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terça-feira, 9 de dezembro de 2025

A bala como troco no Brasil: memória social, fundamentos jurídicos e a criminalização da prática

Resumo

Durante décadas, a entrega de balas e outros produtos de pequeno valor em substituição ao troco em moeda corrente foi uma prática corriqueira no comércio brasileiro. Embora naturalizada no imaginário popular, essa conduta sempre representou uma forma de transferência compulsória de valor do consumidor para o fornecedor. Com o fortalecimento das instituições de defesa do consumidor e a estabilização econômica pós-Plano Real, tal prática passou a ser rigorosamente reprimida. Este artigo analisa o fenômeno em três dimensões: histórica, social e jurídica — com destaque à tipificação como crime contra a economia popular e à violação do Código de Defesa do Consumidor (CDC). Ao final, apresenta-se bibliografia comentada com obras essenciais para compreensão ampla do tema.

1. Introdução

A vida cotidiana brasileira, especialmente antes da estabilização monetária dos anos 1990, era marcada por improvisos comerciais. Entre eles, tornou-se quase folclórica a prática de oferecer balas como troco. Os comerciantes alegavam falta de moedas, enquanto os consumidores, muitas vezes resignados pela inflação e pela precariedade do sistema monetário, aceitavam o arranjo.

Contudo, o direito positivo brasileiro evoluiu para um cenário de proteção mais robusta do consumidor. Hoje, substituição unilateral do troco por mercadoria constitui prática abusiva e pode configurar crime contra a economia popular. Este artigo examina a historicidade da prática e os fundamentos jurídicos que consolidaram sua proibição.

2. A prática da bala como troco: um fenômeno histórico-social

2.1 A cultura do improviso monetário

No Brasil da hiperinflação — especialmente nos anos 1980 e início dos 1990 — moedas de pequeno valor perdiam poder de compra rapidamente, tornando-se economicamente inviáveis para produzir e manter em circulação. O resultado foi a escassez crônica de troco no comércio.

Diante disso, desenvolveu-se a “criatividade compulsória”: balas, chicletes e fósforos tornaram-se substitutos informais da moeda metálica.

2.2 A naturalização do abuso

A ausência de um sistema jurídico consolidado de defesa do consumidor, combinada à fragilidade das instituições de fiscalização, tornava essa prática socialmente tolerada. Criou-se uma espécie de "moralidade paralela": o consumidor resignava-se a perder alguns centavos, e o comerciante naturalizava o lucro indevido.

3. Marco Jurídico: por que a prática é ilegal?

3.1 Violação do Código de Defesa do Consumidor

A entrega de um produto não solicitado em substituição ao troco fere princípios basilares do CDC:

  • Art. 6º, II e III — direito à informação adequada e liberdade de escolha;

  • Art. 39, I — vedação de venda casada, ainda que indireta;

  • Art. 39, V — exigência de vantagem manifestamente excessiva;

  • Art. 51 — nulidade de cláusulas que imponham obrigações abusivas.

Assim, o consumidor só pode receber bala como troco se aceitar expressamente.

3.2 Crime contra a economia popular

A substituição compulsória do troco por mercadoria se enquadra na Lei n. 1.521/1951, especialmente nos dispositivos que tratam de obtenção de vantagem ilícita e venda forçada.

O raciocínio jurídico é claro:

Cada bala entregue sem consentimento representa uma transferência de patrimônio sem base contratual, configurando lucro indevido e violação da ordem econômica.

3.3 Dever de conduta para o comerciante

Na ausência de moeda fracionária, os órgãos de defesa do consumidor determinam:

  • o comerciante deve perguntar se há concordância;

  • se não houver, deve arredondar o preço para baixo;

  • ou devolver em moeda, vale, crédito ou outro meio aceito pelo consumidor.

4. O Pós-Plano Real e a consolidação da repressão à prática

Com o Plano Real (1994), o Ministério da Fazenda e o Banco Central retomaram a produção regular de moedas, eliminando o argumento da escassez. Paralelamente, os Procons estaduais e o Sistema Nacional de Defesa do Consumidor passaram a atuar intensamente.

O resultado foi a consolidação jurídica e social de que:
➡️ troco é direito do consumidor; mercadoria forçada é abuso e potencial crime.

5. Considerações Finais

A “bala como troco” é mais do que uma lembrança dos tempos de instabilidade econômica: é um exemplo de como a informalidade cotidiana pode naturalizar práticas lesivas à cidadania.

A evolução jurídica brasileira deixa claro que o consumidor — especialmente o mais humilde, que sente cada centavo — não pode ser coagido a abrir mão de patrimônio. O fortalecimento do CDC e o endurecimento contra crimes da economia popular representam passos civilizatórios na proteção da dignidade econômica.

Bibliografia Comentada

1. COMPARATO, Fábio Konder. A Civilização Capitalista. São Paulo: Saraiva.

Obra fundamental para compreender a estrutura ética e econômica que sustenta práticas de mercado e como abusos se naturalizam socialmente. Comparato ilumina a relação entre poder econômico e vulnerabilidade, pano de fundo perfeito para entender a prática da bala como troco.

2. FILOMENO, José Geraldo Brito. Manual de Direito do Consumidor. São Paulo: Atlas.

Excelente para estudantes e operadores do direito. Explica detalhadamente por que a substituição unilateral do troco viola princípios essenciais do CDC e exemplifica casos julgados.

3. MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT.

Clássico de referência. A autora aprofunda temas como práticas abusivas, vantagem exagerada e venda casada — todos conectados à entrega compulsória de produtos como forma de pagamento.

4. RIZZATTO NUNES, Luiz Antonio. Curso de Direito do Consumidor. São Paulo: Saraiva.

O autor discute a noção de fornecedor, vulnerabilidade do consumidor e práticas comerciais abusivas. Há análise direta de condutas semelhantes à da entrega de balas no troco.

5. SALOMÃO FILHO, Calixto. Regulação da Concorrência. São Paulo: Malheiros.

Embora voltado ao direito econômico, ajuda a compreender por que certas práticas aparentemente banais podem distorcer a ordem econômica e justificar repressão penal.

6. PAULANI, Leda. Brasil Delivery: Servidão Financeira e Estado de Emergência Econômico. São Paulo: Boitempo.

Excelente contextualização histórica da economia brasileira, útil para entender o ambiente da hiperinflação e a cultura da improvisação que permitiu a sobrevivência da prática.

7. BANCO CENTRAL DO BRASIL. Relatórios sobre a circulação monetária (diversos anos).

Documentos técnicos que evidenciam a regularização da produção de moedas após o Plano Real e desmontam o argumento da escassez como justificativa para o abuso.

8. PROCON-SP. Manual de Práticas Abusivas.

Fonte normativa prática e objetiva, com orientações claras sobre como lidar com falta de troco, arredondamentos e exigências de mercadorias não solicitadas.

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