Introdução
A Idade Média concebia a realidade como um organismo hierárquico no qual cada função — espiritual, militar, política, econômica — tinha um propósito ordenado à paz e à justiça. Nesse universo, a bênção não era mero gesto devocional, mas investidura funcional, com efeitos concretos, temporais e proporcionalmente relacionados ao encargo assumido.
Entre tais investiduras, destacam-se as bênçãos conferidas a combatentes, defensores de cidades e cavaleiros, que recebiam prerrogativas morais e jurídicas que, fora desse estado, seriam ilícitas. A doutrina da guerra justa e o princípio romano da res hostilis forneciam o arcabouço intelectual dessa prática.
Este artigo examina de forma integrada os elementos teológicos, jurídicos e históricos que fundamentavam esse sistema, concluindo com uma bibliografia comentada das obras essenciais ao tema.
1. A bênção como investidura funcional
A bênção, na concepção sacramental medieval, era uma consagração orientada ao fim. Ela conferia ao indivíduo um novo estatuto moral e jurídico. O abençoado não recebia um privilégio pessoal, mas sim um dever: defender a comunidade, proteger a cidade, restaurar a ordem violada.
O cavaleiro medieval, por exemplo, só recebia plenamente sua dignidade após a bênção de armas, que o convertia em miles Christi, mesmo em guerras entre príncipes cristãos — pois seu combate tornava-se serviço à justiça, não violência arbitrária.
Esse ato litúrgico equivalia a uma instauração objetiva de função. O sujeito era colocado numa condição que, enquanto durasse, modificava o caráter moral de suas ações.
2. A guerra justa como estrutura moral da licitude
A doutrina da guerra justa é a peça central da compreensão medieval do excludente de ilicitude.
Santo Agostinho, em Contra Faustum e A Cidade de Deus, afirma que o cristão pode licitamente empunhar a espada quando:
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a autoridade é legítima,
-
a causa é justa,
-
e a intenção é reta.
Santo Tomás de Aquino sistematiza esses critérios na Suma Teológica (II-II, q. 40):
-
Autoridade: só quem detém o cuidado do bem comum pode declarar guerra.
-
Causa: a guerra deve reparar injustiça ou defender a comunidade.
-
Intenção: o fim é a ordem e a paz, não a ira ou a vingança.
Assim, o ato físico de matar, que seria pecado grave em circunstâncias ordinárias, torna-se moralmente lícito quando inserido nessa estrutura.
A bênção militar, portanto, não transforma o mal em bem; ela confirma que o guerreiro atua dentro do quadro moral exigido pela justiça. É um selo que identifica o agente como servidor da ordem.
3. Excludente de Ilicitude no contexto medieval
O excludente de ilicitude, termo moderno, tem no pensamento medieval seu correspondente funcional. Para os canonistas e teólogos:
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o soldado não comete homicídio;
-
cumpre uma sentença pública;
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o uso da força é ato de justiça, não de paixão;
-
o dano causado ao agressor não é injusto.
Assim, a bênção não era permissividade desordenada, mas clarificação moral: aquilo que seria homicídio em tempos de paz torna-se exercício legítimo de autoridade em guerra justa.
4. A doutrina romana da Res Hostilis: a coisa do inimigo é coisa de ninguém
A recepção medieval do Direito Romano foi decisiva. A doutrina clássica afirma:
Res hostium sunt res nullius.
Os bens do inimigo público são considerados de ninguém.
Isso foi preservado e reinterpretado pelos canonistas. Para o pensamento cristão medieval:
-
o inimigo público (hostis, não inimicus) rompeu a ordem jurídica;
-
ao fazê-lo, perde momentaneamente a proteção patrimonial;
-
seus bens tornam-se apropriáveis sem que isso constitua furto.
Santo Tomás confirma isso explicitamente:
Tomar bens do inimigo em guerra justa não constitui furto.
(Suma Teológica, II-II, q. 66, a. 8)
Esse princípio fundamentava o direito de espólio, de saque regulado e de confisco em campanhas militares.
A bênção militar funcionava então como autorização moral para ações que, sem essa moldura jurídico-sacral, seriam pecaminosas.
5. Efeitos Temporais da Bênção Militar
As bênçãos possuíam eficácia condicional:
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eram válidas enquanto durasse o encargo militar;
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cessavam com a paz ou com o término da função;
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vinculavam o combatente a obrigações espirituais específicas;
-
regulavam não só o que era permitido, mas também o que era proibido.
Um cavaleiro abençoado podia matar legitimamente em batalha; fora dela, esse mesmo ato seria homicídio. Ele podia tomar bens do inimigo; mas após a guerra, qualquer apropriação de bens alheios seria furto.
