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terça-feira, 2 de dezembro de 2025

As bênçãos funcionais na Idade Média e os excludentes de ilicitude na Guerra Justa: uma análise histórica, teológica e Jurídica

Introdução

A Idade Média concebia a realidade como um organismo hierárquico no qual cada função — espiritual, militar, política, econômica — tinha um propósito ordenado à paz e à justiça. Nesse universo, a bênção não era mero gesto devocional, mas investidura funcional, com efeitos concretos, temporais e proporcionalmente relacionados ao encargo assumido.

Entre tais investiduras, destacam-se as bênçãos conferidas a combatentes, defensores de cidades e cavaleiros, que recebiam prerrogativas morais e jurídicas que, fora desse estado, seriam ilícitas. A doutrina da guerra justa e o princípio romano da res hostilis forneciam o arcabouço intelectual dessa prática.

Este artigo examina de forma integrada os elementos teológicos, jurídicos e históricos que fundamentavam esse sistema, concluindo com uma bibliografia comentada das obras essenciais ao tema.

1. A bênção como investidura funcional

A bênção, na concepção sacramental medieval, era uma consagração orientada ao fim. Ela conferia ao indivíduo um novo estatuto moral e jurídico. O abençoado não recebia um privilégio pessoal, mas sim um dever: defender a comunidade, proteger a cidade, restaurar a ordem violada.

O cavaleiro medieval, por exemplo, só recebia plenamente sua dignidade após a bênção de armas, que o convertia em miles Christi, mesmo em guerras entre príncipes cristãos — pois seu combate tornava-se serviço à justiça, não violência arbitrária.

Esse ato litúrgico equivalia a uma instauração objetiva de função. O sujeito era colocado numa condição que, enquanto durasse, modificava o caráter moral de suas ações.

2. A guerra justa como estrutura moral da licitude

A doutrina da guerra justa é a peça central da compreensão medieval do excludente de ilicitude.
Santo Agostinho, em Contra Faustum e A Cidade de Deus, afirma que o cristão pode licitamente empunhar a espada quando:

  • a autoridade é legítima,

  • a causa é justa,

  • e a intenção é reta.

Santo Tomás de Aquino sistematiza esses critérios na Suma Teológica (II-II, q. 40):

  • Autoridade: só quem detém o cuidado do bem comum pode declarar guerra.

  • Causa: a guerra deve reparar injustiça ou defender a comunidade.

  • Intenção: o fim é a ordem e a paz, não a ira ou a vingança.

Assim, o ato físico de matar, que seria pecado grave em circunstâncias ordinárias, torna-se moralmente lícito quando inserido nessa estrutura.

A bênção militar, portanto, não transforma o mal em bem; ela confirma que o guerreiro atua dentro do quadro moral exigido pela justiça. É um selo que identifica o agente como servidor da ordem.

3. Excludente de Ilicitude no contexto medieval

O excludente de ilicitude, termo moderno, tem no pensamento medieval seu correspondente funcional. Para os canonistas e teólogos:

  • o soldado não comete homicídio;

  • cumpre uma sentença pública;

  • o uso da força é ato de justiça, não de paixão;

  • o dano causado ao agressor não é injusto.

Assim, a bênção não era permissividade desordenada, mas clarificação moral: aquilo que seria homicídio em tempos de paz torna-se exercício legítimo de autoridade em guerra justa.

4. A doutrina romana da Res Hostilis: a coisa do inimigo é coisa de ninguém

A recepção medieval do Direito Romano foi decisiva. A doutrina clássica afirma:

Res hostium sunt res nullius.
Os bens do inimigo público são considerados de ninguém.

Isso foi preservado e reinterpretado pelos canonistas. Para o pensamento cristão medieval:

  • o inimigo público (hostis, não inimicus) rompeu a ordem jurídica;

  • ao fazê-lo, perde momentaneamente a proteção patrimonial;

  • seus bens tornam-se apropriáveis sem que isso constitua furto.

Santo Tomás confirma isso explicitamente:

Tomar bens do inimigo em guerra justa não constitui furto.
(Suma Teológica, II-II, q. 66, a. 8)

Esse princípio fundamentava o direito de espólio, de saque regulado e de confisco em campanhas militares.

A bênção militar funcionava então como autorização moral para ações que, sem essa moldura jurídico-sacral, seriam pecaminosas.

5. Efeitos Temporais da Bênção Militar

As bênçãos possuíam eficácia condicional:

  • eram válidas enquanto durasse o encargo militar;

  • cessavam com a paz ou com o término da função;

  • vinculavam o combatente a obrigações espirituais específicas;

  • regulavam não só o que era permitido, mas também o que era proibido.

