Introdução
O carry trade, no sentido clássico, refere-se à arbitragem financeira baseada em diferenças de taxas de juros entre países. Como notam Keynes (1930) e, mais recentemente, Kindleberger (1978), o capital internacional busca constantemente os fluxos de maior rentabilidade, movendo-se entre moedas e jurisdições.
O presente artigo propõe uma extensão original desse conceito: um carry trade triangular cultural-financeiro, que incorpora não apenas os diferenciais de juros e câmbio, mas também incentivos fiscais e elementos culturais. Tal modelo guarda semelhança com o comércio triangular da Idade Moderna — amplamente descrito por Braudel (1979) e Wallerstein (1980) —, mas reconfigurado para a economia global do século XXI.
1. Do carry trade clássico ao híbrido
O carry trade convencional consiste em tomar empréstimos em moedas de baixo juro e aplicar em moedas de alto juro, capturando o diferencial. Essa prática é central para entender crises financeiras como a do iene japonês nos anos 1990 ou os fluxos de capital para mercados emergentes no início dos anos 2000 (Helleiner, 1994).
No modelo aqui descrito, entretanto, o diferencial de juros é apenas uma camada do processo. O capital circula não apenas em busca de rendimento financeiro, mas também de vantagens fiscais e culturais, aproveitando assimetria regulatória e tributária entre Brasil, EUA e Europa.
2. Estrutura Triangular
O modelo articula três vértices geoeconômicos:
-
Brasil – Taxa Selic elevada, programas de fidelidade como Livelo, e isenção tributária na compra de livros. Aqui ocorre a conversão de reais em pontos/milhas, que funcionam como uma quase-moeda.
-
Estados Unidos (Flórida) – Estabilidade institucional, conta bancária em dólar com acesso a sistemas de pagamento como Zelle, e mercado consumidor formado pela diáspora brasileira e hispânica. Os livros físicos digitalizados são monetizados em dólar.
-
Europa (Portugal e Espanha) – Portugal fornece residência e caminho para cidadania europeia; a Espanha adiciona o detaxe imediato, criando arbitragem fiscal. Esse vértice amplia o ciclo triangular e conecta a operação ao euro.
Assim, o capital circula de forma semelhante ao comércio triangular histórico, mas substituindo escravos, manufaturas e matérias-primas por juros, pontos de fidelidade e bens culturais.
3. O ciclo financeiro
-
Receita em dólar (venda de livros nos EUA).
-
Conversão em reais via Wise, aplicados inicialmente em poupança no Brasil.
-
Conversão de reais em pontos (Astropay + Livelo), aproveitando datas promocionais.
-
Transferência para Latam Pass em campanhas de 100% bônus.
-
Venda de milhas em mercado secundário (Hotmilhas), liquidação D+1.
-
Aplicação em CDBs (110% do CDI), capturando juros elevados da Selic.
-
Reconversão em dólar quando o câmbio se mostra favorável.
-
Reenvio do capital aos EUA, reiniciando o ciclo.
Esse percurso caracteriza um verdadeiro carry trade em espiral, no qual o capital se expande a cada ciclo.
4. Comércio Triangular e Capital Cultural
Segundo Braudel (1979), o comércio triangular entre Europa, África e Américas não era apenas mercantil, mas estruturava uma rede de poder global. Analogamente, no modelo aqui descrito, os livros funcionam como mercadorias culturais, dotadas de isenção tributária e alta aceitação simbólica.
O capital cultural, aqui, atua como lastro:
-
No Brasil, livros geram pontos e milhas (capital simbólico convertido em financeiro).
-
Nos EUA e Europa, livros são vendidos a comunidades específicas, criando demanda estável.
-
Digitalizados, tornam-se também ativos imateriais, multiplicando valor sem custos adicionais.
Esse aspecto cultural confere resiliência à operação, pois vincula o fluxo de capitais à circulação de conhecimento.
5. Originalidade e Contribuição
O modelo apresentado se distingue da literatura existente por três razões:
-
Hibridização – une arbitragem de juros, câmbio, fiscalidade e cultura em um mesmo ciclo.
-
Triangularidade – reproduz, em chave contemporânea, a lógica do comércio triangular histórico, agora fundada em bens culturais e digitais.
-
Lastro simbólico – insere a economia da cultura no centro da arbitragem financeira, ampliando a noção de capital para além do monetário, em consonância com a visão de Bourdieu (1986) sobre capital cultural.
Trata-se, portanto, de um novo paradigma teórico, que poderia inaugurar uma vertente de estudos denominada carry trade triangular cultural-financeiro.
Conclusão
A literatura econômica tradicional descreve o carry trade como arbitragem puramente financeira. O modelo aqui proposto demonstra que, na era global, ele pode ser expandido para abarcar tributação, câmbio e cultura, operando de forma triangular entre Brasil, EUA e Europa.
Assim como o comércio triangular da Idade Moderna estruturou o sistema-mundo (Wallerstein, 1980), este novo modelo sugere que o século XXI pode testemunhar a emergência de estratégias híbridas de arbitragem global, em que o capital circula não apenas como dinheiro, mas também como cultura e conhecimento.
Referências Bibliográficas
-
BOURDIEU, Pierre. The Forms of Capital. In: Richardson, J. (ed.). Handbook of Theory and Research for the Sociology of Education. New York: Greenwood, 1986, p. 241-258.
-
BRAUDEL, Fernand. Civilization and Capitalism, 15th–18th Century: The Structures of Everyday Life, Vol. 1. New York: Harper & Row, 1979.
-
HELLEINER, Eric. States and the Reemergence of Global Finance: From Bretton Woods to the 1990s. Ithaca: Cornell University Press, 1994.
-
KEYNES, John Maynard. A Treatise on Money. London: Macmillan, 1930.
-
KINDLEBERGER, Charles P. Manias, Panics, and Crashes: A History of Financial Crises. New York: Basic Books, 1978.
-
WALLERSTEIN, Immanuel. The Modern World-System. New York: Academic Press, 1980.
Nenhum comentário:
Postar um comentário