1. Introdução
A Constituição Federal brasileira consagra, no art. 150, VI, “d”, a imunidade tributária dos livros, jornais, periódicos e do papel destinado à sua impressão. Trata-se de uma imunidade objetiva, vinculada à função cultural, educativa e civilizatória do livro, e não à pessoa do adquirente ou ao local de origem da obra.
Não obstante a clareza do texto constitucional, a prática administrativa e logística contemporânea tem revelado mecanismos indiretos de neutralização desse direito fundamental, especialmente no contexto das importações realizadas por pessoas físicas. Este artigo examina um desses mecanismos a partir de um caso concreto: a aquisição de livros poloneses por meio da Amazon europeia, com destaque para a Amazon.it, e os efeitos jurídicos da cobrança compulsória de serviços postais no Brasil.
2. A Amazon.it como hub europeu para livros poloneses
No âmbito do marketplace da Amazon, observa-se empiricamente uma assimetria relevante entre as plataformas nacionais da empresa na zona do euro. Enquanto a Amazon.es (Espanha) e a Amazon.fr (França) frequentemente apresentam indisponibilidade de títulos publicados na Polônia ou em língua polonesa, a Amazon.it (Itália) se mostra mais eficiente sob três aspectos principais:
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Disponibilidade de catálogo: vendedores europeus, inclusive da Europa Central e Oriental, parecem concentrar listagens na plataforma italiana, que funciona como um hub intermediário dentro da União Europeia.
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Preço médio acessível: é comum encontrar títulos na faixa de aproximadamente 10 euros, o que torna economicamente viável a aquisição reiterada de livros para estudo e pesquisa.
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Previsibilidade logística: a cadeia de fornecimento associada à Amazon.it tende a apresentar maior estabilidade no processamento e na expedição internacional.
Esses fatores fazem da Amazon.it, na prática, o ponto mais eficiente da Amazon para a aquisição de livros poloneses dentro da zona do euro, sobretudo quando comparada às plataformas espanhola e francesa.
3. Timing econômico: Prime Day e racionalidade do consumo cultural
A utilização de eventos promocionais como o Prime Day — tradicionalmente realizado em julho — não constitui qualquer irregularidade, mas sim uma estratégia legítima de racionalização econômica.
Para bens culturais de baixo valor unitário, como livros, a conjugação de:
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descontos concentrados,
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maior liquidez de vendedores,
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e redução de custos acessórios,
permite ampliar o acesso ao conhecimento sem desnaturar a finalidade constitucional protegida. Trata-se, portanto, de uma prática compatível com o espírito da imunidade tributária: facilitar, e não restringir, a circulação do livro.
4. O problema jurídico central: quando o acessório destrói o principal
O ponto crítico não reside na compra internacional do livro, mas na sua internalização no território nacional. Aqui emerge o problema jurídico fundamental.
Embora o livro seja imune a tributos, a prática administrativa brasileira frequentemente desloca o foco da incidência para os serviços postais, tratados como fato gerador autônomo. Em determinadas remessas internacionais, especialmente quando processadas por canais que acabam submetidos à logística dos Correios, ocorre a cobrança de valores relativos ao serviço postal, ainda que o objeto transportado seja exclusivamente um livro.
Esse procedimento produz um efeito perverso:
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o bem principal (livro) permanece formalmente imune;
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o serviço acessório (transporte postal estatal), imposto de forma compulsória, torna-se o verdadeiro ônus econômico da operação.
Na prática, a imunidade constitucional é esvaziada.
5. O princípio de que o acessório segue a sorte do principal
Do ponto de vista jurídico, a situação afronta um princípio elementar do direito: o acessório segue a sorte do principal.
Se o ordenamento constitucional protege o livro contra a tributação, não é juridicamente aceitável que o Estado, por via indireta, inviabilize essa proteção por meio da cobrança obrigatória de um serviço acessório, sem alternativa real ao destinatário. Quando o particular não pode optar livremente por outro meio logístico e é compelido a utilizar um serviço estatal oneroso, o que se tem não é um serviço facultativo, mas uma condição imposta ao exercício de um direito constitucional.
Nesse contexto, a cobrança deixa de ser neutra e passa a operar como instrumento indireto de restrição ao acesso ao livro.
6. Correios, transportadoras privadas e neutralidade constitucional
A diferença empírica observada entre remessas submetidas ao fluxo postal tradicional e aquelas realizadas por transportadoras privadas internacionais revela um dado relevante: determinados arranjos logísticos respeitam melhor a natureza do bem imune do que outros.
O problema, portanto, não é a existência de custos logísticos em si — o transporte nunca é gratuito —, mas a imposição estatal de um serviço específico, cuja cobrança se torna inevitável e desproporcional, neutralizando o núcleo do direito protegido.
Quando o Estado cria, por via administrativa, um gargalo que converte a imunidade em letra morta, há violação indireta da Constituição, ainda que formalmente se alegue que “não houve tributação do livro”.
7. Conclusão
A experiência relatada com a Amazon.it revela algo que vai além de uma escolha de marketplace: ela expõe uma falha estrutural na forma como a imunidade tributária dos livros é operacionalizada no Brasil.
A aquisição de livros poloneses por meio da Amazon italiana demonstra que o acesso ao catálogo e ao preço não é o principal obstáculo. O verdadeiro problema surge quando o Estado, por meio da cobrança compulsória de serviços acessórios, transforma a imunidade constitucional em um privilégio meramente teórico.
Se a Constituição protege o livro como instrumento de formação intelectual e liberdade, essa proteção não pode ser anulada por mecanismos indiretos, sob pena de se admitir que o direito fundamental exista apenas no texto, mas não na realidade concreta.
A imunidade dos livros, para ser efetiva, deve alcançar não apenas o bem em si, mas também os arranjos administrativos indispensáveis à sua circulação. Qualquer solução que ignore esse ponto estará, inevitavelmente, comprometendo o próprio sentido da norma constitucional.
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