A escravidão, marca profunda da formação social do Brasil, não impediu que muitos escravizados encontrassem formas de lutar pela própria liberdade. Um dos caminhos mais significativos foi o empreendedorismo do cativo, isto é, a capacidade de acumular pecúlio — um pequeno patrimônio — e utilizá-lo para conquistar a alforria. Nesse ponto, libertação e empreendedorismo caminharam lado a lado no Brasil do século XIX.
O pecúlio como semente da liberdade
No período imperial, havia a prática, em muitos locais, de permitir que escravizados exercessem atividades paralelas em seus momentos livres. Podiam cultivar pequenas roças, vender produtos em feiras, prestar serviços de ofício ou até realizar “ganhos” — trabalho urbano autônomo, mediante pagamento de uma parte da renda ao senhor. O excedente, quando não confiscado, era guardado como pecúlio.
Esse dinheiro acumulado podia ser usado de duas formas principais:
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Compra direta da carta de alforria;
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Pagamento parcelado ao senhor, em acordos formais, reconhecidos em cartório.
Com a Lei do Ventre Livre (1871), o direito do escravizado ao pecúlio foi oficialmente reconhecido. Pela primeira vez, a lei afirmava que o cativo podia constituir e administrar bens, inclusive depositando em instituições bancárias. O Banco do Brasil, fundado em 1808 e reorganizado em 1853, tornou-se uma das poucas opções seguras para tais depósitos.
Banco, lei e liberdade
É importante notar: o escravizado, sendo juridicamente considerado propriedade, não podia abrir conta bancária em seu nome antes de 1871. Mas, a partir dessa lei, a situação mudou. O reconhecimento legal permitiu que o pecúlio fosse registrado, guardado e até investido de maneira formal, vinculando o esforço econômico à possibilidade real de libertação.
Assim, um ex-escravizado ou um cativo em vias de obter a liberdade podia administrar recursos no Banco do Brasil e em outras instituições da época. Esse foi um passo silencioso, mas crucial, na transição da escravidão para uma vida livre.
Exemplos históricos de libertação pelo pecúlio
Vários relatos mostram como a liberdade foi conquistada com base nesse “empreendedorismo da sobrevivência”:
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Francisco José do Nascimento, conhecido como o Dragão do Mar, foi escravizado e tornou-se jangadeiro no Ceará. Guardou recursos, comprou a alforria e, já livre, liderou o movimento abolicionista que impediu o embarque de escravos no porto de Fortaleza.
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Luís Gama, embora vendido como escravo ainda criança (de forma ilegal, pois nascera livre), conseguiu sua liberdade estudando e trabalhando. Tornou-se advogado autodidata e foi um dos maiores defensores de cativos que buscavam a alforria nos tribunais.
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Outros tantos anônimos, documentados em cartas de alforria preservadas em arquivos públicos, pagaram com pecúlio, em dinheiro vivo, o preço da liberdade.
Esses casos ilustram a ligação direta entre autonomia econômica e autonomia pessoal.
Libertação como empreendimento
O escravizado que conquistava sua alforria não apenas se libertava juridicamente, mas também ingressava em um novo patamar social e econômico. Passava de objeto de propriedade a sujeito capaz de administrar bens, trabalhar livremente e até prosperar. Em muitos casos, libertos tornavam-se artesãos, pequenos comerciantes, marinheiros, agricultores independentes.
É nesse sentido que podemos dizer que, no Brasil imperial, a libertação foi também um ato de empreendedorismo. Cada alforria conquistada pelo trabalho e pelo pecúlio era uma prova de que, mesmo em um sistema brutal, havia espaço para transformar esforço em liberdade.
Conclusão
A história da escravidão no Brasil mostra que a luta pela liberdade não se deu apenas nas senzalas e quilombos, mas também nos livros de contas, nas feiras livres, nas pequenas economias guardadas em cofres e bancos. Ao permitir que escravizados administrassem pecúlio e o aplicassem na conquista da alforria, o Império acabou criando uma ponte entre empreendedorismo e emancipação.
Essa herança, por mais paradoxal que seja, revela que a liberdade no Brasil, muitas vezes, foi fruto direto da engenhosidade e da disciplina econômica de quem menos tinha.
Bibliografia
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