Um cavaleiro abençoado podia matar legitimamente em batalha; fora dela, esse mesmo ato seria homicídio. Ele podia tomar bens do inimigo; mas após a guerra, qualquer apropriação de bens alheios seria furto.

Assim, os efeitos eram:

  • temporais (limitados ao período da missão),

  • funcionais (limitados ao escopo da função),

  • teleológicos (ordenados ao bem comum).

6. Unidade Moral, Jurídica e Teológica no pensamento medieval

No medievo, não havia ruptura entre:

  • o direito civil,

  • o direito canônico,

  • e a moral cristã.

A bênção militar é o exemplo perfeito dessa unidade:

  • juridicamente, concedia prerrogativas;

  • moralmente, estabelecia a licitude dos atos;

  • teologicamente, ligava a função ao plano divino da ordem.

Assim, o guerreiro cristão não era um agente de violência, mas ministro da justiça temporal. Sua missão era restaurar a ordem violada, não perseguir a destruição pelo prazer da batalha.

Conclusão

As bênçãos funcionais da Idade Média revelam uma sofisticada síntese entre teologia, direito e história. Ao abençoar um combatente, a Igreja reconhecia a legitimidade moral de sua missão e conferia-lhe uma forma elevada de responsabilidade espiritual. A doutrina da guerra justa e a recepção do Direito Romano garantiam que esses atos fossem objetivamente lícitos e ordenados ao bem comum.

O soldado medieval abençoado para defender sua cidade ou seu senhor não era um sujeito autorizado a cometer violência, mas alguém que, dentro de parâmetros estreitos e objetivos, agia como instrumento da justiça.

 Bibliografia Comentada

1. Santo Agostinho – A Cidade de Deus (particularmente, Livro XIX)

Comentário:
Obra seminal para a doutrina da guerra justa. Agostinho distingue entre a violência injusta e o uso legítimo da força por autoridade pública ordenada à paz. É a fonte mais antiga e influente da moral cristã da guerra.

2. Santo Agostinho – Contra Faustum Manichaeum

Comentário:
Aqui Agostinho trata diretamente da relação entre violência e justiça, mostrando que a culpa moral não está no ato material de matar, mas na injustiça da motivação e da autoridade. Clássico para quem estuda excludentes de ilicitude na tradição cristã.

3. Santo Tomás de Aquino – Suma Teológica, II-II, q. 40 (De Bello)

Comentário:
O texto definitivo sobre guerra justa na escolástica. Tomás sistematiza os elementos de autoridade legítima, causa justa e intenção reta. Essencial para qualquer análise da moralidade militar medieval.

4. Santo Tomás de Aquino – Suma Teológica, II-II, q. 66 (De Furto et Rapina)

Comentário:
Artigo 8 trata especificamente da licitude de tomar bens do inimigo em guerra justa, baseando-se na doutrina romana da res hostilis. É a formulação mais clara do “excludente de ilicitude patrimonial” na tradição católica.

5. Gratiano – Decretum Gratiani

Comentário:
A base do Direito Canônico medieval. Contém referências importantes ao papel do príncipe, ao uso legítimo da força e a noções de autoridade pública, que sustentam a visão jurídica da guerra justa.

6. Thomas de Chobham – Summa Confessorum

Comentário:
Manual pastoral que discute o papel dos cavaleiros, a moralidade da guerra e os pecados associados ao exercício da violência. Mostra como o clero orientava a consciência dos combatentes.

7. Brian Tierney – The Idea of Natural Rights

(Oxford University Press)
Comentário:
Explora como a tradição cristã do direito natural — especialmente nos canonistas — estruturou conceitos jurídicos como propriedade, guerra justa e autoridade. Fundamental para compreender o contexto em que surge o excludente medieval.

8. Frederick H. Russell – The Just War in the Middle Ages

(Cambridge University Press)
Comentário:
Estudo histórico e sistemático sobre a evolução da doutrina da guerra justa desde Agostinho até o final da Idade Média. A obra mais completa em língua inglesa sobre o tema.

9. James Turner Johnson – The Quest for Peace: Three Moral Traditions in Western Cultural History

Comentário:
Mostra como a tradição cristã da guerra justa se articulou com a teoria da paz e com o pensamento jurídico medieval. Essencial para ver a guerra como instrumento da ordem.

10. John Gilchrist – Canon Law and the Ecclesiastical Jurisdiction in the Middle Ages

Comentário:
Obra fundamental para compreender o papel do direito canônico na legitimação moral e jurídica da autoridade pública, incluindo seu poder de declarar e regular guerras.

11. Christopher Tyerman – God’s War: A New History of the Crusades

Comentário:
Excelente para compreender, na prática histórica, como funcionavam as bênçãos militares, indulgências e investiduras de cruzados, inclusive seus efeitos jurídicos e espirituais.

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