Resumo
O presente artigo analisa criticamente a fragmentação das capacidades jurídicas no direito positivo contemporâneo — civil, eleitoral, penal e administrativa — à luz de uma concepção unitária da pessoa humana fundada no direito natural. Sustenta-se que a multiplicidade de regimes de capacidade não decorre da realidade ontológica do indivíduo, mas de uma opção metodológica do positivismo jurídico, cuja expressão mais acabada encontra-se na teoria pura do direito de Hans Kelsen. Defende-se que a capacidade jurídica é una em sua raiz, anterior ao Estado e à Constituição, e que as normas positivas apenas a reconhecem de modo mais ou menos adequado. A verdade sobre a pessoa, e não a posição hierárquica da norma, é apresentada como fundamento último da liberdade e da legitimidade do direito.
1. Introdução
O direito positivo moderno caracteriza-se por tratar a capacidade jurídica de forma compartimentada: capacidade civil, capacidade eleitoral, imputabilidade penal, capacidade administrativa, entre outras. Cada uma dessas capacidades é regulada por diplomas normativos distintos, frequentemente sem comunicação conceitual entre si. O resultado é a construção de um mesmo indivíduo juridicamente múltiplo, cuja aptidão para agir varia conforme o interesse regulatório do Estado.
Esse modelo, embora funcional do ponto de vista administrativo, suscita um problema filosófico de fundo: é possível que a pessoa seja ontologicamente una e juridicamente fragmentada sem contradição? Este artigo sustenta que não. A fragmentação das capacidades é um produto do positivismo jurídico e não uma exigência da realidade da pessoa humana.
2. A capacidade jurídica no direito positivo: técnica e ideologia
No direito brasileiro, a capacidade civil é regulada pelo Código Civil, distinguindo-se entre capacidade de direito e capacidade de fato, bem como entre incapacidade absoluta e relativa. Já a capacidade eleitoral é tratada pela Constituição Federal e pelo Código Eleitoral, com critérios próprios; a imputabilidade penal, pelo Código Penal; e assim sucessivamente.
Essa pluralidade não decorre de diferentes “pessoas”, mas de uma opção metodológica: cada ramo do direito cria sua própria noção funcional de capacidade. O indivíduo deixa de ser considerado como um todo para ser tratado como portador de funções jurídicas setoriais.
Essa técnica é coerente com o positivismo jurídico, para o qual:
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a pessoa é um centro de imputação normativa;
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a capacidade é uma qualificação atribuída pela norma;
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não existe uma medida extrajurídica da pessoa.
Contudo, essa coerência é apenas formal. Do ponto de vista ontológico, a pessoa permanece a mesma, com o mesmo grau de discernimento, vontade e responsabilidade moral, independentemente do diploma legal considerado.
3. A pessoa como realidade anterior ao Estado
A tradição do direito natural, especialmente em sua vertente clássica (aristotélico-tomista e romano-clássica), parte de um pressuposto oposto: a pessoa é anterior ao Estado e ao direito positivo. O direito não cria a pessoa, mas regula relações entre pessoas já existentes.
Nessa perspectiva:
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a capacidade jurídica não é concessão estatal;
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é uma decorrência da natureza racional e livre do ser humano;
-
as distinções de capacidade são acidentais, não substanciais.
A incapacidade, quando existe, não é uma ficção normativa, mas o reconhecimento de uma limitação real da pessoa em ordenar seus próprios atos segundo a razão. Quando o direito positivo cria distinções de capacidade sem correspondência com a realidade pessoal, ele deixa de reconhecer e passa a fabricar categorias jurídicas.
4. A unidade da capacidade jurídica
A tese central deste artigo é que existe uma capacidade jurídica fundamental, enraizada na própria pessoa, da qual derivam todas as manifestações específicas reguladas pelo direito positivo. Essa capacidade não é “civil”, “penal” ou “eleitoral” em sua origem; ela é simplesmente humana.
As diferentes capacidades normativas deveriam ser compreendidas como:
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aplicações prudenciais dessa capacidade una;
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adaptações circunstanciais a determinados atos;
-
e não como regimes autônomos e estanques.
Quando o direito positivo rompe essa unidade, ele produz paradoxos evidentes: indivíduos considerados incapazes para gerir seus bens, mas plenamente capazes para decidir os rumos políticos da nação; ou plenamente responsáveis penalmente, mas juridicamente incapazes para certos atos civis.
5. Kelsen e a substituição da verdade pela validade
A teoria pura do direito de Hans Kelsen oferece a justificativa teórica mais consistente para essa fragmentação. Ao separar radicalmente o ser do dever-ser, Kelsen elimina qualquer critério ontológico ou moral de validade jurídica. A norma vale não porque é verdadeira ou justa, mas porque foi produzida conforme uma norma superior, até alcançar a Grundnorm.
Nesse sistema:
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a hierarquia normativa substitui a realidade;
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a validade substitui a verdade;
-
a pessoa é um produto do ordenamento.
O problema dessa construção não é sua coerência interna, mas seu vazio ontológico. Uma norma inferior pode expressar uma verdade mais profunda sobre a pessoa humana do que uma norma constitucional, mas isso é irrelevante para o sistema kelseniano.
6. Verdade, liberdade e legitimidade do direito
Contra esse formalismo, impõe-se uma concepção segundo a qual a verdade é o fundamento da liberdade. A liberdade não nasce da autorização normativa, mas do reconhecimento da pessoa como ser racional ordenado ao bem.
Assim, a legitimidade do direito não pode repousar exclusivamente na hierarquia formal das normas, mas na conformidade do conteúdo normativo com a verdade da pessoa humana. Uma Constituição pode ser formalmente válida e materialmente injusta; um código pode estar em vigor e, ainda assim, falhar em reconhecer adequadamente a capacidade real do indivíduo.
O direito natural, nesse sentido, não está “acima” da Constituição como norma positiva, mas antes dela como critério de justiça e inteligibilidade.
7. Conclusão
A fragmentação das capacidades jurídicas é um fenômeno típico do positivismo moderno e não uma exigência da realidade humana. Uma teoria unitária da capacidade, fundada na pessoa enquanto realidade anterior ao Estado, oferece maior coerência ontológica e maior fidelidade à finalidade do direito.
A hierarquia normativa é um instrumento técnico; a verdade sobre a pessoa é o fundamento último da liberdade e da justiça. Onde o direito se afasta dessa verdade, ele permanece válido, mas deixa de ser plenamente legítimo.
Bibliografia comentada
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito.
Obra central do positivismo jurídico normativista. Kelsen fornece a fundamentação mais rigorosa da separação entre direito e moral, bem como da hierarquia normativa formal. Essencial para compreender o problema criticado neste artigo.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, I–II.
Fonte clássica da concepção do direito natural como participação da lei eterna na razão humana. Fundamenta a ideia da pessoa como realidade anterior à norma positiva.
VILLEY, Michel. Filosofia do Direito.
Crítica profunda ao subjetivismo moderno e ao abandono da noção clássica de direito como coisa justa (res iusta). Fundamental para entender a ruptura entre direito natural clássico e positivismo.
FINNIS, John. Natural Law and Natural Rights.
Apresenta uma formulação contemporânea do direito natural, dialogando com o positivismo sem abdicar da centralidade da pessoa e dos bens humanos básicos.
REALE, Miguel. Filosofia do Direito.
Importante contribuição brasileira à superação do positivismo estrito, com sua teoria tridimensional do direito (fato, valor e norma).
ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco.
Base filosófica da compreensão da ação humana, da responsabilidade e da racionalidade prática, indispensável para qualquer teoria realista da capacidade.
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