Introdução
Os jogos de estratégia, como a série Civilization, oferecem não apenas entretenimento, mas também verdadeiros laboratórios intelectuais para pensar a história, a geopolítica e o Direito Internacional. Em Civilization III, o direito de passagem constitui um recurso de alto valor estratégico, permitindo que um império negocie com outro a autorização para o trânsito de tropas e caravanas em território alheio. Essa mecânica, embora simplificada, espelha debates jurídicos e geopolíticos reais sobre soberania, segurança e comércio internacional.
A partir desse ponto de partida, pode-se refletir sobre:
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O paralelo entre a mecânica do jogo e o Direito Internacional Público, em especial a passagem inocente e os tratados de trânsito.
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O papel histórico dos Estados-tampão e sua relevância para a política de contenção.
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O problema dos exclaves e a lógica de unificação territorial.
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A aplicação contemporânea dessas reflexões ao Brasil e à América do Sul, onde estratégias de vizinhança, integração e contenção ainda moldam a política externa.
O direito de passagem: entre a ficção do jogo e o Direito Internacional Público
Em Civilization III, o direito de passagem garante ao jogador acesso temporário a territórios alheios sem violar sua soberania, mediante compensação financeira ou diplomática. Essa lógica remete ao instituto da passagem inocente, previsto no artigo 17 da Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM, 1982), segundo o qual embarcações estrangeiras podem transitar pacificamente no mar territorial de outro Estado, desde que não ameacem sua segurança.
A noção, estendida ao continente, se manifesta nos tratados de trânsito e em acordos de uso de infraestrutura. Exemplos históricos incluem a livre navegação dos rios internacionais (Danúbio, Amazonas, Reno), consagrada em tratados do século XIX, e as concessões de passagem durante conflitos, como os acordos secretos da Segunda Guerra Mundial que permitiram o deslocamento de tropas por territórios neutros.
Estados-Tampão: da teoria ao tabuleiro real da História
A mecânica do Civilization III sugere que, ao negociar passagem com aliados mais fracos, cria-se um Estado-tampão entre si e um inimigo distante. Isso é fiel à história:
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A Polônia serviu de tampão entre a Rússia e a Alemanha por séculos.
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O Afeganistão foi objeto do “Grande Jogo” entre Império Britânico e Rússia.
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A Bélgica, formalmente neutra desde 1839, funcionava como barreira entre França e Alemanha — até ser invadida em 1914.
Estados-tampão são uma forma de terceirizar riscos, transferindo para vizinhos mais fracos o custo de absorver impactos militares ou políticos.
Exclaves e Unificação Territorial
Após a neutralização da ameaça, a lógica do jogo indica que o passo seguinte é integrar exclaves e Estados-clientes ao corpo principal do império. Essa visão corresponde a inúmeros processos históricos:
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A unificação da Alemanha sob Bismarck incorporou pequenos Estados germânicos.
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O Império Romano absorveu progressivamente aliados itálicos até formar um corpo político unificado.
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A Rússia contemporânea mantém Kaliningrado como exclave altamente militarizado, ponto de tensão entre Moscou e a OTAN.
A unificação não é apenas militar: envolve diplomacia, identidade cultural e integração econômica.
O caso brasileiro: geopolítica da passagem e dos vizinhos
Aplicando essa reflexão ao Brasil, vemos como o país também depende de mecanismos análogos ao direito de passagem e aos Estados-tampão:
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Rios e integração continental – O Brasil depende de tratados de trânsito para exportar pelo rio Paraguai até o Atlântico via Argentina e Uruguai. Da mesma forma, a IIRSA (Iniciativa para a Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana) busca garantir corredores logísticos que atravessam Bolívia, Peru e Chile.
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Estados-tampão na prática – Países vizinhos menores, como Paraguai e Uruguai, funcionam parcialmente como amortecedores entre o Brasil e potências regionais, sobretudo a Argentina. O Brasil historicamente cultivou relações estratégicas com esses Estados para evitar que fossem absorvidos por rivais.
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Exclaves políticos e integração regional – O enclave brasileiro de Roraima, cuja ligação terrestre principal depende da Venezuela, é exemplo de vulnerabilidade logística que exige coordenação diplomática. Em outra dimensão, a busca pela integração sul-americana pode ser lida como tentativa de unificar, no longo prazo, áreas de influência sob liderança brasileira, seja via MERCOSUL, seja via iniciativas energéticas (como Itaipu).
Conclusão
O “direito de passagem” do Civilization III não é apenas uma mecânica lúdica, mas uma metáfora da diplomacia real: negociar trânsito, criar zonas-tampão e, quando possível, unificar territórios. Na história e no presente, soberania é sempre negociada, e fronteiras não são linhas fixas, mas espaços de fluxo.
No caso brasileiro, a reflexão revela que a segurança nacional depende tanto da proteção militar quanto da capacidade diplomática de negociar passagem, conter potências rivais e integrar vizinhos. Assim, o jogo mostra-se uma lente útil não só para compreender o passado, mas também para antecipar desafios geopolíticos do presente.
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