUINO, Tomás de. Suma Teológica. Tradução de Alexandre Corrêa. São Paulo: Loyola, 2001.

ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco. Tradução de Mário da Gama Kury. Brasília: Editora UnB, 2009.

D’ORS, Álvaro. Ensayos de historia jurídica. Madrid: Rialp, 1960.

ISIDORO DE SEVILHA. Etimologias. Tradução e notas de Justo Pérez de Urbel. Madrid: BAC, 2004.

REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.

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