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sábado, 20 de dezembro de 2025

Juros, usura e gratidão: linguagem, moral e ordem cristã da economia

Introdução

O debate moderno sobre juros costuma oscilar entre dois polos igualmente insuficientes: de um lado, a legitimação irrestrita do interesse financeiro como motor neutro da economia; de outro, a condenação genérica de qualquer remuneração do capital como intrinsecamente injusta. Ambas as posições sofrem de um mesmo problema: a perda das distinções morais finas que só se tornam visíveis quando se considera, simultaneamente, a linguagem, a intenção do agente e a ordem espiritual na qual o ato econômico se insere.

A tradição cristã nunca tratou os juros como uma simples variável técnica. Ao contrário, sempre os compreendeu como um fenômeno moralmente qualificado, cujo sentido depende da finalidade, da relação entre as partes e da disposição interior daquele que recebe e daquele que paga. Nesse contexto, a própria língua portuguesa oferece uma vantagem conceitual relevante frente ao inglês e ao espanhol, permitindo uma reflexão mais precisa sobre o que distingue juros legítimos de usura.

1. A ambiguidade do “interesse” e a precisão dos “juros”

Em inglês (interest) e em espanhol (interés), o termo utilizado para designar juros carrega uma ambiguidade estrutural. Ele designa, ao mesmo tempo, atenção, envolvimento, expectativa legítima e interesse especulativo. Essa sobreposição semântica facilita uma naturalização do ganho financeiro como expressão psicológica do desejo individual: quem investe “tem interesse”, logo é legítimo que receba mais.

A língua portuguesa, ao empregar o termo juros, preserva uma diferença fundamental. Juros não são um estado subjetivo da alma, mas algo que incide sobre um capital recebido. A palavra remete a uma relação objetiva: alguém recebeu algo que não produziu sozinho e, ao devolver, reconhece essa precedência. A linguagem, aqui, protege a moral de um deslizamento perigoso: o de confundir desejo com direito.

Essa distinção linguística não é trivial. Ela impede que o juro seja automaticamente identificado com o interesse especulativo fundado no amor de si — aquilo que, na tradição cristã, conduz à usura quando não é ordenado a um bem superior.

2. Usura como deformação moral, não como simples juro

A tradição cristã jamais condenou o juro enquanto tal de forma absoluta. O que ela condena é a usura, isto é, o juro exigido sem justa causa, desproporcional, exploratório ou desvinculado de qualquer participação real no risco ou no bem produzido. Em termos morais clássicos, a usura nasce quando o ganho financeiro se funda no amor de si até o desprezo de Deus e do próximo.

Nesse sentido, a diferença entre juro legítimo e usura não é quantitativa, mas qualitativa. Ela depende da intenção do agente, da justiça da relação e do reconhecimento de que o capital recebido não é uma entidade autônoma, mas um meio confiado a alguém para a produção de um bem.

Quando o juro se apresenta como extração automática de valor, desligada de qualquer gratidão ou responsabilidade, ele se torna usurário. Quando, ao contrário, ele expressa reconhecimento, cooperação e justiça, ele se ordena ao bem.

3. Ver o patrono em Cristo: o eixo da gratidão

O ponto decisivo para a reordenação moral do juro está na maneira como o devedor percebe aquele que lhe confiou o capital. Quando o investidor é visto apenas como um agente abstrato do mercado, o pagamento tende a assumir a forma de um ônus a ser minimizado. Mas quando o capital é reconhecido como confiança recebida, o investidor torna-se patrono, alguém que cooperou para que o trabalho fosse possível.

Na chave cristã, essa relação ganha uma profundidade adicional: ao reconhecer o patrono humano, reconhece-se, em última instância, o Cristo que torna possível toda cooperação verdadeira. O pagamento dos juros, então, deixa de ser um gesto meramente contratual e passa a ser um ato de gratidão consciente.

Esse deslocamento é decisivo: ele dissolve a lógica da usura sem abolir o juro, porque transforma o seu fundamento moral.

4. Juros como oferta: nem esmola, nem sobra

Há uma intuição teológica profunda na recusa de três interpretações comuns do pagamento:

  1. Não é esmola, porque Deus não é mendigo.

  2. Não é auxílio, porque Deus não necessita.

  3. Não é sobra, porque não se oferece a Deus aquilo que apenas restou.

Separar a parte que cabe ao patrono — e, analogamente, a Deus — é um gesto de ordem, não de carência. O juro, compreendido assim, torna-se uma oferta, isto é, um reconhecimento ativo de que o fruto do trabalho não é absoluto nem autogerado.

Essa concepção rompe com a mentalidade moderna segundo a qual o lucro é sempre apropriação privada integral, e qualquer partilha é concessão voluntária. Aqui, a lógica é inversa: a partilha precede moralmente a apropriação.

5. A analogia com o dízimo

A analogia entre juros assim compreendidos e o dízimo da Igreja é particularmente fecunda. O dízimo não é imposto, nem taxa, nem redistribuição forçada. Ele é um sinal simbólico de uma verdade metafísica: tudo o que o homem possui lhe foi dado.

