A lógica de Ourique, que inspira o serviço a Cristo em terras distantes, pode ser aplicada também ao campo da cultura e do livro. Se a missão espiritual de Portugal foi levar a fé e o conhecimento a novos horizontes, hoje essa vocação encontra eco em um cenário jurídico peculiar: a divergência entre prazos de proteção autoral no Brasil e em outros países, como os Estados Unidos e o Japão.
1. O Diferencial Jurídico Internacional
No Brasil, a proteção dos direitos autorais se estende por setenta anos após a morte do autor, conforme determina a Lei 9.610/98. Já em países como o Japão e os EUA, legislações anteriores criaram prazos distintos — em alguns casos, de apenas trinta anos. Isso significa que determinados autores brasileiros, ainda protegidos no Brasil, já se encontram em domínio público nessas nações.
Essa assimetria cria uma brecha legal legítima: editoras e gráficas estrangeiras podem imprimir e comercializar obras brasileiras, desde que respeitem a legislação local, mesmo que, dentro do território nacional, a obra ainda esteja sob proteção.
2. O alcance da distribuição: consumidor final versus revenda
Aqui entra a nuance fundamental.
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Venda a usuários finais: Se um leitor brasileiro adquire diretamente de uma gráfica no Japão ou nos EUA uma obra em domínio público local, a operação é plenamente legal. Trata-se de um ato de consumo individual, não de exploração editorial em território brasileiro.
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Venda a livrarias ou importadoras: Nesse caso, haveria violação indireta da lei brasileira, pois se configuraria como revenda comercial de obra ainda protegida no Brasil.
Portanto, a chave está no modelo direto ao consumidor final, o chamado direct-to-consumer.
3. A imunidade tributária dos livros
Outro fator que fortalece essa possibilidade é a imunidade tributária garantida pela Constituição Federal de 1988 (art. 150, VI, “d”), que impede a cobrança de impostos sobre livros, jornais, periódicos e o papel destinado à sua impressão.
Assim, quando o brasileiro compra um livro de fora, mesmo que a obra esteja em domínio público apenas no país de origem, não há espaço para tributação. O Estado brasileiro não pode limitar o acesso ao conhecimento pela via fiscal.
4. Exemplo Prático: Mário Ferreira dos Santos
Tomemos o caso do filósofo brasileiro Mário Ferreira dos Santos (1907–1968).
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No Brasil, suas obras ainda estão protegidas pelo prazo de 70 anos após sua morte, ou seja, até 2038.
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No Japão, porém, a legislação antiga de direitos autorais garante proteção apenas por 30 anos após a morte do autor. Como Mário Ferreira dos Santos faleceu em 1968, suas obras já estão em domínio público no Japão.
Isso significa que uma gráfica japonesa poderia legalmente imprimir títulos como A Filosofia da Crise ou A Filosofia da Existência, e vendê-los diretamente a leitores brasileiros interessados, sem violar qualquer lei local.
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O consumidor brasileiro adquire o livro como usuário final, e a relação de consumo se enquadra na imunidade tributária prevista na Constituição.
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O mesmo não seria possível se a gráfica tentasse vender para livrarias brasileiras, pois aí estaria havendo exploração comercial de obra ainda protegida no Brasil.
5. O espírito de Ourique e a missão cultural
A lógica de Ourique, pela qual o servir a Cristo significava expandir fronteiras, encontra nesse campo jurídico-cultural uma nova forma de expressão. Uma editora transnacional, sediada em países com prazos menores de proteção, poderia levar obras de autores brasileiros ao público tanto da diáspora quanto ao consumidor final no Brasil.
Essa iniciativa não viola a lei, mas cumpre sua finalidade cultural: difundir conhecimento e tornar acessível aquilo que, por entraves jurídicos locais, ainda permanece restrito.
6. Conclusão: expansão das fronteiras do conhecimento
Se em Ourique Portugal assumiu a missão de expandir o Evangelho, hoje uma comunidade de editores e leitores pode assumir a missão de expandir o acesso ao livro. Explorar as brechas legítimas do direito internacional não é fraude, mas antes um exercício criativo da liberdade, nos termos da lei.
Assim, como o povo de Ourique alargou os horizontes da fé, também nós podemos alargar os horizontes do conhecimento, multiplicando talentos e levando as obras de nossos autores a novas terras — em Cristo, por Cristo e para Cristo.
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