Nem todo jogo se esgota no instante em que é lançado. Alguns jogos , como o Sid Meier's Railroad Tycoon (1990), parecem atravessar as décadas esperando que o jogador amadureça para estar à altura de suas propostas.
Na infância ou adolescência, título sdessa natureza podiam soar “injogáveis", não pela falta de habilidade manual ou raciocínio rápido — como ocorre em muitos jogos de ação —, mas porque exigiam uma bagagem de vida que ainda não tínhamos: experiência com economia, política, administração de riscos, capacidade de pensar em longo prazo. Eram, podemos dizer, jogos que estavam muito à frente de seu tempo.
O jogo e a vida como rscolas paralelas
Para quem trilhou uma formação acadêmica ou profissional, esses jogos funcionam quase como um espelho.
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A faculdade de Direito ensina lógica, regras e estrutura institucional — conceitos que ecoam diretamente em Civilization, onde as leis da história moldam os destinos das nações.
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A convivência com a economia, seja em cursos ou conversas, abre o olhar para os cálculos de custo-benefício, riscos e investimentos de Railroad Tycoon.
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A era da Internet, das redes sociais e agora da Inteligência Artificial acrescenta repertório cultural, técnico e estratégico, permitindo compreender a complexidade interconectada que esses simuladores anteciparam nos anos 90.
Assim, o tempo age como um mestre silencioso. Aquilo que era incompreensível na juventude se torna natural décadas depois. O jogo não mudou; nós é que mudamos.
O save eterno da experiência
Jogadores experientes costumam criar o que chamam de “save eterno”: um banco de memórias digitais de onde se pode sempre retornar, explorar caminhos diferentes, retroagir.
Na vida, o processo é parecido: vamos acumulando “saves” em forma de aprendizado, amizades, fracassos e descobertas, que depois se transformam em atalhos cognitivos para enfrentar desafios antes intransponíveis.
Talvez por isso jogos como The Guild 2 ou Civilization sejam tão fascinantes quando revisitados. Eles não pedem apenas reflexo ou destreza, mas uma alma cultivada pela paciência e pela experiência. Jogá-los na vida adulta é quase um reencontro com aquilo que já estava escrito para nós, mas só poderia ser decifrado no momento certo.
O tempo como aliado
No fim, esses jogos provam que o tempo não é inimigo do jogador, mas aliado.
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Na juventude, eles parecem enigmas indecifráveis.
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Na maturidade, revelam-se mestres pacientes, que nos treinam a enxergar conexões invisíveis, a planejar no longo prazo, a respeitar os limites e possibilidades de cada escolha.
Jogos que envelhecem conosco são raros, mas quando isso acontece, não estamos apenas jogando: estamos constatando que a própria vida nos preparou para jogar.
Bibliografia
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Huizinga, Johan. Homo Ludens: O Jogo como Elemento da Cultura. Perspectiva, 2010.
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Caillois, Roger. Os Jogos e os Homens. Cotovia, 1990.
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Juul, Jesper. Half-Real: Video Games between Real Rules and Fictional Worlds. MIT Press, 2005.
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Gee, James Paul. What Video Games Have to Teach Us About Learning and Literacy. Palgrave Macmillan, 2003.
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Salen, Katie; Zimmerman, Eric. Rules of Play: Game Design Fundamentals. MIT Press, 2004.
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Schell, Jesse. The Art of Game Design: A Book of Lenses. CRC Press, 2008.
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