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sábado, 27 de setembro de 2025

Da confiança pessoal à desconfiança política: quando a vida íntima encontra o Estado instrumentalizado

Vivemos tempos em que a confiança, um dos pilares da vida em comum, tornou-se um bem escasso. Já não basta observar o caráter de alguém, acompanhar suas atitudes ou construir vínculos no convívio; há quem imagine necessário pedir uma folha de antecedentes criminais para avaliar se uma pessoa é apta a iniciar um relacionamento sério. Essa ironia, embora pareça exagerada, revela o nível de insegurança afetiva e social em que estamos mergulhados.

De um lado, há as feridas deixadas por experiências de abuso, golpes, traições e violências diversas, que tornam o coração humano mais cauteloso e menos disposto a confiar. De outro, há o ambiente digital, no qual perfis falsos, discursos manipulados e relações frágeis multiplicam as máscaras que impedem o conhecimento verdadeiro do outro. Nesse cenário, o documento estatal surge como suposta “garantia objetiva” de caráter — mas não passa de uma ilusão burocrática.

O problema ganha contornos ainda mais graves quando o próprio Estado, que deveria fornecer essas garantias de modo impessoal e neutro, passa a ser instrumentalizado com fins ideológicos. Basta olhar para os acontecimentos do 8 de janeiro: milhares de pessoas foram marcadas, muitas vezes sem o devido processo legal equitativo, com a pecha de criminosos. Caso fossem submetidas a esse tipo de exigência — como a tal folha de antecedentes em um contexto de vida privada —, seriam automaticamente excluídas de qualquer relação ou oportunidade que se baseasse em tais critérios.

Aqui se revela a contradição: em vez de assegurar a justiça, o Estado se converte em instrumento de exclusão arbitrária, abandonando a imparcialidade que lhe deveria ser constitutiva. O que era para ser um mecanismo de ordem social impessoal torna-se, nas mãos de interesses ideológicos, um marcador de estigmas.

O resultado é devastador em dois níveis. No plano íntimo, a confiança entre as pessoas definha, pois se transfere para papéis oficiais aquilo que só pode nascer do diálogo, da convivência e da coerência de atitudes. No plano público, a confiança no Estado desmorona, pois já não se enxerga nele a balança equilibrada da justiça, mas sim o braço de um poder faccioso.

Entre o medo de amar e o medo de viver sob regras arbitrárias, o homem comum se vê encurralado. A mesma desconfiança que mina os relacionamentos amorosos corrói a vida política, instaurando uma espiral de insegurança que nem documentos nem tribunais conseguem resolver.

Resta, portanto, recuperar aquilo que não pode ser substituído por nenhum carimbo: a verdade como fundamento da liberdade. É ela que torna possível tanto o amor verdadeiro quanto a justiça imparcial. Sem esse retorno, seguiremos em um mundo onde nem o coração nem o Estado são dignos de confiança — e onde até para amar será preciso pedir um “nada consta”.

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