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quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Da Liga Hanseática ao comércio global: Patrician, Rise of Venice e Winds of Trade na evolução dos jogos de simulação mercantil

Os jogos de simulação mercantil marítima ocupam um nicho peculiar dentro do campo dos videogames de estratégia. Eles não apenas entretêm, mas também oferecem ao jogador uma oportunidade de experimentar — ainda que de forma lúdica — dinâmicas econômicas, sociais e políticas que marcaram períodos cruciais da história. Três títulos se destacam como marcos dessa tradição: Patrician, The Rise of Venice: The Winds of Change e Winds of Trade. Embora relacionados por suas temáticas, cada um representa um estágio distinto da evolução do comércio marítimo e da sua representação digital.

Patrician: a simulação da Liga Hanseática

A série Patrician, iniciada nos anos 1990 e consolidada em Patrician III (2003) e Patrician IV (2010), transporta o jogador ao coração da Liga Hanseática, uma aliança de cidades mercantis que dominou o comércio do Báltico e do Mar do Norte entre os séculos XIII e XVII.

Historicamente, a Liga Hanseática foi muito mais que um acordo comercial: ela constituiu uma verdadeira potência transnacional, com influência política, militar e cultural. Cidades como Lübeck, Hamburgo e Danzig prosperaram graças ao controle de rotas, tarifas e monopólios regionais. O jogo captura esse ambiente ao exigir que o jogador não apenas acumule riqueza, mas também participe da política local, dispute cargos de prestígio e proteja suas rotas contra piratas e rivais.

Assim, Patrician vai além de uma economia de compra e venda: ele simula a lógica de uma sociedade urbana medieval, onde o poder mercantil era inseparável do poder político.

The Rise of Venice: o renascimento do comércio mediterrâneo

Em 2013, a Gaming Minds Studios lançou The Rise of Venice, com a expansão The Winds of Change, retomando o espírito da série anterior, mas transpondo-o para o Mediterrâneo do século XV e XVI.

A escolha de Veneza não foi acidental. Historicamente, a Sereníssima República foi um polo mercantil central, controlando rotas que conectavam a Europa ao Oriente. Seu poder não se limitava à economia: Veneza era também uma potência diplomática e naval, sustentada por uma rede de alianças e conflitos com potências como o Império Otomano e os reinos italianos.

O jogo reflete essa complexidade ao introduzir o sistema de famílias e facções, em que o prestígio social e a influência política são tão importantes quanto a riqueza acumulada. Em vez de se limitar ao comércio, o jogador deve navegar pelas águas turbulentas da política veneziana.

Nesse sentido, The Rise of Venice pode ser visto como a evolução natural da série Patrician, expandindo seu horizonte histórico e aprofundando a dimensão política do gênero. Infelizmente, a ausência de uma sequência interrompeu esse potencial caminho de continuidade.

Winds of Trade: a guinada para o comércio global

Em 2017, surge Winds of Trade, um título independente que, apesar de sua escala menor em termos de produção, introduziu conceitos inovadores. Ambientado no século XVIII, o jogo não se restringe ao comércio europeu: ele lança o jogador em pleno auge do comércio colonial intercontinental.

Esse período histórico foi marcado pela formação de vastos impérios ultramarinos, como o espanhol, o britânico e o holandês. O comércio triangular — conectando Europa, África e Américas — e a disputa por colônias transformaram o oceano Atlântico em um verdadeiro tabuleiro de poder.

Winds of Trade reproduz esse cenário ao oferecer:

  • Rotas comerciais automatizadas e flexíveis, simulando a complexidade do comércio oceânico;

  • Eventos históricos e diplomáticos, como bloqueios, embargos e guerras coloniais;

  • Escopo global, permitindo atuar no Caribe, no Oceano Índico ou no Pacífico.

O jogo não é um sucessor espiritual de Patrician, mas sim uma ramificação paralela: enquanto a série clássica foca na economia urbana e regional, Winds of Trade projeta o gênero para o comércio colonial e a economia global do início da modernidade.

Três estágios da simulação mercantil

Esses três jogos podem ser entendidos como representações distintas de etapas históricas:

  1. Patrician – O comércio medieval, centrado na Liga Hanseática, em que cidades-estado controlavam monopólios regionais.

  2. Rise of Venice – O comércio renascentista, com Veneza como polo de riqueza, diplomacia e prestígio.

  3. Winds of Trade – O comércio global e colonial, em que as rotas oceânicas e o controle de colônias definem a supremacia mundial.

Em comum, todos eles evidenciam que o comércio não é apenas uma questão econômica, mas também um motor de poder político, expansão territorial e transformação social.

Conclusão

Se The Rise of Venice: The Winds of Change tivesse dado continuidade à fórmula, provavelmente hoje teríamos uma série capaz de seguir o fio histórico da Liga Hanseática até o comércio renascentista e, finalmente, ao global. Mas coube a Winds of Trade, em sua ousadia independente, abrir esse último capítulo por conta própria.

O legado desses títulos, no entanto, é claro: eles mostram como o comércio marítimo moldou o mundo e como, no espaço lúdico dos videogames, ainda há muito a ser explorado na interseção entre economia, política e história.

Bibliografia

História da Liga Hanseática e do comércio medieval

  • DOLLINGER, Philippe. The German Hansa. London: Macmillan, 1970.

  • HAMMEL-KIESOW, Rolf. The Hanseatic League: Rise and Fall of a Great Power. London: Reaktion Books, 2008.

  • SELZER, Stephan. The Hanseatic League in the Early Modern Period. Leiden: Brill, 2019.

História de Veneza e do comércio renascentista

  • LANE, Frederic C. Venice: A Maritime Republic. Baltimore: Johns Hopkins University Press, 1973.

  • CHAMBERS, David; PULLAN, Brian. Venice: A Documentary History, 1450–1630. Toronto: University of Toronto Press, 2001.

  • MADDICOTT, J. R. Trade, Politics and Power: Venice and the Mediterranean World. Cambridge: Cambridge University Press, 2005.

Comércio colonial e globalização no século XVIII

  • BRAUDEL, Fernand. Civilization and Capitalism, 15th–18th Century, Vol. II: The Wheels of Commerce. Berkeley: University of California Press, 1992.

  • PRYM, Wolfgang. The Colonial Empires and the Rise of Global Trade (1600–1800). London: Routledge, 2010.

  • O’BRIEN, Patrick. Global Trade and the Rise of Western Europe, 1500–1800. Cambridge: Cambridge University Press, 2003.

Game Studies e análises de simuladores econômicos

  • ARSENAULT, Dominic. Games as Simulations: Examining the Historical Strategy Genre. In: Game Studies, v. 9, n. 2, 2009.

  • FRASCA, Gonzalo. Simulation versus Narrative: Introduction to Ludology. In: Wolf, Mark J. P.; Perron, Bernard (eds.). The Video Game Theory Reader. New York: Routledge, 2003.

  • PEREIRA, Victor. História e Jogos Digitais: Entre o Passado Simulado e o Presente Lúdico. São Paulo: Alameda, 2018.

Jogos citados

  • Gaming Minds Studios. Patrician III: Rise of the Hanse. CDV Software Entertainment, 2003.

  • Gaming Minds Studios. Patrician IV. Kalypso Media, 2010.

  • Gaming Minds Studios. The Rise of Venice: The Winds of Change. Kalypso Media, 2013.

  • Innova Interactive. Winds of Trade. 2017.

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