Um dos fundamentos da cultura é a capacidade de transformar necessidade em liberdade. Não há cultura verdadeira quando o homem permanece aprisionado apenas à luta pela sobrevivência; a cultura nasce quando ele ordena suas necessidades e alcança uma margem de liberdade que lhe permite realizar algo mais alto.
No Brasil imperial, o pecúlio — pequena poupança formada pelo escravo com o consentimento do senhor — expressava esse princípio de maneira concreta. Do esforço cotidiano, muitas vezes em condições adversas, o escravo juntava recursos que poderiam ser convertidos em alforria. Autores como Robert Slenes (Na senzala, uma flor, 1999) mostram que o pecúlio não apenas libertava, mas dava dignidade, pois criava no escravo a consciência de sujeito econômico e moral. A necessidade de trabalhar para sobreviver transformava-se em um caminho de emancipação. A poupança deixava de ser apenas acumulação e se tornava instrumento de liberdade.
Hoje, de modo diferente, mas análogo, vivemos em uma sociedade onde mecanismos como programas de fidelidade, cashback e o aumento gradual do score de crédito podem, quando usados de forma consciente, introduzir uma lógica parecida. Não se trata de consumir por concupiscência, ou seja, por desejo desordenado e vazio, mas de ordenar as necessidades de tal modo que o consumo se torne eticamente responsável e sustentável. Nesse processo, o consumo deixa de ser desperdício e passa a ser lastro real de riqueza, porque está vinculado a bens e serviços que sustentam a vida digna — alimentação, moradia, transporte, educação, saúde.
Contudo, a economia por si só não basta. Nos méritos de Cristo, essa lógica alcança seu verdadeiro sentido. A liberdade cristã não é apenas ausência de correntes externas, mas a possibilidade de ser alguma coisa em Cristo, por Cristo e para Cristo. Como ensina São Paulo: “Foi para a liberdade que Cristo nos libertou” (Gl 5,1). E ainda: “Onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade” (2Cor 3,17). A verdadeira emancipação, portanto, não se limita a condições materiais, mas encontra sua plenitude na vida em Cristo.
A Doutrina Social da Igreja reforça isso. Leão XIII, na encíclica Rerum Novarum (1891), afirma que a propriedade e o capital, fruto do trabalho honesto e ordenado, não são apenas bens privados, mas têm função social. João Paulo II, em Centesimus Annus (1991), vai além ao mostrar que a economia deve estar sempre a serviço da dignidade humana. Portanto, quando o homem organiza seu consumo, sua produção, seu tempo e seus talentos de forma responsável, ele está participando de um processo cultural maior: formar uma sociedade de pessoas livres e responsáveis em Cristo, por Cristo e para Cristo.
Dessa forma, o consumo consciente, a poupança e a administração responsável dos recursos tornam-se testemunho cultural. Eles não dizem apenas respeito ao indivíduo, mas ao exemplo que pode ser distribuído para os outros. Cada homem ou mulher que conquista a liberdade pela ordenação de suas necessidades dá um passo no sentido de formar uma cultura de pessoas livres e responsáveis em Cristo.
Portanto, da poupança do escravo no século XIX até as práticas de finanças pessoais no século XXI, o princípio é o mesmo: a necessidade pode ser convertida em liberdade. Mas é somente quando essa liberdade se enraíza em Cristo que ela alcança sua plenitude, tornando-se fundamento de uma cultura que não apenas sobrevive, mas floresce na verdade e no amor.
📚 Referências
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SLENES, Robert W. Na senzala, uma flor: esperanças e recordações na formação da família escrava – Brasil Sudeste, século XIX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999.
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LEÃO XIII. Rerum Novarum. Vaticano, 1891.
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JOÃO PAULO II. Centesimus Annus. Vaticano, 1991.
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Bíblia Sagrada: Gl 5,1; 2Cor 3,17.
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