Durante décadas, famílias brasileiras compraram enciclopédias não por amor ao conhecimento, mas por constrangimento institucional. A escola exigia trabalhos, pesquisas e referências; o objeto era adquirido como quem compra uma ferramenta obrigatória para cumprir uma tarefa imposta. Não se tratava de uma busca pessoal pela verdade, nem de um esforço para compreender a razão da própria vida em liberdade. Tratava-se de adequação.
Uma vez satisfeitas as exigências escolares, obtido o diploma — o famoso canudo —, a enciclopédia tornava-se inútil. Não raro, era descartada sem remorso. Esse gesto revela algo essencial: ninguém joga fora aquilo que ama. Joga-se fora apenas aquilo que nunca teve valor intrínseco, apenas função provisória.
A enciclopédia não foi rejeitada por ser falsa, limitada ou ultrapassada. Foi rejeitada porque nunca foi verdadeiramente recebida como conhecimento. Ela era um objeto de sobrevivência social, não de contemplação intelectual.
A escola e o mito do doutor
No Brasil, a escola vendeu uma promessa que não podia cumprir: o mito do doutor. O diploma passou a ser apresentado como redenção social, substituto de formação real, selo automático de prestígio e competência. O conhecimento, nesse contexto, não é amado; é tolerado. É um pedágio.
A enciclopédia, nesse processo, não vendeu promessa alguma. Quem vendeu foi a instituição escolar, que associou títulos a sucesso, certificados a virtude e escolaridade a superioridade moral. Quando a promessa se revelou vazia, o ressentimento não foi dirigido à escola, mas aos instrumentos que a acompanharam. O livro, silencioso, pagou a conta.
O computador antigo e o fetichismo do futuro
O mesmo fenômeno ocorre hoje com o computador antigo. Ele não é desprezado porque não funciona. Ele é desprezado porque não promete o futuro. Vivemos sob uma mentalidade de obsolescência ideológica, não técnica. A máquina que executa com perfeição aquilo para o que foi concebida é tratada como lixo porque não executa aquilo que ainda não existe.
A maioria das pessoas não quer uma máquina adequada à sua realidade; quer uma promessa de potência futura, ainda que irrealizável. Trata-se do mesmo erro da escola: obrigar o presente a responder por um futuro imaginário.
Quando se afirma que, no futuro, as configurações capazes de rodar jogos do passado serão “ouro puro”, toca-se num ponto essencial: a preservação da experiência depende da preservação do ambiente técnico original. Não se trata apenas de nostalgia, mas de fidelidade histórica. Certas experiências não sobrevivem à abstração total da emulação moderna; exigem o solo técnico que lhes deu forma.
A máquina como emuladora, a enciclopédia como espírito de época
Assim como um computador antigo pode ser corretamente entendido como uma emuladora — uma máquina que executa aquilo que lhe compete, dentro de limites claros —, a enciclopédia deve ser vista como algo mais do que um repositório de verbetes. Ela é uma fotografia intelectual de uma época.
Uma enciclopédia registra:
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o que se sabia,
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o que se julgava importante,
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o que se ignorava,
-
e até o que se distorcia.
Nesse sentido, seu valor não está apenas na informação correta, mas no recorte civilizacional que ela preserva. Ela não promete o futuro; ela fixa o passado. E isso, longe de ser defeito, é sua virtude.
Desprezar uma enciclopédia por não conter o conhecimento mais recente é o mesmo erro de desprezar uma máquina por não rodar jogos que ainda nem existiam quando ela foi projetada. É exigir de um objeto fidelidade a uma promessa que nunca foi feita.
Conhecimento como verdade ou como expediente
Há, portanto, duas atitudes radicalmente distintas diante do conhecimento. A primeira é aquela que o busca como meio de libertação interior, como participação na verdade, como exercício de uma vida ordenada “em Cristo, por Cristo e para Cristo”. Nessa perspectiva, o estudo é forma de santificação pelo trabalho, e os instrumentos do saber são respeitados como companheiros de uma jornada longa.
