O falecimento de Íris Lettieri Costa em 28 de agosto de 2025 encerrou a trajetória daquela que ficou conhecida como “a voz do Aeroporto do Galeão”. Sua locução, marcada pela suavidade e clareza, acompanhou gerações de passageiros em diferentes aeroportos brasileiros, tornando-se parte da memória afetiva coletiva. No entanto, sua morte também suscita um debate jurídico relevante: qual é o destino dos direitos sobre sua voz?
1. Voz como obra interpretativa e proteção autoral
A voz gravada de Íris Lettieri não é apenas um registro mecânico de sons, mas uma interpretação artística, enquadrada nos direitos conexos ao direito autoral. Nos termos da Lei nº 9.610/1998 (Lei de Direitos Autorais – LDA), os artistas intérpretes ou executantes têm garantidos direitos sobre suas interpretações, inclusive de autorizar ou proibir sua utilização.
No Brasil, essa proteção se estende por 70 anos, contados a partir de 1º de janeiro do ano subsequente ao falecimento do intérprete (art. 41, LDA). Assim, como Íris Lettieri faleceu em 28/08/2025, a proteção de sua voz perdurará até 01/01/2096.
Isso significa que qualquer uso de suas gravações — seja em anúncios sonoros de aeroportos, seja em composições musicais ou recriações digitais — depende de autorização de seus herdeiros ou sucessores.
2. A dimensão da personalidade: voz como identidade pessoal
A proteção da voz vai além da esfera patrimonial. Ela é reconhecida também como parte da identidade e da personalidade do indivíduo. O Código Civil brasileiro (art. 20) estabelece que a utilização não autorizada da imagem ou voz de alguém pode ensejar reparação civil, sobretudo se houver exploração econômica ou ofensa à memória do falecido.
Nesse sentido, a voz de Íris Lettieri não se limita a ser “um som registrado”, mas um traço único de sua individualidade, carregado de valor simbólico. O uso indevido da sua identidade vocal, mesmo após sua morte, pode ser contestado por seus familiares.
3. Traduções, Clonagem de Voz e Inteligência Artificial
Um ponto de destaque na contemporaneidade é a questão da clonagem de voz por inteligência artificial. Tecnicamente, seria possível recriar a voz de Íris Lettieri para fazer anúncios em outros idiomas ou para novos contextos. Contudo, tal prática sem autorização dos detentores dos direitos violaria tanto a LDA quanto o direito da personalidade.
Assim, até 01/01/2096, nenhuma reprodução, clonagem ou adaptação de sua voz poderá ser feita sem autorização. Após esse prazo, as gravações cairão em domínio público, mas ainda assim restará o debate ético sobre a conveniência e o respeito à memória da locutora.
4. O caráter afetivo e cultural da voz
Mais do que um aspecto jurídico, a voz de Íris Lettieri tem dimensão cultural e afetiva. Milhares de brasileiros e estrangeiros identificavam o Aeroporto Internacional do Rio de Janeiro/Galeão–Tom Jobim com sua voz. A perda, portanto, não é apenas de um bem imaterial, mas de um símbolo sonoro do Brasil.
A preservação e respeito a esse legado exigem equilíbrio entre o direito de exploração patrimonial e o cuidado com a memória coletiva.
Conclusão
A voz de Íris Lettieri permanecerá juridicamente protegida até 2096, tanto pelo direito autoral conexo quanto pelo direito da personalidade. Seu uso em qualquer formato — seja em português, seja em outros idiomas, seja por meio de inteligência artificial — depende de autorização expressa dos herdeiros.
Esse caso ilustra como a proteção jurídica da voz ultrapassa o campo técnico do direito autoral, alcançando a esfera da dignidade, da memória e da identidade de quem marcou gerações não apenas pelo que disse, mas por como disse.
Bibliografia
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BRASIL. Lei nº 9.610, de 19 de fevereiro de 1998. Dispõe sobre os direitos autorais e dá outras providências.
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BRASIL. Código Civil (Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002).
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BITTAR, Carlos Alberto. Direito de Autor. 6ª ed. São Paulo: Forense, 2018.
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ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Autoral. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2019.
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GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil – Direitos da Personalidade. São Paulo: Saraiva, 2021.
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Site da ABI – Associação Brasileira de Imprensa. “Íris Lettieri, locutora que deu voz ao aeroporto internacional do Rio por quatro décadas, morre aos 84 anos”. Disponível em: https://www.abi.org.br
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