A criação da rota direta entre Rio de Janeiro e Abu Dhabi, anunciada pela Mediterranean Shipping Company (MSC), pode parecer apenas mais uma inovação logística na era da globalização. Mas, sob uma lente histórica, ela ecoa a longa tradição do Brasil em participar de ciclos de comércio atlântico que moldaram não apenas sua economia, mas também sua inserção geopolítica no mundo.
1. O Atlântico como matriz histórica
Desde o século XVI, o Brasil esteve ligado ao Atlântico como território-exportador de commodities:
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O ciclo do açúcar ligava o Nordeste brasileiro a Lisboa, Antuérpia e Amsterdã.
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O ciclo do ouro irradiava de Minas Gerais via Rio de Janeiro, conectando-se a Londres.
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O ciclo do café, no século XIX, colocou o porto do Rio de Janeiro como o principal nó do comércio mundial dessa mercadoria.
Esses ciclos tinham um denominador comum: o Brasil exportava matérias-primas ou produtos agrícolas para alimentar o consumo europeu, consolidando-se como parte da engrenagem do Atlântico Norte.
2. A crise da rota tradicional e o deslocamento geopolítico
Com a ascensão dos Estados Unidos no século XX e a concentração das rotas marítimas no eixo Atlântico Norte–Pacífico Norte, o Brasil viu seu protagonismo marítimo reduzir-se. O Porto de Santos substituiu o do Rio de Janeiro como centro exportador, mas sempre em conexão prioritária com a Europa e os EUA.
Por muito tempo, o Atlântico Sul foi visto como periferia estratégica, carente de relevância frente ao Mediterrâneo, ao Canal de Suez e ao eixo transatlântico do Norte.
3. O ciclo da carne refrigerada e a retomada
A rota Rio–Abu Dhabi insere o Brasil em um novo ciclo: o da carne refrigerada e das exportações alimentares de alto valor agregado. Diferente do açúcar e do café, que dependiam quase exclusivamente do consumo europeu, este novo ciclo é voltado para os mercados do Oriente Médio e da Ásia, regiões em franco crescimento populacional e com necessidade estrutural de importar alimentos.
Essa mudança representa um deslocamento geopolítico: o Brasil deixa de estar preso ao eixo atlântico-norte e projeta-se diretamente para o oceano Índico e o Golfo Pérsico. É, em certo sentido, uma “reorientação” que lembra a época dos descobrimentos portugueses, quando Lisboa buscava rotas diretas para a Índia contornando intermediários.
4. O papel do Rio de Janeiro no renascimento marítimo
Historicamente, o Porto do Rio de Janeiro foi o grande articulador dos ciclos coloniais e imperiais brasileiros. O ouro de Minas, o café do Vale do Paraíba e a centralidade política do Império passavam por ele.
Com o avanço de Santos no século XX, o Rio perdeu centralidade econômica, mas manteve simbolismo geopolítico. Agora, com a rota da MSC, o Rio pode voltar a ser um nó global — não mais voltado para a Europa, mas para o Oriente. Esse movimento reatualiza sua vocação histórica de porto imperial, reposicionado no tabuleiro contemporâneo.
5. Conclusão: novos mares, antigas continuidades
A rota Rio–Abu Dhabi é mais do que um corredor logístico. É a prova de que a história não se repete, mas ressoa em novos contextos.
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Se no século XVII o açúcar fez do Brasil uma extensão atlântica da economia europeia, hoje a carne refrigerada faz do Brasil um fornecedor vital do Oriente Médio.
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Se o Rio de Janeiro já foi o grande porto do ouro e do café, pode agora tornar-se um porto estratégico do Sul Global.
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Se no passado o Atlântico Norte era o horizonte, hoje o Índico e o Golfo Pérsico são as novas fronteiras.
A geopolítica da conectividade e dos portos mostra, assim, que o Brasil não está condenado à periferia, mas pode reocupar um lugar de centralidade marítima — agora não mais como colônia exportadora, mas como potência agroalimentar que define rotas estratégicas de integração Sul-Sul.
📚 Referências
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Boxer, Charles R. The Portuguese Seaborne Empire, 1415–1825. Hutchinson, 1969.
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Prado Júnior, Caio. Formação do Brasil Contemporâneo. Brasiliense, 1942.
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Dean, Warren. Rio Claro: Um Sistema Brasileiro de Grande Lavoura, 1820–1920. Paz e Terra, 1977.
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Khalili, Laleh. Sinews of War and Trade. Verso, 2020.
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