Uma das características mais inquietantes do mundo contemporâneo é a velocidade com que as palavras perdem o seu peso e a sua proporção natural. A linguagem, outrora instrumento de precisão moral e intelectual, tornou-se uma espécie de argila maleável, moldada não pela verdade, mas pela conveniência. Entre os sintomas mais evidentes desse fenômeno está a tendência, cada vez mais comum, de atribuir títulos nobres a realidades moralmente inferiores, confundindo o que é essencialmente distinto.
Essa distorção aparece de modo particularmente grave quando alguém, por ignorância ou má-fé, chama um ditador de monarca. A diferença não é apenas terminológica; é moral, histórica e ontológica.
Monarca não é sinônimo de tirano
O monarca legítimo, seja ele rei, príncipe ou imperador, está inserido numa tradição de autoridade que o precede e o limita. Sua função se estabelece na continuidade histórica, no reconhecimento público e numa teia de deveres que o vinculam ao bem comum. A monarquia, na sua melhor expressão, supõe:
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limites institucionais e consuetudinários;
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obrigação moral e religiosa;
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responsabilidade herdada e transmitida;
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vínculo orgânico com o destino do povo.
O ditador, por sua vez, emerge da ruptura, da força bruta ou da manipulação. Sua autoridade não é recebida, mas usurpada; não é limitada, mas concentrada; não é legitimada, mas imposta. Seu poder é contingente, instável, baseado no medo ou na propaganda.
Chamar isso de monarquia é um erro de categoria, quase um sacrilégio político.
A metáfora moral da desproporção
Quando alguém comete a imprudência de elevar o ditador ao nível de monarca, realiza algo análogo ao ato de chamar uma prostituta de “princesa” ou de “santa”, colocando-a quase no mesmo patamar de uma Madre Teresa de Calcutá. A metáfora é forte, mas ilustra o ponto essencial: a falta de proporção é uma forma de mentira.
E é sempre uma mentira perigosa, porque altera o senso moral, confunde o julgamento e destrói a capacidade de distinguir o melhor do pior, o justo do injusto, o nobre do ignóbil.
A perda do senso de proporção como vício intelectual
O senso das proporções — aquilo que Aristóteles chamaria de phronesis — é a faculdade que nos permite avaliar corretamente as grandezas morais e políticas. Sem ele:
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o vício parece virtude;
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a tirania parece ordem;
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a usurpação parece autoridade;
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o crime parece legislação.
A tradição filosófica sempre considerou o erro de proporção como um dos mais graves porque corrói diretamente a racionalidade prática. Uma vez destruído o senso de hierarquia das coisas, tudo se torna equiparável, e portanto tudo se torna manipulável.
É nesse ambiente de confusão que palavras se tornam instrumentos de engano, não de revelação.
A responsabilidade moral da linguagem
A linguagem não é neutra. Ela estrutura a percepção da realidade. Quando alguém chama um tirano de monarca:
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adultera o vocabulário político;
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desarma a consciência moral;
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eleva o usurpador ao trono simbólico da legitimidade.
Com isso, torna-se cúmplice de um processo de anestesia coletiva. A linguagem corrompida serve ao poder corrompido.
A consequência mais perigosa: a naturalização da tirania
Quando um ditador é chamado de monarca, o efeito final não é apenas semântico. É civilizacional. A tirania perde o horror que lhe é próprio. A usurpação ganha um verniz de normalidade. O abuso de poder parece continuidade histórica.
E, assim, o povo perde sua capacidade de se indignar.
É por isso que regimes totalitários e autoritários sempre começam pela manipulação das palavras: renomeiam o mal como bem, a violência como justiça, a imposição como estabilidade, a servidão como ordem.
Conclusão: restaurar as proporções é restaurar a verdade
O que sua formulação capta com clareza — embora usando imagens moralmente fortes — é justamente o ponto decisivo: quem perde o senso das proporções perde o vínculo com a verdade. E, sem verdade, nenhuma liberdade política é possível.
Restaurar a proporção das palavras é restaurar a sanidade moral de um povo. Chamar as coisas pelo nome, segundo sua natureza, é o primeiro ato de resistência contra a tirania e o primeiro passo em direção à ordem justa.
Bibliografia Comentada
1. Filosofia Política e o senso das proporções
Aristóteles — Política
Aristóteles distingue com precisão entre as formas corretas de governo (realeza, aristocracia, politeia) e suas degenerações (tirania, oligarquia, democracia demagógica). É uma das fontes clássicas para compreender que um rei não é um tirano, e que confundir ambos é um erro de essência. A noção de phronesis (prudência) e de justa medida também fundamenta a crítica à distorção terminológica.