A segunda atitude é a do conhecimento como expediente: algo a ser suportado até que se alcance um benefício externo. Quando essa lógica prevalece, não há gratidão, nem memória, nem fidelidade. Há apenas descarte.
Conclusão
A enciclopédia não enganou ninguém. O computador antigo não falhou. Ambos foram vítimas de uma cultura que despreza o presente em nome de promessas e despreza o passado por não render status imediato. Quem vive de promessas precisa destruir os vestígios do que já foi; quem vive da verdade conserva.
Só preserva o passado quem não depende de ilusões sobre o futuro. E só reconhece valor nos instrumentos do conhecimento aquele que jamais confundiu saber com diploma, nem potência com propaganda.
Bibliografia comentada
BURKE, Peter. Uma História Social do Conhecimento. Rio de Janeiro: Zahar.
Obra fundamental para compreender como o conhecimento é produzido, organizado, transmitido e descartado ao longo do tempo. Burke mostra que enciclopédias, manuais e sistemas de classificação não são neutros: eles refletem valores, hierarquias e prioridades de cada época. Sustenta diretamente a ideia da enciclopédia como “fotografia intelectual” de um período histórico.
ILLICH, Ivan. Sociedade sem Escolas. Petrópolis: Vozes.
Illich oferece uma crítica radical à escolarização como instituição que instrumentaliza o saber e transforma o conhecimento em credencial. Sua análise ajuda a explicar por que a enciclopédia foi tratada como objeto descartável após o cumprimento das exigências escolares: o problema não é o livro, mas a lógica institucional que o esvazia de sentido.
JACQUES LE GOFF. História e Memória. Campinas: UNICAMP.
Le Goff fundamenta a noção de memória como elemento constitutivo da civilização. Sua reflexão ilumina a tese de que enciclopédias e máquinas antigas não são sucata, mas artefatos de preservação cultural. O autor fornece o arcabouço conceitual para compreender o descarte como sintoma de uma ruptura com a memória histórica.
POSTMAN, Neil. Tecnopólio: a Rendição da Cultura à Tecnologia. São Paulo: Nobel.
Postman analisa o fetichismo tecnológico e a submissão cultural à ideia de progresso contínuo. Sua crítica sustenta a analogia entre o desprezo pelo computador antigo e a idolatria do “jogo do futuro”, mostrando como a tecnologia deixa de servir à cultura para passar a ditar seus critérios de valor.
BENJAMIN, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. São Paulo: Brasiliense.
Os ensaios de Benjamin, especialmente sobre reprodução técnica e experiência, ajudam a compreender por que certas vivências só existem plenamente em seus contextos materiais originais. A ideia de que nem toda experiência sobrevive à abstração técnica dialoga diretamente com a defesa da preservação de máquinas e ambientes originais.
ELIAS, Norbert. O Processo Civilizador. Rio de Janeiro: Zahar.
Elias oferece uma leitura de longa duração sobre como hábitos culturais se formam, se cristalizam e se perdem. A obra contribui para entender o descarte sistemático de livros e máquinas como resultado de um processo civilizacional que rompe com a continuidade histórica e substitui formação por adaptação funcional.
PIEPER, Josef. Ócio e Culto. São Paulo: É Realizações.
Pieper contrapõe o conhecimento contemplativo ao conhecimento meramente utilitário. Sua reflexão ilumina a distinção central do artigo entre o saber buscado como verdade e o saber tolerado como expediente. É particularmente relevante para o fechamento do texto, que articula estudo, verdade e liberdade em perspectiva cristã.
RODRIGUES, José Carlos. O Diploma e o Canudo. Rio de Janeiro: FGV.
Estudo clássico sobre o valor simbólico do diploma na sociedade brasileira. Dá base empírica e sociológica à crítica ao “mito do doutor”, mostrando como o título se autonomiza do conhecimento real e passa a funcionar como marcador de status, exatamente o fenômeno denunciado no artigo.
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