Da mesma forma, os juros, quando separados conscientemente como reconhecimento da cooperação recebida, deixam de ser expressão de exploração e passam a ser expressão de gratidão ordenada. Ambos operam no mesmo registro: o de uma economia que reconhece limites, precedências e hierarquias.

Conclusão

A reflexão sobre juros, usura e gratidão mostra que o problema central da economia moderna não é técnico, mas moral e espiritual. Ao perder as distinções entre juro e usura, entre interesse e gratidão, entre apropriação e oferta, o mundo contemporâneo reduziu a economia a um jogo de forças impersonais.

A língua portuguesa, ao preservar o termo “juros”, oferece um ponto de apoio precioso para recuperar essas distinções. Mais do que isso, a tradição cristã fornece o critério decisivo: o juro é legítimo quando ordenado ao bem, à justiça e à gratidão; torna-se usura quando fundado no amor desordenado de si.

Recolocar o juro nesse horizonte não é um exercício nostálgico, mas uma exigência de inteligibilidade moral. Sem ela, não há economia humana — apenas cálculo.

Bibliografia Comentada

Autores brasileiros

1. Ivan Nogueira Pinheiro — Juros e usura no direito brasileiro: uma reflexão sob a perspectiva Tomista
Tese de doutorado (USP, 2012) que analisa a distinção entre juros e usura a partir do pensamento de São Tomás de Aquino no contexto do direito brasileiro. A obra é uma das poucas no Brasil que trata o tema de forma sistemática à luz da tradição filosófico-teológica clássica, relacionando princípios éticos cristãos com a dogmática jurídica moderna. Tese USP

2. Francisco Borba Ribeiro Neto — ensaios sobre dinheiro, fé e cristianismo
Vários artigos e entrevistas do sociólogo brasileiro abordam a evolução do entendimento cristão sobre juros e usura ao longo da história, destacando como a lógica capitalista transformou antigas proibições em práticas aceitas. Essas reflexões ajudam a situar o leitor brasileiro na complexidade cultural do tema. Portal Tela

3. Diversos ensaios sobre ética econômica cristã no Brasil
Artigos e textos de instituições como o Instituto Cristão de Pesquisas apresentam definições históricas de usura e juros, abordando como a tradição moral cristã tratou dessas categorias ao longo dos séculos e as distingue utilmente na linguagem jurídica versus teológica. ICP

Autores portugueses

4. José Tolentino Mendonça — reflexões sobre fé, cultura e economia (vários ensaios)
Cardeal português cujo trabalho interdisciplinar dialoga com temas espirituais e culturais, incluindo aspectos da vida econômica à luz da fé. Embora não se dedique especificamente aos juros, seus escritos sobre a ordem moral e a economia humana fornecem um pano de fundo interpretativo valioso para quem busca pensar o juro cristãmente no contexto lusófono.

5. Autores portugueses da tradição medieval e renascentista (fontes primárias e estudos)
Historiadores portugueses que estudam a Europa cristã (por exemplo, em economia medieval) ajudam a entender como conceitos como justo preço e usura eram articulados em Portugal e na Cristandade ocidental, conectando com as categorias linguísticas que você destacou (juros vs. usura). Obras acadêmicas nessa linha contribuem com contexto histórico útil.

Autores poloneses (e da tradição polonesa de pensamento social/econômico)

6. Hieronim Stroynowski — Nauka prawa naturalnego, politycznego, ekonomiki i prawa narodów
Pensador e bispo polonês do século XVIII cuja obra combina economia, direito natural e moral. Embora não trate diretamente de juros e usura do ponto de vista teológico, seu enfoque no direito natural como fundamento da economia e da moral ajuda a contextualizar uma tradição polonesa de pensar as relações econômicas dentro de uma ordem ética universal. Wikipedia

7. Leopold Caro — solidarismo e pensamento econômico cristão
Intelectual católico polonês que popularizou o solidarismo como corrente inspirada pela doutrina social da Igreja. Sua obra ajuda a situar como segmentos do pensamento polonês combinaram princípios cristãos com preocupações sobre justiça econômica e cooperação social, o que é relevante para repensar o papel dos juros como expressão de cooperação econômica e não de exploração. Wikipedia

8. Estudos contemporâneos da economia polonesa sobre usura e regulação
Artigos acadêmicos poloneses (por exemplo, obras de Ryszard Kowalski e Grzegorz Wałęga) exploram a regulação da usura no mercado de crédito, oferecendo uma perspectiva empírica e jurídica sobre como interesses e usura são problematizados no contexto econômico moderno da Polônia. Gospodarka Narodowa

Obras complementares (contexto histórico e teológico, não necessariamente nacionais)

9. Santo Tomás de Aquino — Suma Teológica (tratados sobre usura e justiça)
Clássico imprescindível para entender a distinção entre juros legítimos e usura no pensamento cristão, ainda que não seja obra de autor nacional. Ele fornece a base teórica que muitas análises modernas (inclusive as mencionadas acima) resgatam.

10. Textos da Igreja e documentos conciliares sobre usura
Encíclicas como Vix pervenit (Bento XIV) e as decisões de concílios medievais (como o 2º e 3º Concílios de Latrão) delineiam a evolução do ensino e prática da Igreja sobre juros e usura, essenciais para fundamentar historicamente o debate. Correio Braziliense

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