Santo Tomás de Aquino — Suma Teológica e De Regno
Tomás desenvolve uma das distinções mais claras entre o governo legítimo e o governo usurpado. A monarquia aparece como a forma mais elevada de governo quando ordenada ao bem comum, e a tirania como sua perversão máxima. Sua obra ilumina o ponto central: chamar tirano de monarca é inverter a ordem moral da linguagem, ato que ele classificaria como mentira contra a realidade.
Cícero — Da República e Das Leis
Cícero faz uso constante da proporção e da justa designação dos cargos públicos, condenando o abuso dos termos e a corrupção da linguagem como prelúdio à corrupção da república. Para ele, as palavras têm peso constitucional; distorcê-las é um crime contra a ordem política.
2. Linguagem, Verdade e Proporção
Olavo de Carvalho — O Mínimo que Você Precisa Saber para Não Ser um Idiota, Aristóteles em Nova Perspectiva e conferências
Olavo retoma a tradição aristotélica e tomista e a traduz para o contexto contemporâneo, especialmente no que diz respeito à capacidade de distinguir diferenças essenciais. Em diversos textos, ele explica que a tirania moderna depende da manipulação da linguagem e da destruição das proporções. Suas reflexões sobre “nominalismo político” são cruciais para entender por que a corrupção das palavras precede a corrupção do regime.
Eric Voegelin — A Nova Ciência da Política
Voegelin demonstra como regimes totalitários dependem da falsificação simbólica da realidade. Ao modificar a linguagem, especialmente os títulos de autoridade, o regime cria uma segunda realidade, onde o tirano é apresentado como salvador ou líder legítimo. A obra explica o mecanismo mental pelo qual o erro de proporção se torna massificado.
George Orwell — 1984
Embora seja uma obra literária, Orwell expõe com maestria o princípio da corrupção da linguagem como ferramenta de dominação. O “Ministério da Verdade” mostra como alterar palavras altera percepções. É uma alegoria perfeita para explicar por que chamar um ditador de monarca não é apenas um erro, mas um risco político.
Josef Pieper — Abuso da Linguagem, Abuso do Poder
Obra fundamental para entender como a corrupção do vocabulário destrói a capacidade de julgamento. Pieper mostra que o primeiro ato de violência contra a verdade é a manipulação retórica, e alerta que quem controla as palavras controla as consciências. Ele confirma a tese central do artigo: corromper a linguagem é preparar o terreno da tirania.
3. Tirania, Legitimidade e Usurpação
Hannah Arendt — As Origens do Totalitarismo
Arendt explica como regimes autoritários dependem da erosão da distinção entre mentira e verdade, entre legitimidade e força. Seu estudo sobre propaganda demonstra que a elevação simbólica de líderes ilegítimos é parte essencial da tiranização da vida pública.
Leo Strauss — On Tyranny
Neste livro, Strauss analisa o diálogo Híeron de Xenofonte e oferece uma reflexão profunda sobre a natureza da tirania. Ele mostra que o tirano não pode ser confundido com o governante legítimo e que a usurpação é sempre acompanhada de manipulação da imagem e dos títulos. Uma obra praticamente feita para discutir o tema do artigo.
Bertrand de Jouvenel — Do Poder
Jouvenel faz um estudo histórico e filosófico do crescimento do poder político e da transformação das figuras de autoridade. Ele mostra como o poder usurpador precisa se disfarçar de legítimo, adotando termos e símbolos que não lhe pertencem. É leitura indispensável para entender por que chamar tirano de monarca é participar da legitimação simbólica do abuso.
4. Monarquia, Tradição e Legitimidade
Ernst Kantorowicz — The King’s Two Bodies
Obra clássica sobre a teologia política medieval e a natureza da realeza legítima. Explica que o monarca possui dois corpos — o natural e o político —, e que a legitimidade deriva da continuidade histórica. Isso demonstra que um ditador, surgido por ruptura, não pode ser confundido com o portador do corpo político da realeza.
Russell Kirk — The Roots of American Order e The Conservative Mind
Kirk explica a importância da continuidade histórica, da tradição e da proporcionalidade na vida política. Ele mostra que civilizações são mantidas pela fidelidade aos significados e pelas distinções claras entre autoridade legítima e poder arbitrário.
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