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quarta-feira, 3 de setembro de 2025

Os dois mundos das cinco Américas e a Doutrina Monroe: crise, fronteira e poder na formação do continente

Introdução

A palavra “americano” costuma ser confundida com “estadunidense”. Entretanto, a América é um continente plural, com raízes culturais, religiosas e linguísticas distintas, que se desdobram em pelo menos cinco grandes áreas de influência: a franco-americana, a hispano-americana, a luso-americana, a anglo-americana e a batavo-americana. Como observou Jânio Quadros, nessas cinco Américas existem pelo menos dois mundos bem definidos, cuja tensão interna molda a história do continente.

Esse panorama pode ser compreendido à luz de dois conceitos filosóficos e históricos: o de crise, formulado por Mário Ferreira dos Santos, e o de fronteira (frontier), elaborado por Frederick Jackson Turner. Ambos ajudam a entender como as Américas se constituem como espaço de encontro, ruptura e síntese civilizacional.

A crise como ruptura e síntese

Para Mário Ferreira dos Santos, a crise não é apenas instabilidade, mas a perda de sentido de um modo de ser ou agir. Quando um sistema cultural deixa de responder aos desafios da vida, ele entra em colapso, fragmenta-se, dispersa-se em busca de novas respostas. A superação da crise ocorre quando surge uma síntese superior, capaz de recompor o que estava disperso e dar conta das exigências que o passado não soube responder.

A fronteira como crise cultural

Frederick Jackson Turner, ao formular a tese da frontier para explicar a formação da identidade americana, mostra que a fronteira não é um limite geográfico fixo, mas um processo dinâmico de transformação cultural. Ao avançar para novos territórios, uma civilização entra em crise: seus antigos padrões já não bastam para lidar com novas condições geográficas, econômicas e humanas. Daí nasce a reinvenção cultural.

Se juntarmos Turner e Mário Ferreira, podemos afirmar que a fronteira é uma crise em movimento: um espaço-tempo onde modos antigos deixam de bastar e novos modos são forjados.

As cinco Américas

Nesse sentido, o continente americano é formado por cinco grandes áreas culturais, cada uma resultado de um processo de crise e fronteira:

  1. Franco-americana – Quebec, Caribe francófono e Guiana Francesa, onde a herança católica e iluminista francesa se mesclou às condições locais.

  2. Hispano-americana – da Nova Espanha ao Cone Sul, marcada pela cultura barroca, pelo catolicismo e por sucessivas crises de identidade diante da modernidade.

  3. Luso-americana – centrada no Brasil, mas também presente no Uruguai, Paraguai e até em antigas possessões da Flórida, com um catolicismo de matriz portuguesa que se transformou ao se expandir para um território continental.

  4. Anglo-americana – EUA, Canadá e Caribe britânico, onde o protestantismo, o liberalismo e a industrialização marcaram fronteiras sucessivas.

  5. Batavo-americana – Suriname, Antilhas Holandesas e breves possessões no Nordeste brasileiro, onde a herança comercial e marítima da Holanda se enraizou.

Cada uma dessas Américas nasceu de uma crise: o transplante de uma civilização europeia que se viu forçada a lidar com novas realidades e, nesse embate, criou uma síntese inédita.

Os dois mundos nas cinco Américas

Jânio Quadros percebeu que, apesar dessa diversidade, há uma divisão mais profunda: a existência de dois mundos dentro das Américas.

  1. O mundo anglo-saxão: liberal, protestante, industrial, ligado ao dinamismo das fronteiras em expansão.

  2. O mundo ibérico (luso-hispânico): católico, barroco, inicialmente agrário, que depois buscou modernizar-se em tensão com sua herança cultural.

As outras Américas – franco e batava – oscilam entre esses polos, revelando que o continente é marcado por uma dialética entre dois grandes modelos de civilização.

Doutrina Monroe e América First

Quando os norte-americanos falam em “América”, muitas vezes ignoram essa pluralidade. A Doutrina Monroe (1823), proclamando “América para os americanos”, pressupõe um continente unificado sob a esfera de influência estadunidense. No entanto, historicamente:

  • América Espanhola: os países não eram colônias tirânicas, mas territórios ligados à metrópole por pactos relativamente equilibrados.

  • América Portuguesa: o Brasil e outras regiões não precisaram romper com Portugal, que não praticava a tirania inglesa.

Portanto, a Doutrina Monroe perde sentido se aplicada à história plural do continente. Seu valor real surge em políticas contemporâneas de centralização nacional, como o America First de Trump, que prioriza a consolidação interna antes da projeção externa — análogo ao conceito stalinista de socialismo em um só país.

Sob essa lógica, a América passa a ser vista não como um continente de múltiplas civilizações em diálogo, mas como uma esfera de poder controlada por interesses nacionais concentrados, ignorando a dinâmica histórica de crise e fronteira que deu origem a suas diversas Américas.

Conclusão

As Américas não são apenas territórios geográficos, mas um laboratório histórico de crises e fronteiras. Cada uma das cinco Américas representa uma experiência de dispersão e síntese, e todas são atravessadas pela tensão entre dois mundos: o anglo-saxão e o ibérico.

A Doutrina Monroe e o America First representam tentativas de impor unidade ou hegemonia sobre esse continente plural, mas muitas vezes desconsideram o caráter histórico das Américas como espaço de múltiplas crises e fronteiras. Compreender a América sob a ótica de Mário Ferreira e Turner é perceber que a crise não é destruição, mas o motor da renovação cultural e civilizacional.

Bibliografia Comentada

  • Mário Ferreira dos Santos – Tratado de Crise (1959)
    Conceito filosófico de crise como ruptura de sentido e busca de síntese superior, aplicável à história das Américas.

  • Frederick Jackson Turner – The Frontier in American History (1920)
    Análise da fronteira como espaço de transformação cultural e reinvenção de modos de ser na América.

  • Jânio Quadros – Discursos e escritos políticos (décadas de 1950-1960)
    Observação sobre os dois mundos nas Américas: anglo-saxão e ibérico, sua tensão estrutural e relevância histórica.

  • Richard Morse – O Espelho de Próspero (1988)
    Estudo comparativo entre América ibérica e anglo-americana, evidenciando divergências culturais e políticas.

  • Gilberto Freyre – Casa-Grande & Senzala (1933)
    Demonstra como a cultura portuguesa se adaptou à América tropical, exemplificando fronteira e síntese civilizacional.

  • Octavio Paz – O Labirinto da Solidão (1950)
    Reflexão sobre a identidade hispano-americana e sua relação com crises culturais e modernidade.

  • Doutrina Monroe (1823) e discursos de Trump – America First (2017-2021)
    Fontes políticas primárias para analisar hegemonia, isolamento estratégico e reinterpretação moderna da Doutrina Monroe.

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