Assim, os efeitos eram:
-
temporais (limitados ao período da missão),
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funcionais (limitados ao escopo da função),
-
teleológicos (ordenados ao bem comum).
6. Unidade Moral, Jurídica e Teológica no pensamento medieval
No medievo, não havia ruptura entre:
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o direito civil,
-
o direito canônico,
-
e a moral cristã.
A bênção militar é o exemplo perfeito dessa unidade:
-
juridicamente, concedia prerrogativas;
-
moralmente, estabelecia a licitude dos atos;
-
teologicamente, ligava a função ao plano divino da ordem.
Assim, o guerreiro cristão não era um agente de violência, mas ministro da justiça temporal. Sua missão era restaurar a ordem violada, não perseguir a destruição pelo prazer da batalha.
Conclusão
As bênçãos funcionais da Idade Média revelam uma sofisticada síntese entre teologia, direito e história. Ao abençoar um combatente, a Igreja reconhecia a legitimidade moral de sua missão e conferia-lhe uma forma elevada de responsabilidade espiritual. A doutrina da guerra justa e a recepção do Direito Romano garantiam que esses atos fossem objetivamente lícitos e ordenados ao bem comum.
O soldado medieval abençoado para defender sua cidade ou seu senhor não era um sujeito autorizado a cometer violência, mas alguém que, dentro de parâmetros estreitos e objetivos, agia como instrumento da justiça.
Bibliografia Comentada
1. Santo Agostinho – A Cidade de Deus (particularmente, Livro XIX)
Comentário:
Obra seminal para a doutrina da guerra justa. Agostinho distingue entre a violência injusta e o uso legítimo da força por autoridade pública ordenada à paz. É a fonte mais antiga e influente da moral cristã da guerra.
2. Santo Agostinho – Contra Faustum Manichaeum
Comentário:
Aqui Agostinho trata diretamente da relação entre violência e justiça, mostrando que a culpa moral não está no ato material de matar, mas na injustiça da motivação e da autoridade. Clássico para quem estuda excludentes de ilicitude na tradição cristã.
3. Santo Tomás de Aquino – Suma Teológica, II-II, q. 40 (De Bello)
Comentário:
O texto definitivo sobre guerra justa na escolástica. Tomás sistematiza os elementos de autoridade legítima, causa justa e intenção reta. Essencial para qualquer análise da moralidade militar medieval.
4. Santo Tomás de Aquino – Suma Teológica, II-II, q. 66 (De Furto et Rapina)
Comentário:
Artigo 8 trata especificamente da licitude de tomar bens do inimigo em guerra justa, baseando-se na doutrina romana da res hostilis. É a formulação mais clara do “excludente de ilicitude patrimonial” na tradição católica.
5. Gratiano – Decretum Gratiani
Comentário:
A base do Direito Canônico medieval. Contém referências importantes ao papel do príncipe, ao uso legítimo da força e a noções de autoridade pública, que sustentam a visão jurídica da guerra justa.
6. Thomas de Chobham – Summa Confessorum
Comentário:
Manual pastoral que discute o papel dos cavaleiros, a moralidade da guerra e os pecados associados ao exercício da violência. Mostra como o clero orientava a consciência dos combatentes.
7. Brian Tierney – The Idea of Natural Rights
(Oxford University Press)
Comentário:
Explora como a tradição cristã do direito natural — especialmente nos canonistas — estruturou conceitos jurídicos como propriedade, guerra justa e autoridade. Fundamental para compreender o contexto em que surge o excludente medieval.
8. Frederick H. Russell – The Just War in the Middle Ages
(Cambridge University Press)
Comentário:
Estudo histórico e sistemático sobre a evolução da doutrina da guerra justa desde Agostinho até o final da Idade Média. A obra mais completa em língua inglesa sobre o tema.
9. James Turner Johnson – The Quest for Peace: Three Moral Traditions in Western Cultural History
Comentário:
Mostra como a tradição cristã da guerra justa se articulou com a teoria da paz e com o pensamento jurídico medieval. Essencial para ver a guerra como instrumento da ordem.
10. John Gilchrist – Canon Law and the Ecclesiastical Jurisdiction in the Middle Ages
Comentário:
Obra fundamental para compreender o papel do direito canônico na legitimação moral e jurídica da autoridade pública, incluindo seu poder de declarar e regular guerras.
11. Christopher Tyerman – God’s War: A New History of the Crusades
Comentário:
Excelente para compreender, na prática histórica, como funcionavam as bênçãos militares, indulgências e investiduras de cruzados, inclusive seus efeitos jurídicos e espirituais.
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